quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - Capitulo IX

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
 Guy Debord Capitulo IX
 A IDEOLOGIA MATERIALIZADA

 A consciência de si é em si e para si quando e porque ela é em si e para si para uma outra consciência de si; quer dizer que ela não é senão enquanto ser reconhecido. Hegel - Fenomenologia do Espírito

 212 A ideologia é a base do pensamento duma sociedade de classes, no curso conflitual da história. Os factos ideológicos não foram nunca simples quimeras, mas a consciência deformada das realidades, e, enquanto tais, factores reais exercendo, por sua vez, uma real acção deformada; tanto mais que a materialização da ideologia, que arrasta consigo o êxito concreto da produção económica autonomizada, na forma do espectáculo, confunde praticamente com a realidade social uma ideologia que pôde talhar todo o real segundo o seu modelo.

 213 Quando a ideologia, que é a vontade abstracta do universal, e a sua ilusão, se encontra legitimada pela abstracção universal e pela ditadura efectiva da ilusão na sociedade moderna, ela já não é a luta voluntarista do parcelar, mas o seu triunfo. Daí a pretensão ideológica adquirir uma espécie de fastidiosa exactidão positivista: ela já não é uma escolha histórica, mas uma evidência. Numa tal afirmação, os nomes particulares das ideologias desvaneceram-se. Mesmo a parte de trabalho propriamente ideológica ao serviço do sistema já não se concebe senão enquanto reconhecimento duma «base epistemológica» que se pretende para além de qualquer fenómeno ideológico. A própria ideologia materializada está sem nome, tal como está sem programa histórico enunciável. Quer isto dizer que a história das ideologias acabou.

 214 A ideologia, que toda a sua lógica interna levava à «ideologia total», no sentido de Mannheim, despotismo do fragmento que se impõe como pseudo-saber dum todo petrificado, visão totalitária, é agora realizada no espectáculo imobilizado da não-história. A sua realização é também a sua dissolução no conjunto da sociedade. Com a dissolução prática desta sociedade deve desaparecer a ideologia, o último contra-senso que bloqueia o acesso à vida histórica.

 215 O espectáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espectáculo é, materialmente, «a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem». O «novo poderio do embuste» que se concentrou aí tem a sua base nesta produção pela qual «com a massa dos objectos cresce... o novo domínio dos seres estranhos aos quais o homem está submetido». É o estádio supremo duma expansão que virou a necessidade contra a vida. «A necessidade de dinheiro é portanto a verdadeira necessidade produzida pela economia política, e a única necessidade que ela produz» (Manuscritos económico-filosóficos). O espectáculo alarga a toda a vida social o princípio que Hegel, na Realphilosophie de Iena, concebe como o do dinheiro; é «a vida do que está morto movendo-se em si própria».

 216 Ao contrário do projecto resumido nas Teses sobre Feuerbach (a realização da filosofia na práxis que supera a oposição entre o idealismo e o materialismo), o espectáculo conserva ao mesmo tempo, e impõe no pseudoconcreto do seu universo, os caracteres ideológicos do materialismo e do idealismo. O aspecto contemplativo do velho materialismo, que concebe o mundo como representação e não como actividade, e que finalmente idealiza a matéria, está realizado no espectáculo, onde as coisas concretas são automaticamente senhoras da vida social. Reciprocamente, a actividade sonhada do idealismo realiza-se igualmente no espectáculo pela mediação técnica de signos e de sinais, que finalmente materializam um ideal abstracto.

 217 O paralelismo entre a ideologia e a esquizofrenia estabelecido por Gabel (A Falsa Consciência) deve ser inserido neste processo económico de materialização da ideologia. O que a ideologia já era, a sociedade acabou por ser. A desinserção da práxis e a falsa consciência antidialéctica que a acompanha, eis o que é imposto a cada hora da vida quotidiana submetida ao espectáculo; que é necessário compreender como uma organização sistemática do «desfalecimento da faculdade de encontro» e como sua substituição por um facto alucinatório social: a falsa consciência do encontro, a «ilusão do encontro». Numa sociedade em que ninguém pode já ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo toma-se incapaz de reconhecer a sua própria realidade. A ideologia está em sua casa; a separação construiu o seu mundo.

 218 «Nos quadros clínicos da esquizofrenia, diz Gabel, decadência da dialéctica da totalidade (tendo como forma extrema a dissociação) e decadência da dialéctica do devir (tendo como forma extrema a catatonia) parecem bem solidárias. A consciência espectadora, prisioneira dum universo estreitado, limitada pelo écran do espectáculo, para trás do qual a sua vida foi deportada, não conhece mais do que os interlocutores fictícios que Ihe falam unilateralmente da sua mercadoria e da política da sua mercadoria. O espectáculo, em toda a sua extensão, é o seu «sinal do espelho». Aqui se põe em cena a falsa saída dum autismo generalizado.

 219 O espectáculo que é a extinção dos limites do moi(*) e do mundo pelo esmagamento do moi(*) que a presença-ausência do mundo assedia, é igualmente a supressão dos limites do verdadeiro e do falso pelo recalcamento de toda a verdade vivida sob a presença real da falsidade que a organização da aparência assegura. Aquele que sofre passivamente a sua sorte quotidianamente estranha é, pois, levado a uma loucura que reage ilusoriamente a essa sorte, ao recorrer a técnicas mágicas. O reconhecimento e o consumo das mercadorias estão no centro desta pseudo-resposta a uma comunicação sem resposta. A necessidade de imitação que o consumidor sente é precisamente a necessidade infantil, condicionada por todos os aspectos da sua despossessão fundamental. Segundo os termos que Gabel aplica a um nível patológico completamente diferente, a necessidade anormal de representação compensa aqui um sentimento torturante de estar à margem da existência.

 220 Se a lógica da falsa consciência não pode reconhecer-se veridicamente a si própria, a procura da verdade crítica sobre o espectáculo deve ser também uma critica verdadeira. É-lhe praticamente necessário lutar entre os inimigos irreconciliáveis do espectáculo e admitir estar ausente lá onde eles estão ausentes. São as leis do pensamento dominante, o ponto de vista exclusivo da actualidade, que reconhece a vontade abstracta da eficácia imediata, quando ela se lança nos compromissos do reformismo ou da acção comum dos resquícios pseudo-revolucionários. Aí, o delírio reconstituiu-se na própria posição que pretende combatê-lo. Pelo contrário, a crítica que vai para além do espectáculo deve saber esperar.

 221 Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a auto-emancipacão da nossa época. Esta «missão histórica de instaurar a verdade no mundo», nem o indivíduo isolado, nem a multidão atomizada, submetida às manipulações, a podem realizar, mas ainda e sempre a classe que é capaz de ser a dissolução de todas as classes, ao reduzir todo o poder à forma desalienante da democracia realizada, o Conselho, no qual a teoria prática se controla a si própria e vê a sua acção. Lá, somente, onde os indivíduos estão «directamente ligados à história universal»; lá, somente, onde o diálogo se estabeleceu para fazer vencer as suas próprias condições.

 (*) Mantém-se o original para não alterar a referência analítica donde provem (N.T.).

 Fim de "A Sociedade do Espectáculo" de GUY DEBORD Biblioteca virtual revolucionária

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - Capitulo VIII

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
 Guy Debord Capitulo VIII
 A NEGAÇÃO E O CONSUMO NA CULTURA

 Viveremos o suficiente para ver uma revolução política? Nós, os contemporâneos destes Alemães? Meu amigo, você crê o que deseja... Quando julgo a Alemanha segundo a sua história presente, não me objectará que toda a sua história está falsificada e que toda a sua vida pública actual não representa o estado actual do povo. Leia os jornais que queira, convença-se que se não cessa - e você conceder-me-á que a censura não impede ninguém de cessar - de celebrar a liberdade e a felicidade nacional que possuímos... Ruge - Carta a Marx, Março de 1844

180 A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido na sociedade histórica, dividida em classes; o que se resume em dizer que ela é esse poder de generalização existindo à parte, como divisão do trabalho intelectual e trabalho intelectual da divisão. A cultura desligou-se da unidade da sociedade do mito, «quando o poder de unificação desaparece da vida do homem, e os contrários perdem a sua relação e a sua interacção vivas e adquirem autonomia...» (Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling). Ao ganhar a sua independência, a cultura começa um movimento imperialista de enriquecimento, que é, ao mesmo tempo, o declínio da sua independência. A história, que cria a autonomia relativa da cultura e as ilusões ideológicas quanto a esta autonomia, exprime-se também como história da cultura. E toda a história conquistadora da cultura pode ser compreendida como a história da revelação da sua insuficiência, como uma marcha para a sua auto-supressão. A cultura é o lugar da procura da unidade perdida. Nesta procura da unidade, a cultura como esfera separada é, ela própria, obrigada a negar-se.

 181 A luta da tradição e da inovação, que é o princípio do desenvolvimento interno da cultura das sociedades históricas, não pode ser prosseguida senão através da vitória permanente da inovação. A inovação na cultura não é, porém, trazida por nada mais senão pelo movimento histórico total que, ao tomar consciência da sua totalidade, tende à superação dos seus próprios pressupostos culturais e caminha para a supressão de toda a separação.

 182 O progresso dos conhecimentos da sociedade, que contém a compreensão da história como o coração da cultura, adquire por si próprio um conhecimento sem retorno que é expresso pela destruição de Deus. Mas esta «condição primeira de toda a crítica» é de igual modo a obrigação primeira de uma crítica infinita. Lá onde nenhuma regra de conduta pode já manter-se, cada resultado da cultura a faz avançar para a sua dissolução. Como a filosofia no instante em que conquistou a sua plena autonomia, toda a disciplina tornada autónoma deve desmoronar-se, inicialmente enquanto pretensão de explicação coerente da totalidade social, e, finalmente, mesmo enquanto instrumentação parcelar utilizável dentro das suas próprias fronteiras. A falta de racionalidade da cultura separada é o elemento que a condena a desaparecer, porque, nela, a vitória do racional está já presente como exigência.

 183 A cultura provinha da história que dissolveu o género de vida do velho mundo, mas enquanto esfera separada, ela não é ainda mais do que a inteligência e a comunicação sensível que continuam parciais numa sociedade parcialmente histórica. Ela é o sentido de um mundo demasiadamente pouco sensato.

 184 O fim da história da cultura manifesta-se em dois aspectos opostos: o projecto da sua superação na história total e a organização da sua manutenção enquanto objecto morto na contemplação espectacular. Um destes movimentos ligou o seu destino à crítica social e o outro à defesa do poder de classe.

 185 Cada um dos dois aspectos do fim da cultura existe de um modo unitário, não só em todos os aspectos dos conhecimentos, como em todos os aspectos das representações sensíveis - no que era a arte no sentido mais geral. No primeiro caso, opõem-se a acumulação de conhecimentos fragmentários que se tornam inutilizáveis, porque a aprovação das condições existentes deve finalmente renunciar aos seus próprios conhecimentos, e a teoria da práxis que detém sozinha a verdade de todas ao deter sozinha o segredo da sua utilização. No segundo caso, opõem-se a autodestruição crítica da antiga linguagem comum da sociedade e a sua recomposição artificial no espectáculo mercantil, a representação ilusória do não vivido. 

186 Ao perder a comunidade da sociedade do mito, a sociedade deve perder todas as referências de uma linguagem realmente comum, até ao momento em que a cisão da comunidade inactiva pode ser superada pelo acesso à comunidade histórica real. A arte, que foi essa linguagem comum da inacção social, no momento em que ela se constitui em arte independente no sentido moderno, emergindo do seu primeiro universo religioso e tomando-se produção individual de obras separadas, conhece, como caso particular, o movimento que domina a história do conjunto da cultura separada. A sua afirmação independente é o começo da sua dissolução.

 187 O facto de a linguagem da comunicação se ter perdido, eis o que exprime positivamente o movimento de decomposição moderna de toda a arte, o seu aniquilamento formal. O que este movimento exprime negativamente é o facto de uma linguagem comum dever ser reencontrada, já não na conclusão unilateral que para a arte da sociedade histórica chegava sempre demasiado tarde, falando a outros daquilo que foi vivido sem diálogo real, e admitindo esta deficiência da vida, mas que ela deve ser reencontrada na práxis que reúne em si a actividade directa e a sua linguagem. Trata-se de possuir efectivamente a comunidade do diálogo e o jogo com o tempo, que foram representados pela obra poético-artística.

 188 Quando a arte tornada independente representa o seu mundo com cores resplandecentes, um momento da vida envelheceu e ele não se deixa rejuvenescer com cores resplandecentes. Ele deixa-se somente evocar na recordação. A grandeza da arte não começa a aparecer senão no poente da vida.

189 O tempo histórico que invade a arte exprimiu-se antes de tudo na própria esfera da arte, a partir do barroco. O barroco é a arte de um mundo que perdeu o seu centro: a última ordem mítica reconhecida pela Idade Média, no cosmos e no governo terrestre - a unidade da Cristandade e o fantasma de um Império - caiu. A arte da mudança deve trazer em si o princípio efémero que ela descobre no mundo. Ela escolheu, diz Eugénio d’Ors, «a vida contra a eternidade». O teatro e a festa, a festa teatral, são os momentos dominantes da realização barroca, na qual toda a expressão artística particular não toma o seu sentido senão pela sua referência ao décor de um lugar construído, a uma construção que deve ser para si própria o centro de unificação; e este centro é a passagem que está inscrita como um equilíbrio ameaçado na desordem dinâmica de tudo. A importância, por vezes excessiva, adquirida pelo conceito de barroco na discussão estética contemporânea traduz a tomada de consciência da impossibilidade dum classicismo artístico: os esforços a favor dum classicismo ou neoclassicismo normativos, desde há três séculos, não foram senão breves construções factícias falando a linguagem exterior do Estado, da monarquia absoluta ou da burguesia revolucionária vestida à romana. Do romantismo ao cubismo, é finalmente uma arte cada vez mais individualizada da negação, renovando-se perpetuamente até à redução a migalhas e à negação acabada da esfera artística que seguiu o curso geral do barroco. O desaparecimento da arte histórica, que estava ligada à comunicação interna duma elite, que tinha a sua base social semi-independente nas condições parcialmente lúdicas ainda vividas pelas últimas aristocracias, traduz também este facto: que o capitalismo conhece o primeiro poder de classe que se confessa despojado de qualquer qualidade ontológica; e que a raiz do poder na simples gestão da economia é igualmente a perda de toda a mestria humana. O conjunto barroco, que para a criação artística é, em si próprio, uma unidade há já muito tempo perdida, reencontra-se de algum modo no consumo actual da totalidade do passado artístico. O conhecimento e o reconhecimento históricos de toda a arte do passado, retrospectivamente constituída em arte mundial, relativizam-na numa desordem global que constitui, por sua vez, um edifício barroco a um nível mais elevado, edifício no qual devem fundir-se a própria produção de uma arte barroca e todos os seus ressurgimentos. As artes de todas as civilizações e de todas as épocas podem, pela primeira vez, ser todas conhecidas e admiradas em conjunto. É uma «recolecção das recordações» da história da arte que, ao tornar-se possível, é de igual modo o fim do mundo da arte. É nesta época dos museus, quando nenhuma comunicação artística pode já existir, que todos os momentos antigos da arte podem ser igualmente admitidos, porque nenhum deles padece mais da perda das suas condições de comunicação em geral.

 190 A arte na sua época de dissolução, enquanto movimento negativo que prossegue a superação da arte numa sociedade histórica em que a história não foi ainda vivida é ao mesmo tempo uma arte da mudança e a expressão pura da mudança impossível. Quanto mais a sua exigência é grandiosa, mais a sua verdadeira realização está para além dela. Esta arte é forçosamente de vanguarda, e não é. A sua vanguarda é o seu desaparecimento.

