sábado, 8 de setembro de 2012

CONTRA O TRABALHO




Texto publicado em KAOS #0, 06/1997 (boletim aperiódico e experimental do Grupo Autonomia), onde apresentava o seguinte cabeçalho:



Por que trabalhamos? A resposta não é tão fácil quanto parece. Sem um longo processo de sujeição física e psíquica, de opressão cotidianizada, de educastração ou internalização de valores morais sexualmente repressivos e enunciados racionalizadores (do sacrifício, da culpa, do dever, da renúncia...), dificilmente alguém trabalharia.

O significado da palavra trabalho remonta à sua origem latina: tripalium (três paus) - instrumento utilizado para subjugar os animais e forçar os escravos a aumentar a produção. O tripalium era, pois, um instrumento de tortura, algo semelhante à cruz que o rebanho cristão adotou como objeto-símbolo de um culto masoquista.

Antes de adquirir o significado moderno – isto é: urbano, industrial e capitalista – a palavra trabalho designava atividades estafantes, insalubres e penosas. Hoje, seu significado é mais extenso e difuso. O que caracteriza o trabalho é justamente o fato de se tornar cada vez mais abstrato, pois já não se refere a essa ou aquela atividade, mas à atividade e ao esforço em si mesmos. Já não plantamos, tecemos ou pastoreamos, tampouco operamos um equipamento; simplesmente, trabalhamos. Iniciando uma discussão que consideramos das mais fecundas e relevantes, transcrevemos abaixo um trecho das Tesis de Orientación Programática, do Grupo Comunista Internacionalista, da Bélgica.

TESE 40:

"O trabalho é a negação da vida, da alegria e do prazer humano. O trabalho faz do homem um estranho para si mesmo, alienado da humanidade como um todo. O trabalho é a atividade humana subjugada às necessidades da classe dominante, que se apropria do sobreproduto obtido mediante a exploração das outras classes.

O capitalismo, ao separar os explorados de seus meios de vida e de produção, impôs a escravidão assalariada por toda a parte, reduzindo o homem à condição de trabalhador.

No trabalho, o proletário se vê completamente despojado de seu produto, alienado, negado em sua essência, em sua vida, em seus desejos... Além de desperdiçar seu suor, seu sangue e sua vida, numa atividade cujo absurdo só é menor do que o embrutecimento que acarreta, o trabalhador é separado dos demais homens, separado da espécie humana.

Somente na luta contra o trabalho, contra a atividade que estão forçados a executar e contra aqueles que os forçam, os proletários se reapropriam de sua condição humana. Com a generalização desta luta e a conseqüente negação da sociedade atual, avançam no sentido de uma sociedade comunista, na qual toda atividade humana estará voltada para a satisfação das necessidades humanas."

TESE 40A:

"Todas as ideologias do capital fazem a apologia do trabalho, como a atividade mais importante, à qual tudo se subordina, a atividade essencial do homem. O homem é considerado não como tal, mas ´pelo que faz na vida`, o que, na sociedade capitalista, quer dizer ´profissão`, ´trabalho`. Tais ideologias se baseiam no sacrifício, na renúncia, na interiorização das emoções e dos sentimentos...

Ao trabalho corresponde o sacrifício e a este, a religião (incluída a religião capitalista de estado, do marxismo-leninismo), como tentativa de justificar a repressão dos desejos e prazeres humanos, para a maior glória da burguesia.

Os sacerdotes e mandarins de todas as ideologias - entre os quais a esquerda do capital, que enaltece as mãos calosas do proletariado e se vangloria da miséria alheia - oferecem dogmas e ilusões para todos os gostos, propondo ´uma sociedade futura`, onde - após a morte, certamente - os proletários terão a recompensa pelos sacrifícios e renúncias que fizeram, a partir do momento em que aceitaram a mais desigual das trocas: a troca da vida pela sobrevivência ."