 191 O dadaísmo e o surrealismo são as duas correntes que marcaram o fim da arte moderna. Elas são, ainda que só de um modo relativamente consciente, contemporâneas do último grande assalto do movimento revolucionário proletário; e o revés deste movimento, que as deixava encerradas no próprio campo artístico de que elas tinham proclamado a caducidade, é a razão fundamental da sua imobilização. O dadaísmo e o surrealismo estão, ao mesmo tempo, historicamente ligados e em oposição. Nesta oposição, que constitui também para cada um a parte mais consequente e radical da sua contribuição, aparece a insuficiência interna da sua crítica, desenvolvida unilateralmente tanto por uma como por outra. O dadaísmo quis suprimir a arte sem a realizar; e o surrealismo quis realizar a arte sem a suprimir. A posição crítica elaborada posteriormente pelos situacionistas mostrou que a supressão e a realização da arte são os aspectos inseparáveis de uma mesma superação da arte.

 192 O consumo espectacular que conserva a antiga cultura congelada, compreendendo nela a repetição recuperada das suas manifestações negativas, torna-se abertamente no seu sector cultural o que ele implicitamente é na sua totalidade: a comunicação do incomunicável. A destruição extrema da linguagem pode encontrar-se aí insipidamente reconhecida como um valor positivo oficial, pois trata-se de apregoar uma reconciliação com o estado dominante das coisas, no qual toda a comunicação é alegremente proclamada ausente. A verdade crítica desta destruição, enquanto vida real da poesia e da arte modernas, está evidentemente escondida, porque o espectáculo, que tem a função de fazer esquecer a história na cultura, aplica na pseudonovidade dos seus meios modernistas a própria estratégia que o constitui em profundidade. Assim, pode dar-se por nova uma escola de neoliteratura, que simplesmente admite contemplar o escrito para si próprio. Aliás, ao lado da simples proclamação da beleza suficiente da dissolução do comunicável, a tendência mais moderna da cultura espectacular - e a mais ligada à prática repressiva da organização geral da sociedade - procura recompor, através de «trabalhos de conjunto», um meio neo-artístico complexo a partir dos elementos decompostos; nomeadamente, na procura de integração dos detritos ou de híbridos estético-técnicos no urbanismo. Isto é a tradução, no plano da pseu-docultura espectacular, deste projecto geral do capitalismo desenvolvido que visa ocupar-se do trabalhador parcelar como «personalidade bem integrada no grupo», tendência descrita pelos recentes sociólogos americanos (Riesman, Whyte, etc.). É, em toda a parte, o mesmo projecto de uma restruturação sem comunidade. 

193 A cultura tomada integralmente mercadoria deve tomar-se também a mercadoria vedeta da sociedade espectacular. Clark Kerr, um dos ideólogos mais avançados desta tendência, calculou que o complexo processo de produção, distribuição e consumo dos conhecimentos, açambarca já anualmente 29% do produto nacional nos Estados Unidos; e prevê que a cultura deve desempenhar na segunda metade deste século o papel motor no desenvolvimento da economia, como o automóvel o foi na sua primeira metade, e os caminhos-de-ferro na segunda metade do século precedente.

 194 O conjunto dos conhecimentos, que continua a desenvolver-se actualmente como pensamento do espectáculo, deve justificar uma sociedade sem justificações, e constituir-se em ciência geral da falsa-consciência, Ela é inteiramente condicionada pelo facto de não poder nem querer pensar na sua própria base material no sistema espectacular.

 195 O próprio pensamento da organização social da aparência está obscurecido pela subcomunicação generalizada que ele defende. Ele não sabe que o conflito está na origem de todas as coisas do seu mundo. Os especialistas do poder do espectáculo, poder absoluto no interior do seu sistema de linguagem sem resposta, são absolutamente corrompidos pela sua experiência do desprezo e do êxito do desprezo; porque reencontram o seu desprezo confirmado pelo conhecimento do homem desprezível que é realmente o espectador.

 196 No pensamento especializado do sistema espectacular opera-se uma nova divisão das tarefas, à medida que o próprio aperfeiçoamento deste sistema põe os novos problemas: por um lado, a critica espectacular do espectáculo é empreendida pela sociologia moderna, que estuda a separação com o auxílio dos únicos instrumentos conceptuais e materiais da separação; por outro lado, a apologia do espectáculo constitui-se em pensamento do não-pensamento, em esquecimento titular, da prática histórica, nas diversas disciplinas onde se enraíza o estruturalismo. Porém, o falso desespero da crítica não dialéctica e o falso optimismo da pura publicidade do sistema são idênticos, enquanto pensamento submisso.

 197 A sociologia que começou a pôr em discussão, inicialmente nos Estados Unidos, as condições de existência resultantes do actual desenvolvimento, se pôde trazer muitos dados empíricos, não conhece de modo algum a verdade do seu próprio objecto, porque ela não encontra nele próprio a crítica que Ihe é imanente. De modo que a tendência sinceramente reformista desta sociologia não se apoia senão na moral, no bom senso, nos apelos à moderação complemente fora de propósito. Uma tal maneira de criticar, porque não conhece o negativo que está no coração do seu mundo, não faz senão insistir na descrição de uma espécie de excedente negativo que parece atravancá-lo deploravelmente à superfície, como uma proliferação parasitária irracional. Esta boa vontade indignada, que mesmo enquanto tal não consegue vituperar senão as consequências exteriores do sistema, julga-se crítica, esquecendo o carácter essencialmente apologético dos seus pressupostos e do seu método.

 198 Aqueles que denunciam o absurdo ou os perigos do incitamento à dissipação na sociedade da abundância económica, não sabem para que serve a dissipação. Eles condenam com ingratidão, em nome da racionalidade económica, os bons guardas irracionais sem os quais o poder desta racionalidade económica se desmoronararia. E Boorstin, por exemplo, que descreve em A Imagem o consumo mercantil do espectáculo americano, nunca atinge o conceito de espectáculo, porque julga poder deixar fora deste desastroso exagero a vida privada, ou a noção de «honesta mercadoria». Não compreende que a própria mercadoria fez as leis cuja aplicação «honesta» deve provocar tanto a realidade distinta da vida privada, como a sua reconquista ulterior pelo consumo social das imagens.

 199 Boorstin descreve os excessos de um mundo que se nos tornou estranho, como excessos estranhos ao nosso mundo. Mas a base «normal» da vida social, à qual ele se refere implicitamente quando qualifica o reino superficial das imagens, em termos de julgamento psicológico e moral, como o produto das «nossas extravagantes pretensões», não tem nenhuma realidade nem no seu livro nem na sua época. É porque a vida humana real de que fala Boorstin está para ele no passado, nele compreendido o passado da resignação religiosa, que ele não pode compreender toda a profundidade de uma sociedade da imagem. A verdade desta sociedade não e mais do que a negação desta sociedade.

 200 A sociologia, que julga poder isolar do conjunto da vida social uma racionalidade industrial, funcionando à parte, pode ir ao ponto de isolar do movimento industrial global as técnicas de reprodução e transmissão. É assim que Boorstin toma como causa dos resultados que descreve, o infeliz encontro, quase fortuito, de um demasiado grande aparelho técnico de difusão das imagens e de uma demasiado grande propensão dos homens da nossa época ao pseudo-sensacional. Assim, o espectáculo seria devido ao facto de o homem moderno ser demasiado espectador. Boorstin não compreende que a proliferação dos «pseudo-acontecimentos » pré-fabricados que ele denuncia deriva deste simples facto: que os próprios homens, na realidade maciça da actual vida social, não vivem acontecimentos. É porque a própria história persegue a sociedade moderna como um espectro, que se encontra a pseudo-história construída a todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do actual tempo congelado.

 201 A afirmação da estabilidade definitiva de um curto período de congelamento do tempo histórico é a base inegável, inconsciente e conscientemente proclamada, da actual tendência a uma sistematização estruturalista. O ponto de vista em que se coloca o pensamento anti-histórico do estruturalismo é o da eterna presença de um sistema que nunca foi criado e que nunca acabará. O sonho da ditadura de uma estrutura prévia inconsciente sobre toda a práxis social pôde ser abusivamente tirada dos modelos de estruturas elaborados pela linguística e pela etnologia (e mesmo pela análise do funcionamento do capitalismo), modelos já abusivamente compreendidos nessas circunstâncias, simplesmente porque um pensamento universitário de quadros médios, rapidamente satisfeitos, pensamento integralmente submerso no elogio maravilhado do sistema existente, reduz com vulgaridade toda a realidade à existência do sistema. 

202 Como em qualquer ciência social histórica, é preciso ter sempre em vista, para a compreensão das categorias «estruturalistas», que as categorias exprimem formas de existência e condições de existência. Assim como não se aprecia o valor de um homem pela concepção que ele tem de si próprio, não se pode apreciar - e admirar - esta sociedade determinada, aceitando como indiscutivelmente verídica a linguagem que ela fala a si mesma. «Não se pode apreciar semelhantes épocas de transformação pela consciência que a época tem dessa transformação; pelo contrário, deve explicar-se a consciência com a ajuda das contradições da vida material...» A estrutura é filha do poder presente. O estruturalismo é o pensamento garantido pelo Estado, que pensa as condições presentes da «comunicação» espectacular como um absoluto. A sua maneira de estudar o código das mensagens em si mesmo não é, sendo, o produto e o reconhecimento duma sociedade, em que a comunicação existe sob a forma duma cascata de sinais hierárquicos. De modo que não é o estruturalismo que serve para provar a validade trans-histórica da sociedade do espectáculo; é, pelo contrário, a sociedade do espectáculo, impondo-se como realidade maciça, que serve para provar o sonho frio do estruturalismo.

 203 Sem dúvida, o conceito crítico de espectáculo pode também ser vulgarizado numa qualquer fórmula oca da retórica sociológico-política para explicar e denunciar tudo abstractamente e, assim, servir para a defesa do sistema espectacular. Porque é evidente que nenhuma ideia pode conduzir para além do espectáculo, mas somente para além das ideias existentes sobre o espectáculo. Para destruir efectivamente a sociedade do espectáculo, são necessários homens pondo em acção uma força prática. A teoria crítica do espectáculo não é verdadeira senão ao unificar-se à corrente prática da negação na sociedade, e esta negação, o retomar da luta de classe revolucionária, tomar-se-á consciente de si própria ao desenvolver a crítica do espectáculo, que é a teoria das suas condições reais, das condições práticas da opressão actual, e desvenda inversamente o segredo daquilo que ela pode ser. Esta teoria não espera milagres da classe operária. Ela encara a nova formulação e a realização das exigências proletárias como uma tarefa de grande alento. Para distinguir artificialmente luta teórica e luta prática - porque, na base aqui definida, a própria constituição e a comunicação duma tal teoria já não pode conceber-se sem uma prática rigorosa - é certo que o percurso obscuro e difícil da teoria critica deverá também ser o loto do movimento prático, actuando à escala da sociedade.

 204 A teoria crítica deve comunicar-se na sua própria linguagem. É a linguagem da contradição, que deve ser dialéctica na sua forma como o é no seu conteúdo. Ela é crítica da totalidade e critica histórica. Não é um «grau zero da escrita» mas a sua reinversão. Não é uma negação do estilo, mas o estilo da negação.

 205 Mesmo no seu estilo, a exposição da teoria dialéctica é um escândalo e uma abominação segundo as regras da linguagem dominante, e também para o gosto que elas educaram, porque no emprego positivo dos conceitos existentes ela inclui ao mesmo tempo a inteligência da sua fluidez reencontrada, da sua destruição necessária.

 206 Este estilo, que contém a sua própria crítica, deve exprimir a dominação da crítica presente sobre rodo o seu passado. Por ele, o modo de exposição da teoria dialéctica é testemunha do espírito negativo que nela reside. «A verdade não é como o produto no qual não mais se encontra o traço do instrumento» (Hegel). Esta consciência teórica do movimento, na qual o próprio traço do movimento deve estar presente, manifesta-se pela reinversão das relações estabelecidas entre os conceitos e pelo desvio de todas as aquisições da crítica anterior. A reinversão do genitivo é esta expressão das revoluções históricas, consignada na forma do pensamento, que foi considerada como o estilo epigramático de Hegel. O jovem Marx, ao preconizar, conforme o uso sistemático que dela tinha feito Feuerbach, a substituição do sujeito pelo predicado, atingiu o emprego mais consequente desse estilo insurreccional que, da filosofia da miséria, tira a miséria da filosofia. O desvio submete à subversão as conclusões críticas passadas que foram petrificadas em verdades respeitáveis, isto é, transformadas em mentiras. Kierkegaard já disto tinha feito deliberadamente uso, ao associar-Ihe a sua própria denúncia: «Mas não obstante as voltas e reviravoltas, como o doce volta sempre para o armário, tu acabas sempre por introduzir-Ihe uma pequena palavra que não é tua e que perturba pela recordação que desperta» (Migalhas filosóficas). É a obrigação da distancia para com o que foi falsificado em verdade oficial que determina este emprego do desvio, assim confessado por Kierkegaard no mesmo livro: «Um só reparo ainda a propósito das tuas numerosas alusões visando todas a censura que eu associo aos meus dizeres, expressões obtidas por empréstimo. Não o nego aqui e também não o esconderei que era voluntário e que numa próxima sequência a esta brochura, se algum dia a escrever, tenho a intenção de chamar o objecto pelo seu verdadeiro nome e de revestir o problema de um trajo histórico».

 207 As ideias melhoram-se. O sentido das palavras participa nisso. O plagiato é necessário. O progresso implica-o. Ele acerca-se estreitamente da frase de um autor, serve-se das suas expressões, suprime uma ideia falsa, substitui-a pela ideia justa.

 208 O desvio é o contrário da citação, da autoridade teórica sempre falsificada, pelo próprio facto de ela se ter tornado citação; fragmento arrancado ao seu contexto, ao seu movimento, e, finalmente, à sua época, como referência global e à opção precisa que ela constituía no interior desta referência, exactamente reconhecida ou errónea. O desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia. Ele aparece na comunicação que sabe não poder deter nenhuma garantia em si própria e definitivamente. Ele é, no mais alto ponto, a linguagem que nenhuma referência antiga e supracrítica pode confirmar. É, pelo contrário, a sua própria coerência, em si próprio e para com os factos praticáveis, que pode confirmar o antigo núcleo de verdade que ele volta a trazer consigo. O desvio não fundou a sua causa sobre nada de exterior à sua própria verdade como crítica presente.

 209 O que, na formulação teórica, se apresenta abertamente como desviado, ao desmentir toda a autonomia durável da esfera do teórico expresso, ao fazer intervir aí, por esta violência, a acção que perturba e varre toda a ordem existente, faz lembrar que esta existência do teórico não é nada em si mesma, e não tem que conhecer-se senão com a acção histórica, e a correcção histórica que é a sua verdadeira fidelidade.

 210 A negação real da cultura é a única a conservar-lhe o sentido. Ela já não pode ser cultural. Assim, ela é aquilo que permanece de algum modo ao nível da cultura, embora numa acepção totalmente diferente.

 211 Na linguagem da contradição, a crítica da cultura apresenta-se unificada: enquanto ela domina o todo da cultura - o seu conhecimento como a sua poesia - e enquanto não se separa mais da crítica da totalidade social. É somente esta critica teórica unificada que vai ao encontro da prática social unificada.

 GUY DEBORD Biblioteca virtual revolucionária

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - Capitulo VII

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
 Guy Debord
 Capitulo VII A ORDENAÇÃO DO TERRITÓRIO

 E quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre e nem sequer a destrói, que não deixe de esperar ser destruído por ela, porque ela tem sempre por refúgio nas suas rebeliões o nome da liberdade e os seus velhos costumes, os quais nem pela vastidão dos tempos nem por nenhuma mercê jamais serão esquecidos. E por mais que se faça ou que se precavenha, se não é o expulsar ou o dispersar dos habitantes, eles não esquecerão nunca esse nome nem esses costumes... Maquiavel - O Príncipe

 165 A produção capitalista unificou o espaço, que não é mais limitado pelas sociedades exteriores. Esta unificação é, ao mesmo tempo, um processo extensivo e intensivo de banalização. A acumulação das mercadorias produzidas em série para o espaço abstracto do mercado, do mesmo modo que devia quebrar todas as barreiras regionais e legais, e todas as restrições as corporativas da Idade Média que mantinham a qualidade da produção artesanal, devia também dissolver a autonomia e a qualidade dos lugares. Este poder de homogeneização é a artilharia pesada que fez cair todas as muralhas da China.