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Contra a impunidade dos torturadores e assassinos


Cone Sul:

Contra a impunidade dos torturadores e assassinos



O espetáculo Pinochet

Augusto Pinochet Ugarte comandou um dos maiores massacres do proletariado, no qual utilizou massiva e sistematicamente a tortura, o desaparecimento, os fuzilamentos,... o terrorismo de Estado declarado. Então, nada mais legítimo que tal personagem concentre todo o ódio do proletariado internacional e que qualquer ação contra tão repugnante sujeito suscite a simpatia de todo aquele que em qualquer parte do mundo luta contra o Estado.

Se os operários tivessem fuzilado esse senhor em qualquer bairro de Santiago, se um grupo de “incontrolados” o tivesse justiçado quando passeava, se suas tripas tivessem sido utilizadas para enforcar alguns torturadores, poderíamos nos alegrar e festejar por haver ganhado pelo menos uma batalha, nesta guerra, em que a burguesia continua ganhando.

Mas, lamentavelmente, não é assim. Muito pelo contrário, o proletariado internacional aparece realmente enfraquecido frente a um espetáculo sinistro no qual os verdadeiros protagonistas são diferentes personagens do Estado: Pinochet fazendo o papel de “mau”, enquanto que juízes, lordes, deputados fazem o papel dos “bons”, pelos quais teríamos de torcer.

Poderíamos começar denunciando todos os “bons”, todos os democratas por sua cumplicidade mais ou menos aberta com essa ou outras formas de terrorismo de Estado. Nem um juiz espanhol, por exemplo, poderia ficar isento de sua participação no terror do Estado (de hoje ou de ontem), e muito menos o tristemente célebre Baltasar Garzón que é por excelência o juiz do “antiterrorismo” que ao mesmo que persegue Pinochet ou os altos funcionários socialistas espanhóis por sua guerra suja contra o ETA, comanda os corpos especiais da polícia política em sua ação repressiva contra os militantes proletários que combatem o Estado, autorizando as longas incomunicabilidades dos presos, os interrogatórios brutais e os prepotentes traslados, e que é questionado, até mesmo pela burguesia, em toda Espanha, pela violação dos direitos humanos mais elementares, como o direito de expressão e imprensa (1). Garzón, é sem dúvida, farinha do mesmo saco que Pinochet.

Até as próprias Madres de Plaza de Mayo, conhecidas por sua intransigência, em algum momento tiveram a esperança de que o famoso Baltazar Garzón estivesse do lado do justiçamento dos tenebrosos personagens causadores do terrorismo de Estado latino-americano, mas logo compreenderam que esse juiz também faz parte do terrorismo de Estado espanhol e portanto do terrorismo de Estado internacional do capital. E não hesitaram em denunciá-lo:

“No começo das atuações de Baltazar Garzón, no julgamento dos genocidas argentinos, recebemos numerosas denúncias sobre os mais terríveis casos de torturas aos prisioneiros políticos espanhóis, com o consentimento da Audiência Nacional.

Para as Madres de Plaza de Mayo, com 21 anos de lutas nas costas, enfrentando primeiro a ditadura militar e logo depois os governos fantoches dos Estados Unidos, suportando governos de narcotraficantes e assassinos, Baltazar Garzón era uma esperança. Acreditávamos que em algum país do mundo existia a justiça e que os juízes eram homens honrados y dignos.

Com o passar do tempo fomos aprendendo que Garzón tomava suas decisões de acordo com os cálculos políticos e não em função da lei e da justiça. A libertação de Silingo foi uma bofetada nas esperanças das Madres de Plaza Mayo de obter justiça. Compreendemos que esses processos eram úteis para perseguir os genocidas na Argentina, mas que não existia uma determinação clara de condenar os responsáveis pelo desaparecimento de nossos 30.000 filhos.

Ao mesmo tempo que descobríamos as manipulações políticas de Garzón neste julgamento começamos a descobrir o verdadeiro rosto da Justiça Espanhola. Descobrimos que a tortura, as violações e as execuções são parte das ferramentas do terrorismo de Estado ordenado primeiro por Felipe Gonzalez e agora por Aznar.