 166 É para se tornar cada vez mais idêntico a si próprio, para se aproximar o melhor possível da monotonia imóvel, que o espaço livre da mercadoria é, doravante, a cada instante modificado e reconstruído.

 167 Esta sociedade que suprime a distância geográfica, recolhe interiormente a distância, enquanto separação espectacular.

 168 Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distracção de ir ver o que se tornou banal. A ordenação económica da frequentação de lugares diferentes é já por si mesma a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço.

 169 A sociedade que modela tudo o que a rodeia edificou a sua técnica especial para trabalhar a base concreta deste conjunto de tarefas: o seu próprio território. O urbanismo é esta tomada de posse do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver-se logicamente em dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário.

 170 A necessidade capitalista satisfeita no urbanismo, enquanto glaciação visível da vida, pode exprimir-se - empregando termos hegelianos - como a predominância absoluta da «plácida coexistência do espaço» sobre «o inquieto devir na sucessão do tempo».

 171 Se todas as forças técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como operando separações, no caso do urbanismo trata-se do equipamento da sua base geral, do tratamento do solo que convém ao seu desenvolvimento; da própria técnica da separação.

 172 O urbanismo é a concretização moderna da tarefa ininterrupta que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido. A luta constante que teve de ser levada a cabo contra todos os aspectos desta possibilidade de encontro descobre no urbanismo o seu campo privilegiado. O esforço de todos os poderes estabelecidos desde as experiências da Revolução francesa, para aumentar os meios de manter a ordem na rua, culmina finalmente na supressão da rua. «Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controlo muito mais eficaz», constata Lewis Mumford em Através da História, ao descrever um «mundo doravante único». Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: as fábricas como as casas da cultura, as aldeias de férias como os «grandes conjuntos habitacionais», são especialmente organizados para os fins desta pseudocolectividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espectacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem o seu pleno poderio.

 173 Pela primeira vez, uma arquitectura nova, que em cada época anterior era reservada à satisfação das classes dominantes, encontra-se directamente destinada aos pobres. A miséria formal e a extensão gigantesca desta nova experiência de habitat provêm em conjunto do seu carácter de massa, que está implícito, ao mesmo tempo, na sua destinação e pelas condições modernas de construção. A decisão autoritária, que ordena abstractamente o território em território da abstracção, está, evidentemente, no centro destas condições modernas de construção. A mesma arquitectura aparece em todo o lado em que começa a industrialização dos países quanto a ela atrasados, como terreno adequado ao novo género de existência social que aí se trata de implantar. Tão nitidamente como nas questões do armamento termonuclear ou da natalidade - isto atingindo já a possibilidade de uma manipulação da hereditariedade -, o limiar transposto no crescimento do poder material da sociedade e o atraso da dominação consciente deste poder estão expostos no urbanismo.

 174 O momento presente é já o da autodestruição do meio urbano. O rebentar das cidades sobre os campos recobertos de «massas informes de resíduos urbanos» (Lewis Mumford) é, de um modo imediato, presidido pelos imperativos do consumo. A ditadura do automóvel, produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil, inscreveu-se no terreno com a dominação da auto-estrada, que desloca os antigos centros e exige uma dispersão cada vez maior. Ao mesmo tempo, os momentos de reorganização incompleta do tecido urbano polarizam-se passageiramente em torno das «fábricas de distribuição» que são os supermarkets(*) gigantes, edificados em terreno aberto num socalco de palking;(*) e estes templos do consume precipitado estão, eles próprios, em fuga no movimento centrífugo, que os repele à medida que eles se tornam, por sua vez, centros secundários sobrecarregados, porque trouxeram uma recomposição parcial da aglomeração. Mas a organização técnica do consumo não está se não no primeiro plano da dissolução geral que conduziu, assim, a cidade a consumir-se a si própria.

 175 A história económica, que se desenvolveu intensamente em tomo da oposição cidade-campo, chegou a um estádio de sucesso que anula ao mesmo tempo os dois termos. A paralisia actual do desenvolvimento histórico total, em proveito da exclusiva continuação do movimento independente da economia, faz do momento em que começam a desaparecer a cidade e o campo, não a superação da sua cisão, mas o seu desmoronamento simultâneo. A usura recíproca da cidade e do campo, produto do desfalecimento do movimento histórico pelo qual a realidade urbana existente deveria ser superada, aparece nesta mistura ecléctica dos seus elementos decompostos que recobre as zonas mais avançadas na industrialização.

 176 A história universal nasceu nas cidades e atinge a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Marx considera como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia este facto: «ela submeteu o campo à cidade» cujo ar emancipa. Mas se a história da cidade é a história da liberdade, ela é também a da tirania, da administração estatal que controla o campo e a própria cidade. A cidade não pôde ser ainda senão o terreno de luta da liberdade histórica, e não a sua posse. A cidade é o meio da história, porque ela é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna possível a empresa histórica, e consciência do passado. A tendência presente à liquidação da cidade não faz, pois, senão exprimir de um outro modo o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação da sociedade reassenhorando-se dos poderes que dela se tinham desligado.

 177 «O campo mostra justamente o facto contrário, o isolamento e a separação» (Ideologia alemã). O urbanismo que destrói as cidades, reconstrói um pseudocampo, no qual estão perdidas tanto as relações naturais do antigo campo como as relações sociais directas da cidade histórica, directamente postas em questão. É um novo campesinato factício, recriado pelas condições de habitat e de controlo espectacular no actual «território ordenado»: a dispersão no espaço e a mentalidade acanhada, que sempre impediram o campesinato de empreender uma acção independente e de se afirmar como potência histórica criadora, voltam a tornar-se a caracterização dos produtores - o movimento de um mundo que eles próprios fabricam, ficando tão completamente fora do seu alcance como o estava o ritmo natural dos trabalhos para a sociedade agrária. Mas quando este campesinato, que foi a inabalável base do «despotismo oriental», e cuja própria redução a migalhas pedia a centralização burocrática, reaparece como produto das condições de aumento da burocratizarão estatal moderna, a sua apatia teve de ser agora historicamente fabricada e alimentada; a ignorância natural cedeu o lugar ao espectáculo organizado do erro. As «cidades novas» do pseudocampesinato tecnológico inscrevem claramente no terreno a ruptura com o tempo histórico sobre o qual são construídas; a sua divisa pode ser: «Aqui mesmo nunca acontecerá nada, e nunca aqui aconteceu nada». É, evidentemente, porque a história que é preciso libertar nas cidades ainda aqui não foi liberta, que as forças da ausência histórica começam a compor a sua própria e exclusiva paisagem.

 178 A história que ameaça este mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao tempo vivido. A revolução proletária é esta crítica da geografia humana, através da qual os indivíduos e as comunidades têm a construir os lugares e os acontecimentos correspondendo à apropriação, já não só do seu trabalho, mas da sua história total. Neste espaço movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode reencontrar-se sem reintroduzir uma afeição exclusiva à terra, e assim, restabelecer a realidade da viagem, tendo em si própria todo o seu sentido. 179 A maior ideia revolucionária a propósito de urbanismo não é, ela própria, urbanística, tecnológica ou estética. É a decisão de reconstruir integralmente o território segundo as necessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, da ditadura anti-estatal do proletariado, do diálogo executório. E o poder dos Conselhos, que não pode ser efectivo senão transformando a totalidade das condições existentes, não poderá atribuir-se uma menor tarefa se quer ser reconhecido e reconhecer-se a si mesmo no seu mundo. 

GUY DEBORD (*) Em inglês no original (N. T.).

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A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - Capitulo VI

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Guy Debord Capitulo VI O TEMPO ESPECTACULAR Nada de nosso temos senão o tempo, de que gozam justamente aqueles que não têm paradeiro. Baltasar Gracián - El Oráculo Manual 147 O tempo da produção, o tempo-mercadoria, é uma acumulação infinita de espaços equivalentes. É a abstracção do tempo irreversível, de que todos os segmentos devem provar ao cronómetro a sua única igualdade quantitativa. Este tempo é, em toda a sua realidade efectiva, o que ele é no seu carácter permutável. É nesta dominação social do tempo-mercadoria que «o tempo é tudo, o homem não é nada: é quanto muito a carcaça do tempo» (Miséria da Filosofia). É o tempo desvalorizado, a inversão completa do tempo como «campo de desenvolvimento humano». 148 O tempo geral do não desenvolvimento humano existe também sob o aspecto complementar de um tempo consumível que regressa à vida quotidiana da sociedade, a partir desta produção determinada, como um tempo, pseudocíclico. 149 O tempo pseudocíclico não é de facto mais do que o disfarce consumível do tempo-mercadoria da produção. Dele contém os caracteres essenciais de unidades homogéneas permutáveis e de supressão da dimensão qualitativa. Mas ao ser o subproduto deste tempo destinado ao atraso da vida quotidiana concreta - e à manutenção deste atraso -, ele deve estar carregado de pseudovalorizações e aparecer numa sucessão de momentos falsamente individualizados. 150 O tempo pseudocíclico é o do consumo da sobrevivência económica moderna, a sobrevivência aumentada, em que o vivido quotidiano continua privado de decisão e submetido, já não a ordem natural, mas à pseudonatureza desenvolvida no trabalho alienado; e, portanto, este tempo reencontra muito naturalmente o velho ritmo cíclico que regulava a sobrevivência das sociedades pré-industriais. O tempo pseudocíclico apoia-se ao mesmo tempo nos traços naturais do tempo cíclico, e dele compõe novas combinações homólogas: o dia e a noite, o trabalho e o repouso semanais, o retomo dos períodos de férias. 151 O tempo pseudocíclico é um tempo que foi transformado pela indústria. O tempo que tem a sua base na produção de mercadorias é ele próprio uma mercadoria consumível que reúne tudo o que se tinha anteriormente distinguido, quando da fase da dissolução da velha sociedade unitária em vida privada, vida económica, vida política. Todo o tempo consumível da sociedade moderna acaba por vir a ser tratado como matéria-prima de novos produtos diversificados, que se impõem no mercado como empregos do tempo socialmente organizados. «Um produto que já existe sob uma forma que o torna apropriado ao consumo pode, no entanto, tornar-se por sua vez matéria-prima de um outro produto» (O Capital). 152 No seu sector mais avançado, o capitalismo concentrado orienta-se para a venda de blocos de tempo «totalmente equipados», cada um deles constituindo uma única mercadoria unificada que integrou um certo número de mercadorias diversas. É assim que pode aparecer, na economia em expansão dos «serviços» e das recriações, a modalidade do pagamento calculado «tudo incluído», para o habitat espectacular, as pseudo-deslocações colectivas de férias, o abonamento ao consumo cultural e a venda da própria sociabilidade em «conversas apaixonantes» e «encontros de personalidades». Esta espécie de mercadoria espectacular, que evidentemente não pode ter lugar senão em função da penúria aumentada das realidades correspondentes, figura, evidentemente, também entre os artigos-pilotos da modernização das vendas ao poderem ser pagas a crédito. 153 O tempo pseudocíclico consumível é o tempo espectacular, ao mesmo tempo como tempo de consumo das imagens, no sentido restrito, e como imagem do consume do tempo. em toda a sua extensão. O tempo do consumo das imagens, médium de todas as mercadorias, é inseparavelmente o campo onde plenamente actuam os instrumentos do espectáculo e a finalidade que estes apresentam globalmente, como lugar e como figura central de todos os consumos particulares: sabe-se que os ganhos de tempo constantemente procurados pela sociedade moderna - quer se trate da velocidade dos transportes ou da utilização de sopas em pacotes - se traduzem positivamente para a população dos Estados Unidos neste facto: de que só a contemplação da televisão a ocupa em média três a seis horas por dia. A imagem social do consumo do tempo, por seu lado, é exclusivamente dominada pelos momentos de ócio e de férias, momentos representados à distancia e desejáveis, por postulado, como toda a mercadoria espectacular. Esta mercadoria é aqui explicitamente dada como o momento da vida real de que se trata esperar o regresso cíclico. Mas mesmo nestes momentos destinados à vida, é ainda o espectáculo que se dá a ver e a reproduzir, atingindo um grau mais intenso. O que foi representado como vida real, revela-se simplesmente como a vida mais realmente espectacular. 154 Esta época, que mostra a si própria o seu tempo como sendo essencialmente o regresso precipitado de múltiplas festividades, é igualmente uma época sem festa. O que era, no tempo cíclico, o momento da participação de uma comunidade no dispêndio luxuoso da vida, é impossível para a sociedade sem comunidade e sem luxo. Quando as suas pseudofestas vulgarizadas, paródias do diálogo e do dom, excitam a um excedente de dispêndio económico, elas não trazem senão a decepção sempre compensada pela promessa de uma nova decepção. O tempo da sobrevivência moderna deve, no espectáculo, gabar-se tanto mais alto quanto mais o seu valor de uso se reduziu. A realidade do tempo foi substituída pela publicidade do tempo. 155 Enquanto o consumo do tempo cíclico das sociedades antigas estava de acordo com o trabalho real dessas sociedades, o consumo pseudocíclico da economia desenvolvida encontra-se em contradição com o tempo irreversível abstracto da sua produção. Enquanto o tempo cíclico era o tempo da ilusão imóvel, realmente vivido, o tempo espectacular é o tempo da realidade que se transforma, vivido ilusoriamente. 156 O que é sempre novo no processo da produção das coisas não se reencontra no consumo, que permanece o regresso alargado do mesmo. Porque o trabalho morto continua a dominar o trabalho vivo, no tempo espectacular o passado domina o presente. 157 Como um outro aspecto da deficiência da vida histórica geral, a vida individual não tem ainda história. Os pseudo-acontecimentos que se amontoam na dramatização espectacular não foram vividos pelos que deles são informados e, além disso, perdem-se na inflação da sua substituição precipitada a cada pulsão da maquinaria espectacular. Por outro lado, o que foi realmente vivido está sem relação com o tempo irreversível oficial da sociedade e em oposição directa ao ritmo pseudocíclico do subproduto consumível desse tempo. Este vivido individual da vida quotidiana separada permanece sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico ao seu próprio passado, que não está consignado em nenhum lado. Ele não se comunica. Está incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espectacular do não-memorável. 158 O espectáculo, como organização social presente da paralisia da história e da memória, do abandono da história que se erige sobre a base do tempo histórico, é a falsa consciência do tempo. 159 Para levar os trabalhadores ao estatuto de produtores e consumidores «livres» do tempo-mercadoria, a condição prévia foi a expropriação violenta do seu tempo. O regresso espectacular do tempo não se tomou possível senão a partir desta primeira despossessão do produtor. 160 A parte irredutivelmente biológica que continua presente no trabalho, tanto na dependência do cíclico natural da vigília e do sono como na evidência do tempo irreversível individual da usura de uma vida, não são mais do que acessórios face à produção moderna; e como tais, estes elementos são negligenciados nas proclamações oficiais do movimento da produção e dos trofeus consumíeis, que são a tradução acessível desta incessante vitória. Imobilizada no centro falsificado do movimento do seu mundo, a consciência espectadora já não conhece na sua vida uma passagem para a sua realização e para a sua morte. A publicidade dos seguros de vida insinua somente que é repreensível morrer sem ter assegurado a regulação do sistema depois desta perda económica; e a do american way of death (*) insiste sobre a sua capacidade de manter neste encontro a maior parte das aparências da vida. Sobre todo o resto da frente do bombardeamento publicitário é terminantemente proibido envelhecer. Tratar-se-ia de poupar, em cada qual, um «capital-juventude» que por não ter sido senão mediocremente empregado não pode, todavia, pretender adquirir a realidade durável e cumulativa do capital financeiro. Esta ausência social da morte é idêntica á ausência social da vida. 161 O tempo é a alienação necessária, como o mostrava Hegel, o meio no qual o sujeito se realiza perdendo-se, tomando-se outro para se tornar a verdade de si mesmo. Mas o seu contrário é justamente a alienação dominante, que é suportada pelo produtor de um presente estranho. Nesta alienação espacial, a sociedade que separa na raiz o sujeito e a actividade que ela Ihe furta, separa-o antes de tudo do seu próprio tempo. A alienação social superável é justamente aquela que interditou e petrificou as possibilidades e os riscos de alienação viva no tempo. 162 Sob os modos aparentes que se anulam e se recompõem à superfície fútil do tempo pseudocíclico contemplado, o grande estilo da época está sempre no que é orientado pela necessidade evidente e secreta da revolução.  163 A base natural do tempo, o dado sensível do correr do tempo, toma-se humana e social ao existir para o homem. É o estado acanhado da prática humana, o trabalho em diferentes estádios. Que até aqui humanizou e desumanizou também o tempo, como tempo cíclico e tempo separado irreversível da produção económica. O projecto revolucionário de uma sociedade sem classes, de uma vida histórica generalizada, é o projecto de uma extensão progressiva da medida social do tempo em proveito de um modelo Iúdico de tempo irreversível dos indivíduos e dos grupos, modelo no qual estão simultaneamente presentes tempos independentes federados. É o programa de uma realização total no meio do tempo, do comunismo que suprime «tudo o que existe independentemente dos indivíduos» 164 O mundo possui já o sonho de um tempo de que ele deve possuir agora a consciência para o viver realmente. GUY DEBORD (*) Em inglês no original (N. T.). Biblioteca virtual revolucionária