Os juízes da Audiência Nacional nos mostraram sua verdadeira face: a mesma que possuíam os juízes argentinos da ditadura e a mesma que exibiam os juízes do nazismo.”(2)

Se a Audiência Nacional não fosse uma instituição cúmplice do terrorismo de Estado democrático não teria começado por julgar os membros históricos do aparato policial fascista espanhol, dos quais nunca tirou o sono? Se não fosse cúmplice da impunidade legalizada não teria se ocupado de julgar os criminosos militares franquistas que passeiam pelas ruas espanholas? Ou por acaso podemos considerar que Pinochet é mais criminoso que os criminosos franquistas ou argentinos?

Poderíamos também denunciar cada um dos lordes ingleses, ou melhor, recordar o papel histórico desses criminosos de toga, legítimos agentes desse tenebroso estado corsário. Poderíamos gritar o absurdo e ridículo que é pretender fazer justiça com Pinochet sem fazer contra todo o corpo policial e o exército chileno, e recordar que quando ocorreu o massacre de proletários no Chile, em 1973 e nos anos seguintes, todo o mundo sabia que Pinochet não poderia fazer o que fez sem a cumplicidade de outros Estados nacionais da América Latina e do mundo. Poderíamos voltar a sublinhar o que até a esquerda burguesa denunciou sempre: que Pinochet não é mais que um fantoche dirigido por interesses internacionais muito mais poderosos e recordar a participação direta de outras forças de segurança ou de empresas multinacionais na preparação do massacre: como o Pentágono, a CIA ou a ITT.

O “espetáculo Pinochet”, para cumprir o objetivo de absolver o Estado burguês mundial e de subjugar o proletariado frente a esse magnífico espetáculo, necessitava de apresentá-lo como a encarnação da maldade e por isso mesmo ele não devia misturar-se com outros personagens. Tudo que circula nos meios de formação da opinião pública tende a fazer esquecer o que todo mundo sabia: que a repressão no golpe de Pinochet, como na Argentina, Uruguai, Bolívia, Brasil, Paraguai, Peru... desses anos foi coordenada entre os milicos de todos esses países (“Operação Condor”) e dirigida centralmente pelos Estados Unidos (coordenação que seguiu existindo durante anos e que com certeza deve existir ainda hoje!), que se se condena Pinochet como o mais alto responsável pelo terrorismo de Estado (quando na realidade foi uma espécie de subgerente chileno de assuntos gerais do capital mundial), dever-se-ia condenar com igual (ou maior) rigor todos os dirigentes dos Estados Unidos (como de vários países europeus) e em particular o mesmíssimo senhor Reagan, Henry Kissinger, Cyrus Vance, Bush, assim como muitos outros notáveis chefes de Estado da época.

O que também querem que esqueçamos com o espetáculo Pinochet, é a cumplicidade geral da Democracia Cristã internacional e nacional, assim como o próprio Eduardo Frei, com toda a matança que Pinochet e companhia levaram a cabo. O que deixaria muito claro porque Eduardo Frei (filho) invoca hoje a soberania do Chile, para pedir a liberdade de Pinochet.

Esquece-se, pois, o apoio econômico, assim como em armamentos e instruções policiais, que o Governo de Pinochet recebeu durante anos de governos de esquerda e de direita da tão representativa democracia européia. Citemos como exemplos o brindado pelo governo da Tatcher (esta senhora, é uma das poucas, que não escondeu sua profunda amizade por Pinochet), e o dado pelo governo socialista da Espanha que presidiu Felipe Gonzalez. E o que dizer do papel do Vaticano, que nunca falou de humanidade quando os pinochetistas perpetuaram o massacre, e que agora fala de razões humanitárias para pedir a liberdade de... Pinochet!