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - Capitulo V

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO Guy Debord Capitulo V TEMPO E HISTÓRIA Ó gentis-homens, a vida é curta. Se vive-mos, vivemos para marchar sobre a cabeça dos reis. Shakespeare, Henrique IV 125 O homem, «o ser negativo que é unicamente na medida em que suprime o Ser», é idêntico ao tempo. A apropriação pelo homem da sua própria natureza é, de igual modo, o apoderar-se do desenvolvimento do universo. «A própria história é uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem» (Marx). Inversamente, esta história natural» não tem outra existência efectiva senão através do processo de uma história humana, da única parte que reencontra este todo histórico, como o telescópio moderno cujo alcance recupera no tempo a fuga das nebulosas na periferia do universo. A história existiu sempre, mas não sempre sob a sua forma histórica. A tempo-realização do homem, tal como ela se efectua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo. O movimento inconsciente do tempo manifesta-se e toma-se verdadeiro na consciência histórica. 126 O movimento propriamente histórico, embora ainda escondido, começa na lenta e insensível formação da «natureza real do homem», esta «natureza que nasce na história humana - no acto gerador da sociedade humana -», mas a sociedade que então dominou uma técnica e uma linguagem, se é já o produto da sua própria história, não tem consciência senão de um presente perpétuo. Todo o conhecimento, limitado à memória dos mais velhos, é sempre aí levado pelos vivos. Nem a morte nem a procriação são compreendidas como uma lei do tempo. O tempo permanece imóvel como um espaço fechado. Quando uma sociedade mais complexa acaba por tomar consciência do tempo, o seu trabalho é bem mais o de negar, porque ela vê no tempo não o que passa, mas o que regressa. A sociedade estática organiza o tempo segundo a sua experiência imediata da natureza, sob o modelo do tempo cíclico. 127 O tempo cíclico é já dominante na experiência dos povos nómadas, porque são as mesmas condições que se reencontram perante eles a cada momento da sua passagem: Hegel nota que «a errância dos nómadas é somente formal, porque está limitada a espaços uniformes». A sociedade, que ao fixar-se localmente dá ao espaço um conteúdo pela ordenação dos lugares individualizados, encontra-se por isso mesmo encerrada no interior desta localização. O regresso temporal a lugares semelhantes é, agora, o puro regresso do tempo num mesmo lugar, a repetição de uma série de gestos. A passagem do nomadismo pastoril à agricultura sedentária é o fim da liberdade ociosa e sem conteúdo, o princípio do labor. O modo de produção agrário em geral, dominado pelo ritmo das estacões, é a base do tempo cíclico plenamente constituído. A eternidade é-lhe interior: é aqui em baixo o regresso do mesmo. O mito é a construção unitária do pensamento, que garante toda a ordem cósmica em volta da ordem que esta sociedade já realizou, de facto, dentro das suas fronteiras. 128 A apropriação social do tempo, a produção do homem pelo trabalho humano, desenvolvem-se numa sociedade dividida em classes. O poder que sê constituiu sobre a penúria da sociedade do tempo cíclico, a classe, que organiza este trabalho social e se apropria da mais-valia limitada, apropria-se igualmente da mais-valia temporal da sua organização do tempo social: ela possui só para si o tempo irreversível do vivo. A única riqueza que pode existir concentrada no sector do poder, para ser materialmente dispendida em festa sumptuária, encontra-se também despendida aí enquanto delapidação de um tempo histórico» da superfície da sociedade. Os proprietários da mais-valia histórica detêm o conhecimento e o gozo dos acontecimentos vividos. Este tempo, separado da organização colectiva do tempo que predomina com a produção repetitiva da base da vida social, corre acima da sua própria comunidade estática. É o tempo da aventura e da guerra, em que os senhores da sociedade cíclica percorrem a sua história pessoal; e é igualmente o tempo que aparece no choque das comunidades estranhas, a alteração da ordem imutável da sociedade. A história sobrevem, pois, perante os homens como um factor estranho, como aquilo que eles não quiseram e do qual se julgavam abrigados. Mas por este rodeio regressa também a inquietação negativa do humano que tinha estado na própria origem de todo o desenvolvimento que adormecera. 129 tempo cíclico e, em si mesmo, o tempo sem conflito. Mas nesta infância do tempo o conflito está instalado: a história luta, antes do mais, para ser a história na actividade prática dos Senhores. Esta história cria superficialmente o irreversível; o seu movimento constitui o próprio tempo que ela esgota, no interior do tempo inesgotável da sociedade cíclica. 130 As «sociedades frias» são aquelas que reduziram ao extreme a sua parte de história; que mantiveram num equilíbrio constante a sua oposição ao meio ambiente natural e humano, e as suas oposições internas. Se a extrema diversidade das instituições estabelecidas para este fim testemunha a plasticidade da autocriação da natureza humana, este testemunho não aparece evidentemente senão para o observador exterior, para o etnólogo vindo do tempo histórico. Em cada uma destas sociedades, uma estruturação definitiva excluiu a mudança. O conformismo absoluto das práticas sociais existentes, às quais se encontram para sempre identificadas todas as possibilidades humanas, já não tem outro limite exterior senão o receio de tornar a cair na animalidade sem forma. Aqui, para continuar no humano, os homens devem permanecer os mesmos. 131 O nascimento do poder político, que parece estar em relação com as últimas grandes revoluções da técnica, como a fundição do ferro, no limiar de um período que já não conhecerá perturbações em profundidade até à aparição da indústria, é também o momento que começa a dissolver os laços da consanguinidade. Desde então, a sucessão das gerações sai da esfera do puro cíclico natural para se tornar acontecimento orientado, sucessão de poderes. O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; e as dinastias são a sua primeira medida. A escrita é a sua arma. Na escrita, a linguagem atinge a sua plena realidade, independente da mediação entre consciências. Mas esta independência é idêntica à independência geral do poder separado, como mediação que constitui a sociedade. Com a escrita aparece uma consciência que já não é trazida e transmitida na relação imediata dos viventes: uma memória impessoal, que é a da administração da sociedade. «Os escritos são os pensamentos do Estado; os arquivos a sua memória» (Novalis). 132 A crónica é a expressão do tempo irreversível do poder, e também o instrumento que mantém a progressão voluntarista deste tempo a partir do seu traçado anterior, porque esta orientação do tempo deve desmoronar-se com a força de cada poder particular; voltando a cair no esquecimento indiferente do único tempo cíclico conhecido pelas massas camponesas que, na derrocada dos impérios e das suas cronologias, nunca mudam. Os possuidores da história puseram no tempo um sentido: uma direcção que é também uma significação. Mas esta história desenvolve-se e sucumbe à parte; ela deixa imutável a sociedade profunda, porque ela é justamente o que permanece separado da realidade comum. É no que a história dos impérios do Oriente se reduz para nós à história das religiões: estas cronologias caídas em ruínas não deixaram mais do que a história aparentemente autónoma das ilusões que as envolviam. Os Senhores que detêm a propriedade privada da história, sob a protecção do mito, detêm-na eles próprios, antes do mais, sob o modo da ilusão: na China e no Egipto, eles tiveram durante muito tempo o monopólio da imortalidade da alma; como as suas primeiras dinastias reconhecidas são a reorganização imaginária do passado. Mas esta posse ilusória dos Senhores é também toda a posse possível, nesse momento, de uma história comum e da sua própria história. O alargamento do seu poder histórico efectivo vai a par com uma vulgarização da possessão mítica ilusória. Tudo isto deriva do simples facto de que é na própria medida em que os Senhores se encarregaram de garantir miticamente a permanência do tempo cíclico, como nos ritos das estacões dos imperadores chineses, que eles próprios dele se libertaram relativamente. 133 Quando a seca cronologia, sem explicação, do poder divinizado falando aos seus servidores, que não quer ser compreendida senão como execução terrestre dos mandamentos do mito, pode ser superada e se torna história consciente, tornou-se necessário que a participação real na história tivesse sido vivida por grupos extensos. Desta comunicação prática entre aqueles que se reconheceram como os possuidores de um presente singular, que sentiram a riqueza qualitativa dos acontecimentos assim como a sua actividade e o lugar onde habitavam - a sua época -, nasce a linguagem geral da comunicação histórica. Aqueles para quem o tempo irreversível existiu descobrem ao mesmo tempo nele o memorável e a ameaça do esquecimento: «Hérodoto de Halicarnasso apresenta aqui os resultados do seu inquérito, para que o tempo não possa abolir os trabalhos dos homens...» 134 O raciocínio sobre a história é inseparavelmente raciocínio sobre o poder. A Grécia foi esse momento em que o poder e a sua mudança se discutem e se compreendem, a democracia dos Senhores da sociedade. Lá, era o inverso das condições conhecidas pelo Estado despótico, onde o poder nunca ajusta as suas contas senão consigo próprio, na inacessível obscuridade do seu ponto mais concentrado: pela revolução de palácio, que o êxito ou o revés põe igualmente fora de discussão. Porém, o poder partilhado das comunidades gregas não existia senão no dispêndio de uma vida social de que a produção continuava separada e estática na classe servil. Só aqueles que não trabalham, vivem. Na divisão das comunidades gregas e na luta pela exploração das cidades estrangeiras, estava exteriorizado o princípio da separação que fundava interiormente cada uma delas. A Grécia, que tinha sonhado a história universal, não conseguiu unir-se face à invasão; nem sequer a unificar os calendários das suas cidades independentes. Na Grécia, o tempo histórico tornou-se consciente, mas não ainda consciente de si mesmo. 135 Depois do desaparecimento das condições localmente favoráveis que tinham conhecido as comunidades gregas, a regressão do pensamento histórico ocidental não foi acompanhada de uma reconstituição das antigas organizações míticas. No choque dos povos do Mediterrâneo, na formação e derrocada do Estado romano, apareceram religiões semi-históricas que se tornavam factores: fundamentais da nova consciência do tempo e a nova armadura do poder separado. 136 As religiões monoteístas foram um compromisso entre o mito e a história, entre o tempo cíclico dominando ainda a produção e o tempo irreversível em que se afrontavam e se recompunham os povos. As religiões saídas do judaísmo são o reconhecimento universal abstracto do tempo irreversível que se encontra democratizado, aberto a todos, mas no ilusório. O tempo é inteiramente orientado para um único acontecimento final: «O reino de Deus está próximo». Estas religiões nasceram no solo da história, e nele se estabeleceram. Mas mesmo aí, elas mantêm-se em oposição radical à história. A religião semi-histórica estabelece um ponto de partida qualitativo no tempo, o nascimento de Cristo, a fuga de Maomé, mas o seu tempo irreversível - introduzindo uma acumulação efectiva que poderá, no Islão, tomar a forma de uma conquista, ou, no cristianismo da Reforma, a de um acréscimo do capital - está de facto invertido no pensamento religioso como uma contagem inversa: a espera no tempo que diminui, do acesso ao outro mundo verdadeiro, a espera do Juízo Final. A eternidade saiu do tempo cíclico. É o seu além. Ela é o elemento que rebaixa a irreversibilidade do tempo, que suprime a história na própria história, colocando-se, como um puro elemento pontual em que o tempo cíclico entrou e se aboliu, do outro lado do tempo irreversível. Bossuet dirá ainda: «E por intermédio do tempo que passa, nós entramos na eternidade que não passa.» 137 A Idade Média, esse mundo mítico inacabado que tinha a sua perfeição fora de si, é o momento em que o tempo cíclico, que regula ainda a parte principal da produção, é realmente corroído pela história. Uma certa temporalidade irreversível é reconhecida individualmente a todos, na sucessão das épocas da vida, na vida considerada como uma viagem, uma passagem sem regresso num mundo cujo sentido está algures: o peregrino é o homem que sai desse tempo cíclico para ser efectivamente esse viajante que cada um é enquanto signo. A vida histórica pessoal encontra sempre a sua plena realização na esfera do poder, na participação das lutas conduzidas pelo poder e nas lutas pela disputa do poder; mas o tempo irreversível do poder está partilhado ao infinito, sob a unificação geral do tempo orientado da era cristã, num mundo de confiança armada, em que o jogo dos Senhores gira à volta da fidelidade e da contestação da fidelidade devida. Esta sociedade feudal, nascida do encontro da «estrutura organizacional do exército conquistador tal como ela se desenvolveu durante a conquista» e das «forcas produtivas encontradas no país conquistado» (Ideologia alemã)- e é precise contar, na organização destas forças produtivas, com a sua linguagem religiosa - dividiu a dominação da sociedade entre a Igreja e o poder estatal, por sua vez subdividido nas complexas relações de suserania e de vassalagem dos domínios territoriais e das comunas urbanas. Nesta diversidade da vida histórica possível, o tempo irreversível que a sociedade profunda levava consigo inconscientemente, o tempo vivido pela burguesia na produção das mercadorias, a fundação e a expansão das cidades, a descoberta comercial da Terra - a experimentação prática que destrói para sempre toda a organização mítica do cosmos - revelou-se lentamente como o trabalho desconhecido da época, quando o grande empreendimento histórico oficial desse mundo se malogrou com as Cruzadas. 138 No declínio da Idade Média, o tempo irreversível que invade a sociedade é ressentido pela consciência ligada à antiga ordem, sob a forma de uma obsessão da morte. É a melancolia da dissolução de um mundo, o último em que a segurança do mito equilibrava ainda a história; e para esta melancolia, toda a coisa terrestre se encaminha somente para a sua corrupção. As grandes revoltas dos camponeses da Europa são também a sua tentativa de resposta a história que os arrancava violentamente ao sono patriarcal que a tutela feudal tinha garantido. É a utopia milenarista da realização terrestre do paraíso, em que volta ao primeiro plano o que estava na origem da religião semi-histórica, quando as comunidades cristãs, como o messianismo judaico de que elas provinham, resposta às perturbações e à infelicidade da época, esperavam a iminente realização do reino de Deus e acrescentavam um factor de inquietação e de subversão à sociedade antiga. O cristianismo, tendo vindo a partilhar o poder no império, tinha desmentido no momento oportuno, como simples superstição, o que subsistia desta esperança: tal é o sentido da afirmação augustina, arquétipo de todos os satisfecit da ideologia moderna, segundo a qual, a Igreja instalada era já desde há muito tempo este reino de que se falava. A revolta social do campesinato milenarista define-se naturalmente, antes de tudo, como uma vontade de destruição da Igreja. Mas o milenarismo desenrola-se no mundo histórico, e não no terreno do mito. Não são, como crê mostrar Norman Cohn em La Poursuite du Millénium, as esperanças revolucionárias modernas que são os prolongamentos irracionais da paixão religiosa do milenarismo. Bem pelo contrário, é o milenarismo, luta de classe revolucionária falando pela última vez a língua da religião, que é já uma tendência revolucionária moderna, à qual falta ainda a consciência de não ser senão histórica.. Os milenaristas deviam perder porque não podiam reconhecer a revolução como sua própria operação. O facto de eles esperarem agir sob um sinal exterior da decisão de Deus é a tradução, em pensamento, de uma prática na qual os camponeses insurgidos seguem chefes escolhidos fora deles próprios. A classe camponesa não podia atingir uma consciência justa do funcionamento da sociedade, e da maneira de conduzir a sua própria luta: é porque ela tinha falta destas condições de unidade na sua acção e na sua consciência, que ela exprimiu o seu projecto e conduziu as suas guerras segundo a imagética do paraíso terrestre. 139 A nova posse da vida histórica, a Renascença, que encontra na Antiguidade o seu passado e o seu direito, traz em si a alegre ruptura com a eternidade. O seu tempo irreversível é o da acumulação infinita dos conhecimentos, e a consciência histórica, saída da experiência das comunidades democráticas e das forças que as arruinam, vai retomar, com Maquiavel, o raciocínio sobre o poder dessacralizado, isto é, o indizível do Estado. Na vida exuberante das cidades italianas, na arte das festas, a vida conhece-se como um gozo da passagem do tempo. Mas este gozo da passagem devia ele próprio ser passageiro. A canção de Lourenco de Médicis, que Burckhardt considera como a expressão do «próprio espírito da Renascença», é o elogio que esta frágil festa da história pronunciou sobre si própria: «Como é bela, a juventude - que parte tão depressa.» 140 O movimento constante de monopolização da vida histórica pelo Estado da monarquia absoluta, forma de transição para a completa dominação da classe burguesa, faz aparecer na sua verdade o que é o novo tempo irreversível da burguesia. É ao tempo do trabalho, pela primeira vez liberto do cíclico, que a burguesia está ligada. O trabalho tomou-se, com a burguesia, trabalho que transforma as condições históricas. A burguesia é a primeira classe dominante para quem o trabalho é um valor. E a burguesia que suprime todo o privilégio, que não reconhece nenhum valor que não derive da exploração do trabalho, identificou, justamente ao trabalho, o seu próprio valor como classe dominante e faz do progresso do trabalho o seu próprio progresso. A classe que acumula as mercadorias e o capital modifica continuamente a natureza ao modificar o próprio trabalho, ao desencadear a sua produtividade. Toda a vida social se concentrou já na pobreza ornamental da Corte, adorno da fria administração estatal que culmina no «ofício de rei»; e toda a liberdade histórica particular teve de consentir na sua perda. A liberdade do jogo temporal irreversível dos feudais consumiu-se nas suas últimas batalhas perdidas com as guerras da Fronda ou a sublevação dos Escoceses por Carlos Eduardo. O mundo mudou de base. 141 A vitória da burguesia é a vitória do tempo profundamente histórico, porque ele é o tempo da produção económica que transforma a sociedade, em permanência e de cima a baixo. Durante todo o tempo em que a produção agrária permaneça o trabalho principal, o tempo cíclico, que continua presente no fundo da sociedade, alimenta as forças coligadas da tradição, que vão travar o movimento. Mas o tempo irreversível da economia burguesa extirpa essas sobrevivências em toda a vastidão do mundo. A história, que tinha aparecido até aí como o único movimento dos indivíduos da classe dominante, e portanto escrita como história factológica, é agora compreendida como um movimento geral, e neste movimento severo, os indivíduos são sacrificados. A história que descobre a sua base na economia política sabe agora da existência daquilo que era o seu inconsciente, mas que, no entanto, permanece ainda o inconsciente que ela não pode trazer à luz do dia. É somente esta pré-história cega, uma nova fatalidade que ninguém domina, que a economia mercantil democratizou. 142 A história que está presente em toda a profundidade da sociedade tende a perder-se à superfície. O triunfo do tempo irreversível é também a sua metamorfose em tempo das coisas, porque a arma da sua vitória foi precisamente a produção em série dos objectos, segundo as leis da mercadoria. O principal produto que o desenvolvimento económico fez passar da raridade luxuosa ao consumo corrente é, pois, a história, mas somente enquanto história do movimento abstracto das coisas que domina todo o uso qualitativo da vida. Enquanto o tempo cíclico anterior tinha suportado uma parte crescente de tempo histórico vivido por indivíduos e grupos, a dominação do tempo irreversível da produção vai tender a eliminar socialmente este tempo vivido. 143 Assim, a burguesia fez conhecer e impôs à sociedade um tempo histórico irreversível, mas recusa-lhe a utilização. «Houve história, mas já não há mais», porque a classe dos possuidores da economia, que não deve romper com a história económica, deve recalcar assim como uma ameaça imediata qualquer outro emprego irreversível do tempo. A classe dominante, feita de especialistas da possessão das coisas, que por isso são eles próprios uma possessão das coisas, deve ligar a sua sorte à manutenção desta história reificada, à permanência de uma nova imobilidade na historica. Pela primeira vez o trabalhador, na base da sociedade, não é materialmente estanho à história, porque é agora pela sua base que a sociedade se move irreversivelmente. Na reivindicação de viver o tempo histórico que ele faz, o proletariado encontra o simples centro inesquecível do seu projecto revolucionário; e cada uma das tentativas, até aqui goradas, de execução deste projecto marca um ponto de partida possível da nova vida histórica. 144 tempo irreversível da burguesia, senhora do poder, apresentou-se, antes do mais, sob o seu próprio nome, como uma origem absoluta, no ano I da República. Mas a ideologia revolucionária da liberdade geral que tinha abatido os últimos restos de organização mítica dos valores, e toda a regulamentação tradicional da sociedade, deixava já ver a vontade real que ela tinha vestido à romana: a liberdade do comércio generalizada. A sociedade da mercadoria, descobrindo então que devia reconstruir a passividade que Ihe tinha sido necessário abalar, fundamentalmente para estabelecer o seu próprio reino puro, «encontra no cristianismo com o seu culto do homem abstracto... o complemento religioso mais adequado» (O Capital). A burguesia concluiu, então, com esta religião um compromisso que se exprime também na apresentação do tempo: o seu próprio calendário abandonado, o seu tempo irreversível voltou a moldar-se na era cristã, de que ele continua a sucessão. 145 Com o desenvolvimento do capitalismo, o tempo irreversível i unificado mundialmente. A história universal toma-se uma realidade, por que o mundo inteiro está reunido sob o desenvolvimento deste tempo. Mas esta história, que em toda a parte é ao mesmo tempo a mesma, ainda não é mais do que a recusa intra-histórica da história. É o tempo da produção económica, dividido em fragmentos abstractos iguais, que se manifesta em todo o planeta como o mesmo dia. O tempo irreversível unificado é o do mercado mundial, e corolariamente o do espectáculo mundial. 146 O tempo irreversível da produção é, antes do mais, a medida das mercadorias. Assim, pois, o tempo que se afirma oficialmente em toda a extensão do mundo como o tempo geral da sociedade, não significando mais do que interesses especializados que o constituem, não é senão um tempo particular. GUY DEBORD Biblioteca virtual revolucionária

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - CAPÍTULO IV

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

 Guy Debord

 CAPÍTULO IV

 O PROLETARIADO COMO SUJEITO E COMO REPRESENTAÇÃO

 O direito igual a todos os bens e aos gozos deste mundo, a destruição de toda a autoridade, a negação de todo o freio moral, eis, se descermos ao fundo das coisas, a razão de ser da insurreição de 18 de Março e a carta da temível associação que Ihe forneceu um exército. Inquérito parlamentar sobre a insurreição de 18 de Março 

 73 O movimento real, que suprime as condições existentes, governa a sociedade a partir da vitória da burguesia na economia, e de forma visível desde a tradução política dessa vitória. O desenvolvimento das forças produtivas rebentou com as antigas relações de produção e toda a ordem estática se desfaz em pó. Tudo o que era absoluto toma-se histórico.

 74 É sendo lançados na história, devendo participar no trabalho e nas lutas que a constituem, que os homens se vêem obrigados a encarar as suas relações de uma maneira desiludida. Esta história não tem um objecto distinto daquele que ela realiza sobre si própria, se bem que a última visão metafísica inconsciente da época histórica possa ver a progressão produtiva, através da qual a história se desenrolou, como o objecto mesmo da história. O sujeito da história não pode ser senão o vivo produzindo-se a si próprio, tomando-se senhor e possuidor do seu mundo que é a história, e existindo como consciência do seu jogo.

 75 Como uma mesma corrente, desenvolvem-se as lutas de classes da longa época revolucionária, inaugurada pela ascensão da burguesia, e o pensamento da história, a dialéctica, o pensamento que já não pára à procura do sentido do sendo, mas que se eleva ao conhecimento da dissolução de tudo o que é; e no movimento dissolve toda a separação.

 76 Hegel já não tinha que interpretar o mundo, mas a transformação do mundo. Interpretando somente a transformação, Hegel não é mais do que o acabamento filosófico da filosofia. Ele quer compreender um mundo que se faz a si próprio. Este pensamento histórico ainda não é senão a consciência que chega sempre tarde de mais, e que enuncia a justificação post festum. Assim, ela não ultrapassou a separação senão no pensamento. O paradoxo, que consiste em suspender o sentido de toda a realidade ao seu acabamento histórico, e em revelar ao mesmo tempo este sentido constituindo-se a si próprio em acabamento da história, resulta do simples facto de o pensador das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII não ter procurado na sua filosofia senão a reconciliação com o seu resultado. «Mesmo como filosofia da revolução burguesa, ela não exprime todo o processo desta revolução, mas somente a sua última conclusão. Neste sentido, ela é uma filosofia não da revolução, mas da restauração» (Karl Korsch, Teses sobre Hegel e a revolução). Hegel fez, pela última vez, o trabalho do filósofo, «a glorificação do que existe», mas o que existia para ele já não podia ser senão a totalidade do movimento histórico. A posição exterior do pensamento, sendo de facto mantida, não podia ser encoberta senão pela sua identificação a um projecto prévio do Espírito, herói absoluto que fez o que quis e que quis o que fez, e cuja plena realização coincide com o presente. Assim, a filosofia que morre no pensamento da história já não pode glorificar o seu mundo senão renegando-o, porque para tomar a palavra é-lhe já necessário supor acabada esta história total, à qual ela tudo reduziu, e encerrada a sessão do único tribunal onde pode ser pronunciada a sentença da verdade.

 77 Quando o proletariado manifesta, pela sua própria existência em actos, que este pensamento da história não foi esquecido, o desmentido da conclusão é igualmente a confirmação do método.

 78 O pensamento da história não pode ser salvo senão tomando-se pensamento prático; e a prática do proletariado como classe revolucionária não pode ser menos que a consciência histórica operando sobre a totalidade do seu mundo. Todas as correntes teóricas do movimento operário revolucionário saíram de um afrontamento crítico com o pensamento hegeliano, em Marx como em Stirner e Bakunine.

 79 O carácter inseparável da teoria de Marx e do método hegeliano é ele próprio inseparável do carácter revolucionário desta teoria, isto é, da sua verdade. É nisto que esta primeira relação foi geralmente ignorada ou mal compreendida, ou ainda denunciada como o fraco daquilo que se tornava falaciosamente uma doutrina marxista. Bernstein, em Socialismo teórico e Social-democracia prática, revela perfeitamente esta ligação do método dialéctico e da tomada de partido histórico ao deplorar as previsões pouco científicas do Manifesto de 1847 sobre a iminência da revolução proletária na Alemanha: «Esta auto-sugestão histórica, tão errada que o primeiro visionário político aparecido nem sequer poderia encontrar melhor, seria incompreensível num Marx, que à época tinha já seriamente estudado a economia, se não se tivesse de ver nela o produto de um resto da dialéctica antitética hegeliana, de que Marx, não mais que Engels, nunca soube desfazer-se completamente. Nesses tempos de efervescência geral, isso foi-lhe tanto mais fatal». 

 80 A reinversão que Marx efectua, através de um «salvamento por transferência» do pensamento das revoluções burguesas, não consiste em substituir trivialmente pelo desenvolvimento materialista das forças produtivas o percurso do Espírito hegeliano, indo ao seu próprio encontro no tempo, a sua objectivação sendo idêntica à sua alienação, e as suas feridas históricas não deixando cicatrizes. A história tomada real já não tem fim. Marx arruinou a posição separada de Hegel perante o que acontece, e a contemplação dum agente supremo exterior, qualquer que ele seja. A teoria já não tem a conhecer senão o que ela faz. É, pelo contrário, a contemplação do movimento da economia, no pensamento dominante da sociedade actual, que é a herança não-reivindicativa da parte não-dialéctica na tentativa hegeliana de um sistema circular: é uma aprovação que perdeu a dimensão do conceito, e que já não tem necessidade dum hegelianismo para se justificar, porque o movimento que se trata de louvar já não é senão um sector sem pensamento do mundo, cujo desenvolvimento mecânico domina efectivamente o todo. O projecto de Marx é o de uma história consciente. O quantitativo que sobrevêm ao desenvolvimento cego das forças produtivas simplesmente económicas deve transformar-se em apropriação histórica qualitativa. A crítica da economia política é o primeiro acto deste fim de pré-história: «De todos os instrumentos de produção, o maior poder produtivo é a própria classe revolucionária.»

 81 O que liga estreitamente a teoria de Marx ao pensamento científico é a compreensão racional das forças que se exercem realmente na sociedade. Mas ela é fundamentalmente um além do pensamento científico, onde este não é conservado senão sendo superado: trata-se de uma compreensão da luta ,e de nenhum modo da lei. «Nós só Conhecemos uma ciência: a ciência da história», diz A Ideologia Alemã.

 82 A época burguesa, que pretende fundar cientificamente a história, negligencia o facto de que esta ciência disponível teve, antes de mais, de ser ela própria fundada historicamente com a economia. Inversamente, a história não depende radicalmente deste conhecimento senão enquanto esta história permanece história económica. Quanto do papel da história na própria economia - o processo global que modifica os seus próprios dados científicos de base - pôde ser, aliás, neglicenciado pelo ponto de vista da observação científica, é o que mostra a vaidade dos cálculos socialistas que acreditavam ter estabelecido a periodicidade exacta das crises; e desde que a intervenção constante do Estado logrou compensar o efeito das tendências à crise, o mesmo género de raciocínio vê neste equilíbrio uma harmonia económica definitiva. O projecto de superar a economia, o projecto de tomar posse da história, se ele deve conhecer - e trazer a si - a ciência da sociedade, não pode, ele mesmo, ser científico. Nesse último movimento, que crê dominar a história presente através de um conhecimento científico, o ponto de vista revolucionário permaneceu burguês.

 83 As correntes utópicas do socialismo, embora elas própria fundadas historicamente na crítica da organização social existente, podem ser justamente qualificadas de utópicas na medida em que recusam a história - isto é, a luta real em curso, assim como o movimento do tempo para além da perfeição inalterável da sua imagem de sociedade feliz -, mas não porque eles recusassem a ciência. Os pensadores utopistas são, pelo contrário, inteiramente dominados pelo pensamento científico, tal como ele se tinha imposto nos séculos precedentes. Eles procuram o acabamento desse sistema racional geral: eles não se consideram de nenhum modo profetas desarmados, porque crêem no poder social da demonstrarão científica, e mesmo, no caso do saint-simonismo, na tomada do poder pela ciência. Como, diz Sombart, «quereriam eles arrancar pela luta, aquilo que deve ser provado,?» Contudo, a concepção científica dos utopistas não se alarga a este conhecimento de que os grupos sociais têm interesses numa situação existente, forças para a manter, e, igualmente, formas de falsa-consciência correspondentes a tais posições. Ela permanece, portanto, muito aquém da realidade histórica do desenvolvimento da própria ciência, que se encontrou em grande parte orientada pela procura social resultante de tais factores, que selecciona não só o que pode ser admitido, mas também o que pode ser procurado. Os socialistas utópicos, ao ficarem prisioneiros do modo de exposição da verdade científica, concebem esta verdade segundo a sua pura imagem abstracta, tal como a tinha visto impor-se um estádio muito anterior da sociedade. Como o notava Sorel, é segundo o modelo da astronomia que os utopistas pensam descobrir e demonstrar as leis da sociedade. A harmonia por eles visada, hostil à história, decorre duma tentativa de aplicação à sociedade da ciência menos dependente da história. Ela tenta fazer-se reconhecer com a mesma inocência experimental do newtonismo, e o destino feliz, constantemente postulado, «desempenha na sua ciência social um papel análogo ao que cabe à inércia na mecânica racional» (Materiais para uma teoria do proletariado).