Muito mais esquecidas ainda se encontram as próprias lições proletárias sobre a responsabilidade direta, no impressionante massacre dos proletários, da Unidade Popular e seu líder Salvador Allende. Recordemos que sob esse governo o proletariado no Chile gritava desesperado que o massacre se preparava graças à repressão que já se havia iniciado sob o governo do senhor Allende. Como dizia a carta que os Cordões Industriais enviaram a Allende, uns dias antes do golpe militar: “(você) será responsável de levar o país, não a uma guerra civil que já está em plena evolução, mas a um massacre frio e planificado da classe operária mais consciente e organizada da América Latina e que será responsabilidade histórica deste governo, levado ao poder e sustentado com tanto sacrifício pelos trabalhadores, camponeses, estudantes, intelectuais, profissionais, a destruição e o descabeçamento, talvez, por qual prazo e a que custo sangrento, não só do processo revolucionário chileno como também de todos os povos latino-americanos que estão lutando pelo socialismo.” (3) Com Allende, Pratts e Pinochet (que o próprio Allende havia nomeado), o governo e as forças armadas foram atacando e desarmando sistematicamente o proletariado, ou seja, destruindo a única barreira existente que impedia o terrorismo de Estado aberto que a burguesia internacional reclamava nesse momento. Como denunciava o mesmo documento  “A Lei de Controle de armas, nova ‘lei maldita’, que serve unicamente para prejudicar os trabalhadores, com os atropelos praticados nas industrias e povoados, que está servindo como um ensaio geral para os setores golpistas das Forças Armadas, que assim estudam a organização e capacidade de resposta da classe operária, numa tentativa de intimidá-los e identificar seus dirigentes”.  Quando o proletariado gritava isso, Allende, confiando em seu amigo Pinochet (por isso a burguesia de esquerda chilena explicaria logo o golpe pelo que chamaram “generais traidores”), continuava avalizando o indispensável fichamento que as forças repressivas estavam realizando contra toda organização autônoma do proletariado.

Mais ainda: podemos esquecer que o massacre de Pinochet foi possível porque a ação decidida do exército chileno conseguiu surpreender muitos, graças a propaganda que o Estado havia realizado sobre “a tradição democrática e antigolpista do exército chileno”, propaganda realizada pela boca do próprio Allende, que se baseava em sua própria estupidez social-democrata e na profunda imbecilidade dos assessores e analistas identificados com a sociologia francesa (encabeçada por Alain Touraine)? Podemos esquecer que cada vez que o proletariado saiu às ruas reclamando armas, Allende respondeu-lhe dizendo que devia voltar para casa, beijar sua mulher...que tudo ia bem? Podemos esquecer que os artífices do desarmamento do proletariado e o massacre proletário foram então as mesmas forças que hoje no Chile exercem o poder: o eixo Democracia Cristã - Partido Socialista? Ou que este Frei é a cópia de seu pai, velho admirador de Hitler ?

Pérola da Burguesia:

“Em 1973, entrevistei Allende várias noites em sua casa. Alertei-o, como fizeram muitos outros, de que se estava preparando um golpe. Inclusive, mostrei os testemunhos gravados dos que me confessavam os preparativos da operação. Mas ele me chamava de iludido “Não estamos na Espanha - dizia - O exército chileno tem mais de cem anos de tradição democrática.”

Quem fala na primeira pessoa é o fotógrafo Miguel Herberg; extraído de um artigo de Javier Cuartas, publicado no periódico Nueva España em 7/12/98 e que foi reproduzido em março de 1999 no BICEL.

E se hoje até o Papa se mostra tão penalizado pelo ancião Pinochet, por acaso pode-se esquecer que toda a Igreja Católica mundial, não só com seu apoio implícito, mas com sua participação explícita como o arcebispo do Chile, Silva Henríquez, ao lado dos chefes do exército, foi decisiva na gestão dos campos de concentração, na tortura dos prisioneiros, no desaparecimento e assassinato de milhares de lutadores sociais? E não só no Chile, mas na Argentina, Uruguai, Paraguai, Espanha, Peru, El Salvador, Nicarágua, Colômbia, Bolívia,...