 84 O lado determinista-científico no pensamento de Marx foi justamente a brecha pela qual penetrou o processo de «ideologização», enquanto vivo, e ainda mais na herança teórica deixada ao movimento operário. A chegada do sujeito da história é ainda adiada, e é a ciência histórica por excelência, a economia, que tende cada vez mais a garantir a necessidade da sua própria negação futura. Mas, deste modo, é repelida para fora do campo da visão teórica a prática revolucionária que é a única verdade desta negação. Assim, importa estudar pacientemente o desenvolvimento económico e nele admitir ainda, com uma tranquilidade hegeliana, a dor, o que no seu resultado permanece «cemitério das boas intenções». Descobre-se que agora, segundo a ciência das revoluções, a consciência chega sempre cedo de mais, e deverá ser ensinada. «A história não nos deu razão, a nós e a todos os que pensavam como nós. Ela mostrou claramente que o estado do desenvolvimento económico do continente estava, então, ainda bem longe de estar amadurecido...», dirá Engels em 1895. Durante toda a sua vida, Marx manteve o ponto de vista unitário da sua teoria, mas o enunciado da sua teoria colocou-se no terreno do pensamento dominante ao precisar-se, sob a forma de criticas de disciplinas particulares, principalmente a crítica da ciência fundamental da sociedade burguesa, a economia política. É esta mutilação, ulteriormente aceite como definitiva, que constitui o «marxismo».

 85 A carência na teoria de Marx é naturalmente a carência da luta revolucionária do proletariado da sua época. A classe operária não decretou a revolução em permanência, na Alemanha de 1848; a Comuna foi vencida no isolamento. A teoria revolucionária não pôde, pois, atingir ainda a sua própria existência total. Ficar reduzido a defendê-la e a precisá-la na separação do trabalho douto, no British Museum, implicava uma perda na própria teoria. São precisamente as justificações científicas tiradas do futuro do desenvolvimento da classe operária, e a prática organizacional combinada com estas justificações, que se tornarão obstáculos à consciência proletária num estádio mais avançado. 

 86 Toda a insuficiência teórica na defesa cientifica da revolução proletária pode ser reduzida, quanto ao conteúdo assim como quanto à forma do enunciado, a uma identificação do proletariado com a burguesia, do ponto de vista da tomada revolucionária do poder.

 87 A tendência a fundar uma demonstração da legalidade científica do poder proletário, com o argumento de experimentações repetidas do passado, obscurece, desde o Manifesto, o pensamento histórico de Marx, ao fazê-lo sustentar uma imagem linear do desenvolvimento dos modos de produção, impulsionando lutas de classes que terminariam, de cada vez, «por uma transformação revolucionária da sociedade inteira ou pela destruição comum das classes em luta». Mas na realidade observável da história, do mesmo modo que «modo de produção asiático», como Marx algures o constatava, conservou a sua imobilidade apesar de todos os afrontamentos de classes, também as jacqueries de servos nunca venceram os barões, nem as revoltas de escravos da Antiguidade os homens livres. O esquema linear perde de vista, antes de tudo, o facto de que a burguesia é a única classe revolucionária que jamais venceu; ao mesmo tempo que ela é a única para a qual o desenvolvimento da economia foi causa e consequência do seu poder sobre a sociedade. A mesma simplificação conduziu Marx a negligenciar o papel económico do Estado na gestão de uma sociedade de classes. Se a burguesia ascendente pareceu franquear a economia do Estado, é somente na medida em que o Estado antigo se confundia com o instrumento de uma opressão de classe numa economia estática. A burguesia desenvolveu o seu poderio económico autónomo no período medieval de enfraquecimento do Estado, no momento de fragmentação feudal de poderes equilibrados. Mas o Estado moderno que, pelo mercantilismo, começou a apoiar o desenvolvimento da burguesia, e que finalmente se tornou o seu Estado na hora do «laisser faire, laisser passer», vai revelar-se ulteriormente dotado de um poder central na gestão calculada do processo económico. Marx pôde, no entanto, descrever no bonapartismo este esboço da burocracia estatal moderna, fusão do capital e do Estado, constituição de um «poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a sujeição social», onde a burguesia renuncia a toda a vida histórica que não seja a sua redução à história económica das coisas, e se presta a «ser condenada ao mesmo nada político que as outras classes». Aqui, estão já colocadas as bases sociopolíticas do espectáculo moderno, que, negativamente, define o proletariado como único pretendente à vida histórica.

 88 As duas únicas classes que correspondem efectivamente à teoria de Marx, as duas classes puras às quais leva toda a análise no Capital, a burguesia e o proletariado, são igualmente as duas únicas classes revolucionárias da história, mas a títulos diferentes: a revolução burguesa está feita; a revolução proletária é um projecto, nascido na base da precedente revolução, mas dela diferindo qualitativamente. Ao negligenciar a originalidade do papel histórico da burguesia encobre-se a originalidade concreta deste projecto proletário, que nada pode atingir senão ostentando as suas próprias cores e conhecendo «a imensidade das suas tarefas». A burguesia veio ao poder porque é a classe da economia em desenvolvimento. O proletariado não pode ele próprio ser o poder, senão tornando-se a classe da consciência. O amadurecimento das forças produtivas não pode garantir um tal poder, mesmo pelo desvio da despossessão crescente que traz consigo. A tomada jacobina do Estado não pode ser um instrumento seu. Nenhuma ideologia Ihe pode servir para disfarçar fins parciais em fins gerais, porque ele não pode conservar nenhuma realidade parcial que seja efectivamente sua.

 89 Se Marx, num período determinado da sua participação na luta do proletariado, esperou demasiado da previsão científica, ao ponto de criar a base intelectual das ilusões do economismo, sabe-se que a tal não sucumbiu pessoalmente. Numa carta bem conhecida, de 7 de Dezembro de 1867, acompanhando um artigo onde ele próprio critica O Capital, artigo que Engels devia fazer passar na Imprensa como se emanasse de um adversário, Marx expôs claramente o limite da sua própria ciência: «... A tendência subjectiva do autor (que Ihe impunham talvez a sua posição política e o seu passado), isto é, a maneira como ele apresenta aos outros o resultado último do movimento actual, do processo social actual, não tem nenhuma relação com a sua análise real.» Assim Marx, ao denunciar ele próprio as «conclusões tendenciosas» da sua análise objectiva, e pela ironia do «talvez» relativo às escolhas extracientíficas que se Ihe teriam imposto, mostra ao mesmo tempo a chave metodológica da fusão dos dois aspectos.

 90 É na própria luta histórica que é preciso realizar a fusão do conhecimento e da acção, de tal modo que cada um destes termos coloque no outro a garantia da sua verdade. A constituição da classe proletária em sujeito é a organização das lutas revolucionárias e a organização da sociedade no momento revolucionário:: é aqui que devem existir as condições práticas da consciência, nas quais a teoria da práxis se confirma tomando-se teoria prática. Contudo, esta questão central da organização foi a menos considerada pela teoria revolucionária na época em que se fundava o movimento operário, isto é, quando esta teoria possuía ainda o carácter unitário vindo do pensamento da história (e que ela se tinha justamente dado por tarefa desenvolver até uma prática histórica unitária). É, pelo contrário, o lugar da inconsequência para esta teoria, ao admitir o retomar de métodos de aplicação estatais e hierárquicos copiados da revolução burguesa. As formas de organização do movimento operário desenvolvidas sobre esta renúncia da teoria tenderam por sua vez a interditar a manutenção de uma teoria unitária, dissolvendo-a em diversos conhecimentos especializados e parcelares. Esta alienação ideológica da teoria já não pode, então, reconhecer a verificação prática do pensamento histórico unitário que ela traiu, quando uma tal verificação surge na luta espontânea dos operários; ela pode somente concorrer para reprimir-lhe a manifestação e a memória. Todavia, estas formas históricas aparecidas na luta são justamente o meio prático que faltava à teoria para que ela fosse verdadeira. Elas são uma exigência da teoria, mas que não tinha sido formulada teoricamente. O soviete não era uma descoberta da teoria. E a mais alta verdade teórica da Associação Internacional dos Trabalhadores, era já a sua própria existência na prática.

 91 Os primeiros sucessos da luta da Internacional levavam-na a libertar-se das influências confusas da ideologia dominante que nela subsistiam. Mas a derrota e a repressão que ela cedo encontrará fizeram passar ao primeiro plano um conflito entre duas concepções da revolução proletária, ambas contendo uma dimensão autoritária, pela qual a auto-emancipação consciente da classe é abandonada. Com efeito, a querela tomada irreconciliável entre os marxistas e os bakuninistas era dupla, tendo ao mesmo tempo por objecto o poder na sociedade revolucionária e a organização presente do movimento, e ao passar dum ao outro destes aspectos, as posições dos adversários invertem-se. Bakunine combatia a ilusão de uma abolição das classes pelo uso autoritário do poder estatal, prevendo a reconstituição de uma classe dominante burocrática e a ditadura dos mais sábios, ou dos que serão reputados como tal. Marx, que acreditava que um amadurecimento inseparável das contradições económicas e da educação democrática dos operários reduziria o papel de um Estado proletário a uma simples fase de legalização de novas relações sociais, impondo-se objectivamente, denunciava em Bakunine e seus partidários o autoritarismo duma elite conspirativa que se tinha deliberadamente colocado acima da Internacional, e que formulava o extravagante desígnio de impor à sociedade a ditadura irresponsável dos mais revolucionários, ou dos que se teriam a si próprios designado como tal. Bakunine recrutava efectivamente os seus partidários sob uma tal perspectiva: «Pilotos invisíveis no meio da tempestade popular, nós devemos dirigi-la, não por um poder ostensivo mas pela ditadura colectiva de todos os aliados. Ditadura sem faixa, sem título, sem direito oficial, e tanto mais poderosa quanto ela não terá nenhuma das aparências do poder». Assim se opuseram duas ideologias da revolução operária, contendo cada uma delas uma critica parcialmente verdadeira, mas perdendo a unidade do pensamento da história e instituindo-se, a si próprias, em autoridades ideológicas. Organizações poderosas, como a social-democracia alemã e a Federação Anarquista Ibérica, serviram fielmente uma e outra destas ideologias; e em toda a parte o resultado foi grandemente diferente do que era desejado.

 92 O facto de olhar a finalidade da revolução proletária como imediatamente presente constitui, ao mesmo tempo, a grandeza e a fraqueza da luta anarquista real (porque nas suas variantes individualistas, as pretensões do anarquismo permanecem irrisórias). Do pensamento histórico das modernas lutas de classes, o anarquismo colectivista retém unicamente a conclusão, e a sua exigência absoluta desta conclusão traduz-se igualmente no seu desprezo deliberado do método. Assim, a sua crítica da luta política permaneceu abstracta, enquanto a sua escolha da luta económica não se afirmou, ela própria, senão em função da ilusão de uma solução definitiva arrancada de uma só vez nesse terreno, no dia da greve geral ou da insurreição. Os anarquistas têm um ideal a realizar. O anarquismo é a negação ainda ideológica do Estado e das classes, isto é, das próprias condições sociais da ideologia separada. É a ideologia da pura liberdade que iguala tudo e que afasta toda a ideia do mal histórico. Este ponto de vista da fusão de todas as exigências parciais deu ao anarquismo o mérito de representar a recusa das condições existentes no conjunto da vida, e não em tomo de uma especialização crítica privilegiada, mas esta fusão, ao ser considerada no absoluto, segundo o capricho individual, antes da sua realização efectiva condenou também o anarquismo a uma incoerência demasiado fácil de constatar. O anarquismo não tem senão a redizer e a repor em jogo, em cada luta, a sua simples conclusão total, porque esta primeira conclusão era desde a origem identificada com a concretização integral do movimento. Bakunine podia pois escrever em 1873, ao abandonar a Federação do Jura: «Nos últimos nove anos desenvolvemos no seio da Internacional mais ideias do que o necessário para salvar o mundo, se só por si as ideias pudessem salvá-lo, e desafio quem quer que seja a inventar uma nova. O tempo já não está para ideias, mas para factos e actos». Sem dúvida, esta concepção conserva do pensamento histórico do proletariado a certeza de que as ideias devem tornar-se práticas, mas ela abandona o terreno histórico ao supor que as formas adequadas a esta passagem à prática já estão encontradas e não variarão mais.

 93 Os anarquistas, que se distinguem explicitamente do conjunto do movimento operário pela sua convicção ideológica, vão reproduzir entre si esta separação das competências, ao fornecer um terreno favorável à dominação informal, sobre toda a organização anarquista, dos propagandistas e defensores da sua própria ideologia, especialistas, em regra geral, tanto mais medíocres quanto a sua actividade intelectual se reduz principalmente à repetição de algumas verdades definitivas. O respeito ideológico da unanimidade na decisão favoreceu antes a autoridade incontrolada, na própria organização, de especialistas da liberdade; e o anarquismo revolucionário espera do povo libertado o mesmo género de unanimidade, obtida pelos mesmos meios. De resto, a recusa de considerar a oposição das condições entre uma minoria agrupada na luta actual e a sociedade dos indivíduos livres alimentou uma permanente separarão dos anarquistas no momento da decisão comum, como o mostra o exemplo de uma infinidade de insurreições anarquistas em Espanha, limitadas e esmagadas num plano local.

 94 A ilusão, sustentada mais ou menos explicitamente no anarquismo autêntico, é a iminência permanente de uma revolução que deverá dar razão à ideologia, e ao modo de organização prático derivado da ideologia, ao realizar-se instantaneamente. O anarquismo conduziu realmente, em 1936, uma revolução social e o esboço, o mais avançado de sempre, de um poder proletário. Nesta circunstância, é preciso ainda notar, por um lado, que o sinal de uma insurreição geral tinha sido imposto pelo pronunciamento do exército. Por outro lado, na medida em que esta revolução não tinha sido concluída nos primeiros dias, pela existência de um poder franquista em metade do país, apoiado fortemente pelo estrangeiro no momento em que o resto do movimento proletário internacional já estava vencido, e pela sobrevivência das forças burguesas ou de outros partidos operários estatalistas no campo da República, o movimento anarquista organizado mostrou-se incapaz de alargar as meias-vitórias da revolução, e até mesmo de as defender. Os seus chefes reconhecidos tornaram-se ministros e reféns do Estado burguês que destruía a revolução para perder a guerra civil.

 95 O «marxismo ortodoxo» da II Internacional é a ideologia científica da revolução socialista, que identifica toda a sua verdade ao processo objectivo na economia e ao progresso dum reconhecimento desta necessidade na classe operária educada pela organização. Esta ideologia reencontra a confiança na demonstração pedagógica que tinha caracterizado o socialismo utópico, mas dotado de uma referência contemplativa ao curso da história: porém, uma tal atitude perdeu tanto a dimensão hegeliana de uma história total como perdeu a imagem imóvel da totalidade presente na crítica utopista (no mais alto grau, em Fourier). É de uma tal atitude científica, que não podia fazer menos que relançar simetricamente escolhas éticas, que procedem as tolices de Hilferding quando este precisa que reconhecer a necessidade do socialismo não dá «indicação sobre a atitude prática a adoptar. Porque uma coisa é reconhecer uma necessidade, e uma outra é pôr-se ao serviço desta necessidade» (Capital financeiro). Aqueles que não reconheceram que o pensamento unitário da história, para Marx e para o proletariado revolucionário, não ara nada de distinto de uma atitude prática a adoptar, deviam normalmente ser vítimas da prática que tinham simultaneamente adoptado.