Claro que o espetáculo Pinochet se baseia nas condições muito particulares que reúne tão importante e repugnante personagem. Na verdade, Pinochet é a nível internacional o ditador por excelência. O que o caracteriza não é a famosa violação dos direitos humanos, a tortura, o desaparecimento forçado de pessoas, o assassinato sistemático de lutadores proletários, porque este é um verdadeiro mínimo denominador comum entre vários personagens nos quatro cantos do globo. Sem ir mais longe no próprio continente com Jorge Rafael Videla, Stroesner, Gregorio Alvarez, Alberto Fujimori,... que sem dúvida têm realizado massacres comparáveis aos do famoso Pinochet. Se algo caracteriza Pinochet frente aos demais, além de sua asquerosa cara e sua repugnante expressão sempre coberta de seus famosos óculos escuros (que por si só o habilitam a cumprir essa função de monstro que nos representam os meios de comunicação (4)), é ter aparecido publicamente liquidando seus antigos aliados (Allende e companhia), sem nenhuma consideração pela ordem constitucional existente até então. O que dá esse prestigioso título internacional a Pinochet, de aparecer como muito mais ditador do que os outros, é o fato de ter emergido liquidando violentamente uma opção que amplos setores burgueses consideravam como sua: a social-democracia internacional sob sua forma socialista, stalinista ou trotskista. Os outros mataram tanto quanto e até mesmo mais do que Pinochet e companhia, mas foram se impondo paulatina e democraticamente e realizaram os massacres com a autorização total ou parcial das instituições democráticas, que em muitos casos mantiveram. Inclusive, a nível internacional, os casos da Argentina, do Peru, do Uruguai, do Paraguai, da Bolívia... são para a burguesia mundial muito mais difíceis de explicar do que o caso chileno. Naqueles, as ditaduras aparecem muito claramente como o produto do desenvolvimento e das necessidades das instituições democráticas (por exemplo, na Argentina, Uruguai, Peru... se tortura, seqüestra e mata abertamente em plena república parlamentar) enquanto que no Chile (se se excetuam, está claro, alguns punhados de militantes torturados ou liquidados em pleno governo Allende, como por exemplo, os militantes do VOP), aparece como se fosse uma ruptura com aquelas. Também por essa razão, a ditadura de Pinochet desempenha melhor o papel de modelo que as outras. Aqui a ditadura pode apresentar-se como algo oposto à democracia, o que coincide com o interesse da burguesia internacional em ocultar que seu sistema democrático é na realidade uma ditadura, em ocultar que as instituições democráticas prevêem sempre a guerra de classes e o terrorismo aberto contra o proletariado quando este luta contra o poder do Estado.

Por tudo que foi dito, nós sentimos uma profunda repugnância não só pelo que mostra o espetáculo Pinochet, mas também pelo o que ele esconde.

Com efeito, desde o ponto de vista mais geral das contradições de classe, quem se beneficia com o espetáculo Pinochet é evidentemente o capital e o Estado que aparece purificando-se, limpando-se da maldade: o terrorismo de Estado é apresentado assim como oposto à democracia (5), toda campanha publicitária tende a nos mostrar que não é o capitalismo que engendra o terrorismo de Estado em todas suas formas, mas os ditadores, os que tem cara de maus.

Da mesma maneira se faz em cada guerra, em cada massacre generalizado. Sempre se explica a barbárie generalizada pela culpa de tal ou qual louco ou ditador. Faz-se a caricatura de Pinochet como ontem se fez a de Hitler, de Sadam Hussein ou de Milosevic. Extermina-se, bombardeiam cidades inteiras e bairros proletários, como na chamada Segunda Guerra Mundial, e hoje no Iraque ou na ex-Yugoslávia em nome de enfrentar tal ou qual personagem e implantar a paz. Trata-se de esconder que a barbárie das guerras é o produto “natural” da sociedade do capital, da evolução e do progresso inerente à sociedade burguesa. Parafraseando alguns companheiros que há vários anos denunciavam a política burguesa do antifascismo e o fato de colocar Hitler em primeiro plano para ocultar a barbárie democrática, em  “Auschwitz, o grande Álibi” , podemos dizer que Pinochet é hoje o grande álibi da burguesia mundial (6).

A impunidade e sua falsa contestação

Por que tanto alarde internacional pelo caso Pinochet? Precisamente por todas essas razões:

· porque serve de álibi, como serviu Nuremberg (7), frente à barbárie generalizada do capital.
 · porque mais esconde do que mostra.
 · porque volta a criar uma polarização interburguesa baseada na sua imunidade ou não.
 · porque situa o assunto na esfera jurídica dos Estados e muito longe da ação direta.
 · porque serve ao Estado mundial para fingir que se opõe às práticas de terrorismo estatal que, não obstante, lhe são essenciais.
 · porque a democracia internacional se recredibiliza, condenando um ditador por “não ser democrático”.

Enfim, o mais importante de tudo: porque desmobiliza o proletariado, porque o submete ao sinistro espetáculo jurídico democrático no interior do Estado: da Inglaterra, da Espanha, do Chile... porque assim se afirma a política geral da burguesia de retirar a luta contra a impunidade das ruas e levá-la aos tribunais e parlamentos.

Com efeito, a receita infalível do Estado mundial foi, é e será, a de retirar “A luta pelos desaparecidos e contra a impunidade” (8) do terreno da força, do terreno das ruas, e levá-la ao terreno formal da própria justiça burguesa, dos papéis, dos impressos, dos expedientes, dos homens de gravata e togas negras. A dominação burguesa quer eliminar tal questão do terreno do enfrentamento de classes no qual se corre o risco de que os torturadores e criminosos do Estado democrático sejam julgados nas ruas ou atacados pelos proletários, e tranqüilizar a massa fazendo-a crer que serão os juízes, as leis, os parlamentos, as instituições burguesas que farão justiça. Enfim, os próprios torturadores, os próprios assassinos estão muito mais tranqüilos quando o que os ameaça não são os proletários incontrolados mas seus próprios colegas do Estado. Dentro da justiça institucional, o risco maior que os criminosos de Estado correm é uma “prisão” de luxo, como as que tiveram durante algum tempo alguns dos criminosos de Estado argentinos (ou a que hoje também tem alguns notáveis milicos torturadores desse país) ou como a de Pinochet hoje. Como dizem as prisioneiras chilenas, Pinochet não sofrerá nenhuma das humilhações que suportam os que estão presos por lutar contra o Estado:

“Ele não foi seqüestrado pelos aparatos repressivos, que nos detiveram. Não o torturaram diante de seus filhos, não o acorrentaram, não o golpearam, não lhe vendaram os olhos, não o pressionaram durante dias de interrogatório.

Não o submeteram à incomunicabilidade por dias intermináveis, indefeso, sem ver ninguém a não ser os carrascos, à incerteza de não saber se sairia vivo ou morto... como a nós.

Não o satanizaram no espetáculo público dos meios de comunicação, agora é um pobre velho; no Chile não o chamam de delinqüente, nem de terrorista... como a nós.

Não o levaram à prisão novamente incomunicável, ameaçado, tentando debilitá-lo ou derrotá-lo... como a nós.

Não o levaram, ao tribunal nem a repartições militares, não o submeteram a processos absurdos, não o condenaram à prisão perpétua nem à pena de morte nem a 300 anos de prisão... como a nós.

Ninguém se atreverá a fuzilá-lo como assassino, terrorista, genocida... mesmo que isso seja o que ele merece, é certo que por uma ou outra razão ficará livre e não preso por anos, como nós.” (9)

Muito pelo contrário: Pinochet é tratado como um rei. Entre eles tem funcionado o acordo de que quem deve pagar a conta são as Forças Armadas Chilenas... ou seja, até a luxuosa estadia européia de Pinochet, em uma suntuosa residência britânica, é paga pela mais-valia extorquida do proletariado no Chile... enquanto que os proletários presos nesse país continuam sendo tratados pela “jovem democracia” da mesma forma que Pinochet os tratava.

A luta contra a impunidade continua: operação ESCRACHE

No fundo, a luta por nossos irmãos desaparecidos e contra todos os criminosos de Estado, nunca terminou. E ela mesma não se desenvolveu graças as instituições burguesas, mas apesar de suas ações para canalizá-la, desviá-la, diminuí-la e liquidá-la.