 96 A ideologia da organização social-democrata submetia-a ao poder dos professores que educavam a classe operária, e a forma de organização adoptada era a forma adequada a esta aprendizagem passiva. A participação dos socialistas da II Internacional nas lutas políticas e económicas era certamente concreta, mas profundamente não critica. Ela era conduzida, em nome da ilusão revolucionária, segundo uma prática manifestamente reformista. Assim, a ideologia revolucionária devia ser despedaçada pelo próprio sucesso daqueles que consigo a traziam. A separação dos deputados e dos jornalistas no movimento arrastava para o modo de vida burguês aqueles mesmos que eram recrutados entre os intelectuais burgueses. A burocracia sindical constituía em correctores da força de trabalho, a vender como mercadoria ao seu justo preço, aqueles mesmos que eram recrutados a partir das lutas dos operários industriais e deles extraídos. Para que a actividade de todos eles conservasse algo de revolucionário, teria sido necessário que o capitalismo se encontrasse oportunamente incapaz de suportar economicamente este reformismo que politicamente ele tolerava na sua agitação legalista. É uma tal incompatibilidade que a sua ciência garantia; e que a história desmentia a cada instante.

 97 Esta contradição, cuja realidade Bernstein, por ser o social-democrata mais afastado da ideologia política e o mais francamente ligado à metodologia da ciência burguesa, teve a honestidade de querer mostrar - e o movimento reformista dos operários ingleses, ao prescindir da ideologia revolucionária, tinha-o mostrado também - não devia, contudo, ser demonstrada sem réplica senão pelo próprio desenvolvimento histórico. Bernstein, embora cheio de ilusões quanto ao resto, tinha negado que uma crise da produção capitalista viesse miraculosamente obrigar os socialistas ao poder que não queriam herdar da revolução senão por esta legítima sagração. O momento de profunda perturbação social que surgiu com a primeira guerra mundial, embora tivesse sido fértil em tomada de consciência, demonstrou duplamente que a hierarquia social-democrata não tinha de modo algum tornado teóricos os operários alemães: de início, quando a grande maioria do partido aderiu à guerra imperialista, em seguida, quando na derrota ela esmagou os revolucionários spartakistas. O ex-operário Ebert acreditava ainda no pecado, porque confessava odiar a revolução «como o pecado». E o mesmo dirigente mostrou-se bom precursor da representação socialista que devia, pouco depois, opor-se como inimigo absoluto ao proletariado da Rússia e de algures, ao formular o programa exacto desta nova alienação: «O socialismo quer dizer trabalhar muito.»

 98 Lenine não foi, como pensador, marxista, senão Kautskista fiel e consequente, que aplicava a ideologia revolucionária deste «marxismo ortodoxo» nas condições russas, condições que não permitiam a prática reformista que a II Internacional seguia em contrapartida. A direcção exterior do proletariado, agindo por intermédio de um partido clandestino disciplinado, submetido aos intelectuais que se tornaram «revolucionários profissionais», constitui aqui uma profissão que não quer pactuar com nenhuma profissão dirigente da sociedade capitalista (o regime czarista sendo, de resto, incapaz de oferecer uma tal abertura, cuja base é um estádio avançado do poder da burguesia). Ela toma-se, pois, a profissão da direcção absoluta da sociedade.

 99 O radicalismo ideológico autoritário dos bolcheviques estendeu-se, à escala mundial, com a guerra e com o desmoronamento da social-democracia internacional perante a guerra. O fim sangrento das ilusões democráticas do movimento operário tinha feito do mundo inteiro uma Rússia, e o bolchevismo, reinando sobre a primeira ruptura revolucionária que esta época de crise tinha trazido, oferecia ao proletariado de todos os países o seu modelo hierárquico e ideológico, para «falar em russo» à classe dominante. Lenine não criticou ao marxismo da II Internacional o ser uma ideologia revolucionária, mas o ter deixado de o ser.

 100 O mesmo momento histórico, em que o bolchevismo triunfou para si mesmo na Rússia, e onde a social-democracia combateu vitoriosamente para o velho mundo, marca o nascimento acabado de uma ordem de coisas que está no coração da dominação do espectáculo moderno: a representação operária opôs-se radicalmente à classe.

 101 >«Em todas as revoluções anteriores, escrevia Rosa Luxemburgo na Rote Fahne de 21 de Dezembro de 1918, os combatentes afrontavam-se de cara descoberta: classe contra classe, programa contra programa. Na presente revolução, as tropas de protecção da antiga ordem não intervêm sob a insígnia das classes dirigentes, mas sob a bandeira de um "partido social-democrata". Se a questão central da revolução estivesse posta aberta e honestamente, capitalismo ou socialismo, nenhuma dúvida, nenhuma hesitação seriam hoje possíveis na grande massa do proletariado.» Assim, alguns dias antes da sua destruição, a corrente radical do proletariado alemão descobria o segredo das novas condições que todo o processo anterior havia criado (para o qual a representação operária tinha grandemente contribuído): a organização espectacular da defesa da ordem existente, o reino central das aparências onde nenhuma «questão central» se pode já pôr «aberta e honestamente». A representação revolucionária do proletariado neste estádio tinha-se tornado, ao mesmo tempo, o factor principal e o resultado central da falsificação geral da sociedade.

 102 A organização do proletariado segundo o modelo bolchevique, que tinha nascido do atraso russo e da demissão do movimento operário dos países avançados quanto à luta revolucionária, encontrou, também no atraso russo, todas as condições que levavam esta forma de organização a uma reinversão contra-revolucionária que ela inconscientemente continha no seu germe original; a demissão reiterada da massa do movimento operário europeu perante o Hic Rhodus, hic salta do período de 1918-1920, demissão que incluía a destruição violenta da sua minoria radical, favoreceu o desenvolvimento completo do processo e dele deixou o resultado mentiroso, perante o mundo, como a única solução proletária. O apoderar-se do monopólio estatal da representação e da defesa do poder dos operários, que o partido bolchevique justificou, fê-lo tornar-se o que ele era: o partido dos proprietários do proletariado, eliminando no essencial as formas precedentes de propriedade.

 103 Todas as condições da liquidação do czarismo, encaradas no debate teórico sempre insatisfatório das diversas tendências da social-democracia russa, havia vinte anos - fraqueza da burguesia, peso da maioria camponesa, papel decisivo de um proletariado concentrado e combativo, mas extremamente minoritário no país - revelaram, afinal, na prática a sua solução, através de um dado que não estava presente nas hipóteses: a burocracia revolucionária que dirigia o proletariado, ao apoderar-se do Estado, deu à sociedade uma nova dominação de classe. A revolução estritamente burguesa era impossível; a «ditadura democrática dos operários e dos camponeses» era vazia de sentido; o poder proletário dos sovietes não podia manter-se, ao mesmo tempo, contra a classe dos camponeses proprietários, a reacção branca nacional e internacional, e a sua própria representação exteriorizada e alienada, em partido operário dos senhores absolutos do Estado, da economia, da expressão, e dentro em breve do pensamento. A teoria da revolução permanente de Trotsky e Parvus, à qual Lenine aderiu efectivamente em Abril de 1917, era a única a tomar-se verdadeira para os países atrasados em relação ao desenvolvimento social da burguesia, mas só depois da introdução deste factor desconhecido que era o poder de classe da burocracia. A concentração da ditadura nas mãos da representação suprema da ideologia foi defendida da maneira mais consequente por Lenine, nos numerosos afrontamentos da direcção bolchevique. Lenine tinha cada vez mais razão contra os seus adversários naquilo que ele sustentava ser a solução implicada pelas escolhas precedentes do poder absoluto minoritário: a democracia, recusada estatalmente aos camponeses, devia sê-lo aos operários, o que levava a recusá-la aos dirigentes comunistas dos sindicatos, em todo o partido, e finalmente até ao topo do partido hierárquico. No X Congresso, no momento em que o soviete de Kronstadt era abatido pelas armas e enterrado sob a calúnia, Lenine pronunciava contra os burocratas esquerdistas, organizados em «Oposição Operária», esta conclusão, de que Estaline iria alargar a lógica até uma perfeita divisão do mundo: «Aqui ou lá com uma espingarda, mas não com a oposição... Estamos fartos da oposição.»

 104 A burocracia, ficando única proprietária de um capitalismo de Estado, assegurou, antes do mais, o seu poder no interior através de uma aliança temporária com o campesinato, após Kronstadt, aquando da «nova política económica», tal como o defendeu no exterior, utilizando os operários arregimentados nos partidos burocráticos da III Internacional como força de apoio da diplomacia russa, para sabotar todo o movimento revolucionário e sustentar governos burgueses de que ela esperava um apoio em política internacional (O poder do Kuo-Ming-Tang na China de 1925--1927, a Frente Popular em Espanha e em Franca, etc.). Mas a sociedade burocrática devia prosseguir o seu próprio acabamento pelo terror exercido sobre o campesinato para realizar a acumulação capitalista primitiva mais brutal da história. Esta industrialização da época estalinista revela a realidade última da burocracia: ela é a continuação do poder da economia, a salvação do essencial da sociedade mercantil mantendo o trabalho-mercadoria. É prova da economia independente que domina a sociedade ao ponto de recriar para os seus próprios fins a dominação de classe que Ihe é necessária: o que se resume em dizer que a burguesia criou um poder autónomo que, enquanto subsistir esta autonomia, pode ir até ao prescindir de uma burguesia. A burocracia totalitária não é «a última classe proprietária da história» no sentido de Bruno Rizzi, mas somente uma classe dominante de substituição para a economia mercantil. A propriedade privada capitalista desfalecente é substituída por um subproduto simplificado, menos diversificado, concentrado em propriedade colectiva da classe burocrática. Esta forma subdesenvolvida de classe dominante é também a expressão do subdesenvolvimento económico; e não tem outra perspectiva senão a de recuperar o atraso deste desenvolvimento em certas regiões do mundo. É o partido operário, organizado segundo o modelo burguês da separação, que forneceu o quadro hierárquico-estatal a esta edição suplementar da classe dominante. Anton Ciliga notava, numa prisão de Estaline, que «as questões técnicas de organização revelavam-se ser questões sociais» (Lenine e n revolução.

 105 A ideologia revolucionária, a coerência do separado de que o leninismo constitui o mais alto esforço voluntarista, ao deter a gestão de uma realidade que a rejeita, com o estalinismo voltará à sua verdade na incoerência. Nesse momento, a ideologia já não é uma arma, mas um fim. A mentira que não é mais desmentida torna-se loucura. A realidade, assim como a finalidade, são dissolvidas na proclamação ideológica totalitária: tudo o que ela diz é tudo o que é. É um primitivismo local do espectáculo, cujo papel é, todavia, essencial no desenvolvimento do espectáculo mundial. A ideologia que se materializa aqui não transformou economicamente o mundo, como o capitalismo chegado ao estádio da abundância; ela só transformou policialmente a percepção.

 106 A classe ideológica totalitária no poder é o poder de um mundo reinvertido: quanto mais ela é forte, mais ela afirma que não existe, e a sua força serve-lhe antes do mais para afirmar a sua inexistência. Ela é modesta nesse único ponto, porque a sua inexistência oficial deve também coincidir com o nec plus ultra do desenvolvimento histórico, que simultaneamente se deveria ao seu infalível comando. Exposta por toda a parte a burocracia deve ser a classe invisível para a consciência, de forma que e toda a vida social que se torna demente. A organização social da mentira absoluta decorre desta contradição fundamental.

 107 O estalinismo foi o reino do terror na própria classe burocrática. O terrorismo que funda o poder desta classe deve também atingir esta classe, porque ela não possui nenhuma garantia jurídica, nenhuma existência reconhecida enquanto classe proprietária que ela poderia alargar a cada um dos seus membros. A sua propriedade real está dissimulada, e ela não se tomou proprietária senão pela via da falsa consciência. A falsa consciência não mantém o seu poder absoluto senão pelo terror absoluto, onde todo o verdadeiro motivo acaba por perder-se. Os membros da classe burocrática no poder não têm o direito de posse sobre a sociedade senão colectivamente, enquanto participantes numa mentira fundamental: é precise que eles desempenhem o papel do proletariado dirigindo uma sociedade socialista; que sejam os actores fiéis ao texto da infidelidade ideológica. Mas a participação efectiva neste ser mentiroso deve, ela própria, ver-se reconhecida como uma participação verídica. Nenhum burocrata pode sustentar individualmente o seu direito ao poder, pois provar que é um proletário socialista seria manifestar-se como o contrário de um burocrata; e provar que é um burocrata é impossível, uma vez que a verdade oficial da burocracia é a de não ser. Assim, cada burocrata está na dependência absoluta de uma garantia central da ideologia, que reconhece uma participação colectiva ao seu «poder socialista» de todos os burocratas que ela no aniquila. Se os burocratas, considerados no seu conjunto, decidem de tudo, a coesão da sua própria classe não pode ser assegurada senão pela concentração do seu poder terrorista numa só pessoa. Nesta pessoa reside a única verdade prática da mentira no poder: a fixação indiscutível da sua fronteira sempre rectificada. Estaline decide sem apelo quem é finalmente burocrata possuidor; isto é, quem deve ser chamado «proletário no poder» ou então «traidor a soldo do Mikado e de Wall Street». Os átomos burocráticos não encontram a essência comum do seu direito senão na pessoa de Estaline. Estaline é esse soberano do mundo que se sabe deste modo a pessoa absoluta, para a consciência da qual não existe espírito mais alto. «O soberano do mundo possui a consciência efectiva do que ele é - o poder universal da efectividade - na violência destrutiva que exerce contra o Soi (*) dos seus sujeitos fazendo-lhe contraste.» Ao mesmo tempo que é o poder que define o terreno da dominação, ele é «o poder devastando esse terreno».

 108 Quando a ideologia, tornada absoluta pela posse do poder absoluto, se transforma de um conhecimento parcelar numa mentira totalitária, o pensamento da história foi tão perfeitamente aniquilado que a própria história, ao nível do conhecimento mais empírico, já não pode existir. A sociedade burocrática totalitária vive num presente perpétuo, onde tudo o que sobreveio existe somente para ela como um espaço acessível à sua polícia. O projecto, já formulado por Napoleão, de «dirigir monarquicamente a energia das recordações» encontrou a sua concretização total numa manipulação permanente do passado, não só nos significados mas também nos factos. Mas o preço deste franqueamento de toda a realidade histórica é a perda de referência racional que é indispensável à sociedade histórica do capitalismo. Sabe-se o que a aplicação científica da ideologia esquecida pôde custar à economia russa, quanto mais não seja com a impostura de Lyssenko. Esta contradição da burocracia totalitária administrando uma sociedade industrializada, colhida entre a sua necessidade do racional e a sua recusa do racional, constitui também uma das deficiências principais face ao desenvolvimento capitalista normal. Do mesmo modo que a burocracia não pode resolver, como este, a questão da agricultura, ela é-lhe finalmente inferior na produção industrial, planificada autoritariamente na base do irrealismo e da mentira generalizada.

 109 O movimento operário revolucionário entre as duas guerras foi aniquilado pela acção conjugada da burocracia estalinista e do totalitarismo fascista que tinha copiado a sua forma de organização do partido totalitário experimentado na Rússia. O fascismo foi uma defesa extremista da economia burguesa, ameaçada pela crise e pela subversão proletária, o estado de sitio na sociedade capitalista, pelo qual esta sociedade se salva e se dota de uma primeira racionalização de urgência, fazendo intervir maciçamente o Estado na sua gestão. Mas uma tal racionalização é, ela própria, agravada pela imensa irracionalidade do seu meio. Se o fascismo se lança na defesa dos principais pontos da ideologia burguesa tornada conservadora (a família, a propriedade, a ordem moral, a nação), reunindo a pequena burguesia e os desempregados desnorteados pela crise ou desiludidos pela impotência da revolução socialista, ele próprio não é fundamentalmente ideológico. Ele apresenta-se como aquilo que é: uma ressurreição violenta do mito, que exige a participação numa comunidade definida por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe. O fascismo é o arcaísmo tecnicamente equipado. O seu ersatz decomposto do mito é retomado no contexto espectacular moderno, do mesmo modo que a sua parte na destruição do antigo movimento operário faz dele uma das potências fundadoras da sociedade presente; mas como também acontece que o fascismo é a forma mais dispendiosa da manutenção da ordem capitalista, ele devia normalmente abandonar a boca da cena que ocupam os grandes papéis desempenhados pelos Estados capitalistas, eliminado por formas mais racionais e mais fortes desta ordem.