Hoje mesmo, no Chile, nem todas as manifestações estão pró ou contra manter Pinochet aprisionado, como têm tratado de nos fazer crer a nível internacional. Como a carta citada antes o testemunha, o proletariado nesse país continua sua luta contra a impunidade e muitos setores do mesmo rechaçam o mito e o espetáculo montado em torno da figura de Pinochet.

Mas não há dúvida de que o que mais questionado a impunidade generalizada que o estado burguês mundial impôs e quer impor sobre a América Latina é o que se conhece na Argentina como “operação ESCRACHE”  (10).

Sob diferentes denominações (Madres, Abuelas, Familiares, Hijos...) e contra toda a política dos partidos políticos e as tentativas institucionais de anistiar e consagrar a impunidade (“Lei de ponto final”, “Lei de Obediência Devida”, etc.) a luta tem mantido uma constância exemplar. Longe de ir se esgotando pelo desgaste ou a avançada idade de seus melhores militantes e apesar de seus momentos baixos, tem adquirido novas forças: o que mais preocupa o Estado na Argentina (e em outros países) é o fato de que novas gerações de proletários voltaram a levantar as velhas bandeiras do movimento. Por exemplo, a palavra de ordem  “nem esquecimento, nem perdão” , que tanto aterroriza os criminosos de Estado, volta a aterrorizar os ignorantes adquirindo talvez, mais força do que no passado: sobretudo na medida em que, quando a consideravam mais ou menos esgotada, volta a ser assumida pelas novas gerações como parte de sua luta revolucionária contra o capital e o Estado.

A mentira dos julgamentos e das prisões dos torturadores

O estado democrático burguês nunca liquidará seus melhores representantes, os militares torturadores, ao contrário, sempre os protegerá. A esquerda burguesa sempre tratou de canalizar a raiva proletária contra os militares através das instituições, através dos julgamentos. No Uruguai, o cretinismo parlamentar chegou ao extremo de coletar abaixo-assinados para fazer um referendum cuja máxima reivindicação era o julgamento dos militares!

Vejamos como resume uma das Madres de Plaza de Mayo (Evel Petrini) a mentira dos julgamentos:

“O governo constitucional de Alfonsín, que foi quem procurou os quartéis para que os militares fossem salvar e derrubassem o governo institucional (de Isabel Perón), primeiro fez um julgamento infundado com o qual quis fazer-se reconhecer como um grande democrata e esse julgamento estava totalmente preparado, totalmente traçado pelos militares, porque de trinta mil desaparecidos escolheram setecentos casos, foram julgados somente duzentos e apenas setenta condenados. Assim se tem uma noção do que foi o julgamento. Strassera, que foi tão homenageado como fiscal, era um juiz da ditadura que, esmurrando a mesa, jogava nossos habeas corpus no lixo e nos dizia: ‘Senhora, não pergunte por seu filho porque não está aqui no país ou está com outra mulher’, esse era o mesmo que estava julgando os militares, dessa forma mal podíamos acreditar que iriam fazer justiça. Foram para umas prisões especiais, com campo de golfe, a família ia visitá-los, em chalés especiais, aos cinco ou seis que foram condenados. Portanto, foi uma farsa total e absoluta e nos disseram que não tínhamos que ir para a praça porque éramos anti-argentinas e dávamos uma má imagem ao país e então, sobre as Malvinas, disseram também que éramos anti-argentinas, que não apoiávamos a guerra, então, todos esses tratamentos que as Madres sofremos, com o tempo foram demonstrando, que tínhamos razão: que não havia uma intenção política de deter os assassinos, porque eles também falam de pessoas e são pessoas, são instituições, porque as instituições e as pessoas foram as que fizeram todas essas atrocidades. Todas, com ordens superiores, desde o mais alto ao mais baixo, todo aquele que conhece o que são as Forças Armadas sabe que existe uma ordem mas que todos, desde acima à baixo, fazem o que lhes manda a ordem e que se não o fazem, têm de sair. E pelo visto não saiu ninguém. Dessa forma são todos os militares, todas as Forças Armadas, toda a Igreja da cúpula (menos os padres de base) que nesse momento compartilhavam com os militares as decisões e os campos de concentração, de como e porque tinham que matar nossos filhos. Assim, as Madres condenamos tudo isso, coisas que jamais foram faladas nos julgamentos. Depois veio Menem e decretou os indultos de forma que liberou os poucos que haviam sido condenados, portanto é tudo uma farsa, é tudo um convênio, é tudo um acordo ou uma transação com os militares para que lhes dessem o poder...”  Retirado de uma reportagem feita com Evel Petrini (secretária das Madres de Plaza de Mayo) pelo jornal da CNT da Espanha de dezembro de 1998.