 110 Quando a burocracia russa consegue enfim desfazer-se dos traços da propriedade burguesa que entravam o seu reino sobre a economia, desenvolvê-la para o seu próprio uso, e ser reconhecida no exterior entre as grandes potências, ela quer desfrutar calmamente do seu próprio mundo, suprimindo esta porção de arbitrário que se exercia sobre si própria: ela denuncia o estalinismo da sua origem. Mas uma tal denúncia permanece estalinista, arbitrária, inexplicada e incessantemente corrigida, porque a mentira ideológica da sua origem nunca pode ser revelada. Assim, a burocracia não pode liberalizar-se nem culturalmente nem politicamente porque a sua existência como classe depende do seu monopólio ideológico que, com toda a sua grosseria, é o seu único título de propriedade. A ideologia perdeu certamente a paixão da sua afirmação positiva, mas o que dela subsiste de trivialidade indiferente tem ainda esta função repressiva de interditar a mínima concorrência, de manter cativa a totalidade do pensamento. A burocracia está, assim, ligada a uma ideologia em que já ninguém acredita. O que era terrorista tornou-se irrisório, mas esta mesma irrisão não pode manter-se senão conservando em segundo plano o terrorismo de que ela queria desfazer-se. Assim, no próprio momento em que a burocracia quer demonstrar a sua superioridade no terreno do capitalismo, ela confessa-se um parente pobre do capitalismo. Do mesmo modo que a sua história efectiva está em contradição com o seu direito, e a sua ignorância grosseiramente mantida em contradição com as suas pretensões cientificas, o seu projecto de rivalizar com a burguesia na produção duma abundância mercantil é entravado pelo facto de uma tal abundância trazer em si mesma a sua ideologia implícita, e reveste-se normalmente duma liberdade indefinidamente extensa de falsas escolhas espectaculares, pseudoliberdade que permanece inconciliável com a ideologia burocrática.

 111 Neste momento do desenvolvimento, o título de propriedade ideológica da burocracia já se desmorona à escala internacional. O poder, que se tinha estabelecido nacionalmente enquanto modelo fundamentalmente internacionalista, deve admitir que já não pode pretender manter a sua coesão mentirosa para além de cada fronteira nacional. O desigual desenvolvimento económico que conhecem as burocracias, de interesses concorrentes, que conseguiram possuir o seu «socialismo» fora dum só país, conduziu ao afrontamento público e completo da mentira russa e da mentira chinesa. A partir deste ponto, cada burocracia no poder, ou cada partido totalitário candidato ao poder deixado pelo período estalinista em algumas classes operárias nacionais, deve seguir a sua própria via. Juntando-se às manifestações de negação interior que começaram a afirmar-se perante o mundo com a revolta operária de Berlim-Leste, opondo aos burocratas a sua exigência de «um governo de metalúrgicos» e que já uma vez foram até ao poder dos conselhos operários da Hungria, a decomposição mundial da aliança da mistificação burocrática é, em última análise, o factor mais desfavorável para o desenvolvimento actual da sociedade capitalista. A burguesia está em vias de perder o adversário que a sustentava objectivamente ao unificar ilusoriamente toda a negação da ordem existente. Uma tal divisão do trabalho espectacular vê o seu fim quando o papel pseudo-revolucionário se divide por sua vez. O elemento espectacular da dissolução do movimento operário vai ser ele próprio dissolvido.

 112 A ilusão leninista já não tem outra base actual senão nas diversas tendências trotskistas, onde a identificação do projecto proletário a uma organização hierárquica da ideologia sobrevive inabalavelmente à experiência de todos os seus resultados. A distância que separa o trotskismo da crítica revolucionaria da sociedade presente, permite também a distância respeitosa que ele observa em relação a posições que eram já falsas quando foram usadas num combate real. Trotsky permaneceu até 1927 fundamentalmente solidário da alta burocracia, procurando mesmo apoderar-se dela para Ihe fazer retomar uma acção realmente bolchevique no exterior (sabe-se que, nesse momento, para ajudar a dissimular o famoso «testamento de Lenine», ele foi ao ponto de desmentir caluniosamente o seu partidário Max Eastman, que o tinha divulgado). Trotsky foi condenado pela sua perspectiva fundamental, porque no momento em que a burocracia se conhece a si própria no seu resultado como classe contra-revolucionária no interior, ela deve escolher também ser efectivamente contra-revolucionária no exterior, em nome da revolução, como em sua casa. A luta ulterior de Trotsky por uma IV internacional contém a mesma inconsequência. Ele recusou toda a sua vida reconhecer na burocracia o poder de uma classe separada, porque ele se tinha tornado durante a segunda revolução russa o partidário incondicional da forma bolchevique de organização. Quando Lukács, em 1923, mostrava nesta forma a mediação enfim encontrada entre a teoria e a prática, onde os proletários deixam de ser «espectadores» dos acontecimentos ocorridos na sua organização para conscientemente os escolherem e viverem, ele descrevia como méritos efectivos do partido bolchevique tudo o que o partido bolchevique não era. Lukács era ainda, a par do seu profundo trabalho teórico, um ideólogo, falando em nome do poder mais vulgarmente exterior ao movimento proletário, crendo e fazendo crer que ele próprio se reconhecia, com a sua personalidade total, nesse poder como no seu próprio. Porquanto o seguimento manifestasse de que maneira esse poder desmente e suprime os seus lacaios, Lukács, desmentindo-se a si mesmo sem fim, fez ver com uma nitidez caricatural aquilo a que se tinha exactamente identificado: ao contrário de si-mesmo, e do que ele tinha defendido na História e Consciência de Classe. Lukács verifica o melhor possível a regra fundamental que julga todos os intelectuais deste século: o que eles respeitam mede exactamente a sua própria realidade desprezível. Lenine não tinha, no entanto, lisonjeado muito este género de ilusões sobre a sua actividade, ele que convinha que «um partido político não pode examinar os seus membros para ver se há contradições entre a filosofia destes e o programa do partido». O partido real, de que Lukács tinha apresentado fora do tempo o retracto sonhado, não era coerente senão para uma tarefa precisa e parcial: apoderar-se do poder no Estado.

 113 A ilusão neoleninista do trotskismo actual, porque é a cada momento desmentida pela realidade da sociedade capitalista moderna, tanto burguesa como burocrática, encontra naturalmente um campo de aplicação privilegiado nos países «subdesenvolvidos» formalmente independentes, onde a ilusão de uma qualquer variante de socialismo estatal e burocrático é conscientemente manipulada como a simples ideologia do desenvolvimento económico, pelas classes dirigentes locais. A composição híbrida destas classes relaciona-se mais ou menos nitidamente com uma degradação sobre o espectro burguesia-burocracia. O seu jogo, à escala internacional entre estes dois pólos do poder capitalista existente, assim como os seus compromissos ideológicos - nomeadamente com o islamismo -, exprimindo a realidade híbrida da sua base social, acabam por retirar a este último subproduto do socialismo ideológico toda a seriedade, salvo a policial. Uma burocracia pôde formar-se enquadrando a luta nacional e a revolta agrária dos camponeses: ela tende então, como na China, a aplicar o modelo estalinista de industrialização numa sociedade menos desenvolvida que a Rússia de 1917. Uma burocracia capaz de industrializar a nação pode formar-se a partir da pequena burguesia, dos quadros do exército tomando o poder, como o mostra o exemplo do Egipto. Em certos pontos, como a Argélia no fim da sua guerra de independência, a burocracia, que se constituiu como direcção para-estatal durante a luta, procura um ponto de equilíbrio de um compromisso para se fundir com uma fraca burguesia nacional. Enfim, nas antigas colónias da África negra que continuam abertamente ligadas à burguesia ocidental, americana ou europeia, uma burguesia constitui-se - a maior parte das vezes a partir do poder dos chefes tradicionais do tribalismo - pela posse do Estado: nestes países onde o imperialismo estrangeiro permanece o verdadeiro senhor da economia, chega um estádio onde os compradores (**) receberam, em compensação da sua venda dos produtos indígenas, a propriedade de um Estado indígena, independente face às massas locais mas não face ao imperialismo. Neste caso, trata-se de uma burguesia artificial que não é capaz de acumular, mas que simplesmente delapida, tanto a parte de mais valia do trabalho local que Ihe cabe, como os subsídios estrangeiros dos Estados ou monopólios que são seus protectores. A evidência da incapacidade destas classes burguesas a desempenhar a função económica normal da burguesia ergue perante cada uma delas uma subversão segundo o modelo burocrático mais ou menos adaptado às particularidades locais que quer apoderar-se da sua herança. Mas o próprio êxito de uma burocracia no seu projecto fundamental de industrialização contém necessariamente a perspectiva do seu revés histórico: ao acumular o capital ela acumula o proletariado, e cria o seu próprio desmentido, num país onde ele ainda não existia.

 114 Neste desenvolvimento complexo e terrível, que arrastou a época das lutas de classes para novas condições, o proletariado dos países industrializados perdeu completamente a afirmação da sua perspectiva autónoma e, em última análise, as suas ilusões, mas não o seu ser. Ele não foi suprimido. Permanece irredutivelmente existente na alienação intensificada do capitalismo moderno: ele é a imensa maioria dos trabalhadores que perderam todo o poder sobre o emprego da sua vida, e que, desde que o sabem, se redefinem como o proletariado, o negativo em marcha nesta sociedade. Este proletariado é, objectivamente, reforçado pelo movimento do desaparecimento do campesinato, como pela extensão da lógica do trabalho na fábrica, que se aplica a uma grande parte dos «serviços» e das profissões intelectuais. É subjectivamente que este proletariado está ainda afastado da sua consciência prática de classe, não só nos empregados, mas também nos operários que ainda não descobriram senão a impotência e a mistificação da velha política. Porém, quando o proletariado descobre que a sua própria força exteriorizada concorre para o reforço permanente da sociedade capitalista, já não só sob a forma de trabalho seu, mas também sob a forma dos sindicatos, dos partidos ou do poder estatal que ele tinha constituído para se emancipar, descobre também pela experiência histórica concreta que ele é a classe totalmente inimiga de toda a exteriorização petrificada e de toda a especialização do poder. Ele traz a revolução que não pode deixar nada no exterior de si própria, a exigência da dominação permanente do presente sobre o passado, e a crítica total da separação; e é disto que ele deve encontrar a forma adequada na acção. Nenhuma melhoria quantitativa da sua miséria, nenhuma ilusão de integração hierárquica é um remédio durável para a sua insatisfação, porque o proletariado não pode reconhecer-se veridicamente num dano particular que teria sofrido, nem, portanto, na reparação de um dano particular, nem de um grande número desses danos, mas somente no dano absoluto de estar posto à margem da vida.

 115 Aos novos sinais de negação, incompreendidos e falsificados pela ordenação espectacular, que se multiplicam nos países mais avançados economicamente, pode-se já tirar a conclusão de que uma nova época está aberta: depois da primeira tentativa de subversão operária, é agora a abundância capitalista que falhou. Quando as lutas anti-sindicais dos operários ocidentais são reprimidas primeiro que tudo pelos sindicatos, e quando as correntes revoltadas da juventude lançam um primeiro protesto informe, no qual, porém a recusa da antiga política especializada, da arte e da vida quotidiana, está imediatamente implicada, estão aí as duas faces de uma nova luta espontânea que começa sob o aspecto criminal. São os signos precursores do segundo assalto proletário contra a sociedade de classe. Quando os enfants perdus (1) deste exército ainda imóvel reaparecem nesse terreno que se tornou outro e permaneceu o mesmo, eles seguem um novo «general Ludd», que desta vez os lança na destruição das máquinas do consumo permitido. 

 116 «A forma política enfim descoberta, sob a qual a emancipação económica do trabalho podia ser realizada», tomou neste século uma nítida forma nos Conselhos operários revolucionários, concentrando neles todas as funções de decisão e de execução, e federando-se por intermédio de delegados responsáveis perante a base e revogáveis a todo o instante. A sua existência efectiva ainda não foi senão um breve esboço, imediatamente combatido e vencido por diferentes forças de defesa da sociedade de classe, entre as quais é necessário muitas vezes contar com a sua própria falsa consciência. Pannekoek insistia justamente no facto de que a escolha de um poder dos Conselhos operários «propõe problemas» mais do que traz uma solução. Mas este poder é precisamente o lugar onde os problemas da revolução do proletariado podem encontrar a sua verdadeira solução. É o lugar onde as condições objectivas da consciência histórica estão reunidas; a realização da comunicação directa activa, onde acabam a especialização, a hierarquia e a separação, onde as condições existentes foram transformadas «em condições de unidade». Aqui, o sujeito proletário pode emergir da sua luta contra a contemplação: a sua consciência é igual à organização prática de que ela se dotou, porque esta consciência é inseparável da intervenção coerente na história.

 117 No poder dos Conselhos, que deve suplantar internacionalmente qualquer outro poder, o movimento proletário é o seu próprio produto, e este produto é o próprio produtor. Ele é para si mesmo a sua própria finalidade. Somente lá a negação espectacular da vida é por sua vez negada.

 118 A aparição dos Conselhos foi a mais alta realidade do movimento proletário no primeiro quarto do século, realidade que passou despercebida ou disfarçada porque ela desaparecia com o resto do movimento que o conjunto da experiência histórica de então desmentia e eliminava. No novo momento da crítica proletária, este resultado regressa como o único ponto invicto do movimento vencido. A consciência histórica, que sabe ter em si o seu único lugar de existência, pode agora reconhecê-lo, não já na periferia do que reflui, mas no centro do que sobe.

 119 Uma organização revolucionária existente antes do poder dos Conselhos - deverá encontrar lutando a sua própria forma - sabe já, por todas essas razões históricas, que não representa a classe. Deve somente reconhecer-se a si própria como uma separação radical para com o mundo da separação.

 120 A organização revolucionária é a expressão coerente da teoria da práxis entrando em comunicação não-unilateral com as lutas práticas, em devir para a teoria prática. A sua própria prática é a generalização da comunicação e da coerência nestas lutas. No momento revolucionário da dissolução da separação social, esta organização deve reconhecer a sua própria dissolução enquanto organização separada.

 121 A organização revolucionária não pode ser senão a crítica unitária da sociedade. isto é, uma crítica que não pactua com nenhuma forma de poder separado, em nenhum ponto do mundo, e uma crítica pronunciada globalmente contra todos os aspectos da vida social alienada. Na luta da organização revolucionária contra a sociedade de classes as armas não são outra coisa senão a essência dos próprios combates: a organização revolucionária não pode reproduzir em si as condições de cisão e de hierarquia que são as da sociedade dominante. Ela deve lutar permanentemente contra a sua deformação no espectáculo reinante. O único limite da participação na democracia total da organização revolucionária é o reconhecimento e a auto-apropriacão efectiva, por todos os seus membros, da coerência da sua crítica, coerência que deve provar-se na teoria crítica propriamente dita, e na relação entre esta e a actividade prática.

 122 Quando a realização, cada vez mais poderosa da alienação capitalista a todos os níveis, tornando cada vez mais difícil aos trabalhadores reconhecer e nomear a sua própria miséria, os coloca na alternativa de recusar a totalidade da sua miséria ou nada, a organização revolucionária teve de aprender que ela já não pode combater a alienação sob formas alienadas.

 123 A revolução proletária está inteiramente suspensa desta necessidade que, pela primeira vez, é a teoria enquanto inteligência da prática humana que deve ser reconhecida e vivida pelas massas. Ela exige que os operários se tornem dialécticos e insiram o seu pensamento na prática; assim, ela pede aos homens sem qualidade bem mais do que a revolução burguesa pedia aos homens qualificados que ela delegava para os empreendimentos: porque a consciência ideológica parcial edificada por uma parte da classe burguesa tinha por base essa parte central da vida social, a economia, na qual esta classe estava já no poder. O próprio desenvolvimento da sociedade de classes até à organização espectacular da não-vida leva, pois, o projecto revolucionário a tornar-se visivelmente o que ele já era essencialmente.

 124 A teoria revolucionária é, agora, inimiga de toda a ideologia revolucionária e sabe que o é.

 GUY DEBORD

 (1) Gíria militar francesa designando extrema vanguarda (Guerra dos Trinta Anos). (N. T.)

 (*) Mantém-se o original para não alterar a dimensão conferida por Hegel (N. T.)

 (**) Em português, no original. (N. T.)

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