A denúncia continua, em todos os países do Cone Sul. Por exemplo no Chile e no Uruguai, os torturadores e assassinos não tem tido vida muito fácil por causa da constante denúncia de alguns deles por todos os meios. Mas, sem dúvidas, a operação ESCRACHE, desenvolvida, no momento, principalmente na Argentina, tem sido a causadora de maior impacto social na sociedade.

O ESCRACHE em oposição a um conjunto de propostas institucionais da burguesia para “julgar os responsáveis” (“julgamentos tribunais civis”, “plebiscitos”, “apelações”, “comissões parlamentares de inquérito”, “anulação jurídica de tal lei”, “voto verde”,...), se caracteriza pela participação direta do proletariado. Como nos outros países, se denunciam os torturadores e assassinos, em especial aqueles que constituíram “uma nova vida”, encobrindo seu papel criminoso na liquidação dos militantes revolucionários. Grupos de homens e mulheres que não estão dispostos a aceitar o que promete a justiça institucional, quando descobriam um torturador que havia escondido seu passado, faziam o possível para denunciá-lo.

Mas, em seguida, o ESCRACHE como o significado dessa palavra diz foi muito mais que a simples denúncia: em alguns casos se faz uma manifestação em frente a casa de tão pacífico cidadão e grita-se no bairro seu passado; em outros, vai-se ao seu local de trabalho e o denunciam; em outros, atiram-se ovos podres ele; em outros, se faz um terrível escândalo no bairro com tambores e panelas; em outros se distribuem panfletos do sujeito bem escrachado com fotos do passado e do presente; e, em muitos casos, se escreve nas paredes de sua própria casa... Na maioria das vezes, os ESCRACHES utilizam vários desses procedimentos, procurando, em todos os casos, liquidar a cínica e pacífica existência cidadã do sujeito em questão. Os ESCRACHES, ao contrario de outras formas de denúncia, se caracterizam pela agitação de rua, por fazer muito barulho, por incorporar os vizinhos à atividade, por ser uma atividade que pode se reproduzir de forma cada vez mais ampliada.

ESCRACHES é bater em alguém, “queimá-lo” publicamente, fotografá-lo. Segundo o dicionário de Lunfardo de José Golbello, ESCRACHES do verbo ESCRACHAR significa: “Lançar algo com força. Surrar, espancar.”  Segundo esse autor, o termo vem  “do genovês (scraccâ) ou do piemontês (scracè) escarrar” . Pensamos que tampouco está longe do francês “ecraser” ou do italiano “schiacciare”, porque nos diferentes significados em que essa palavra se utiliza na Argentina também expressa: arrebentá-lo, esmagá-lo, chocá-lo, deixá-lo totalmente achatado, convertê-lo em um escracho (que, por sua vez, quer dizer algo feio, horroroso, repugnante). Gobelo disse ainda que ESCRACHO quer dizer “Fotografia de uma pessoa, especialmente de seu rosto. Cara, rosto - dito em geral depreciativamente. Pessoa feia e desagradável”.

No princípio, as organizações que a lançaram denominaram essa campanha  “Conheçamos nossos assassinos”  e seu objetivo era a denúncia. Mas a intervenção decidida de alguns círculos e companheiros permitiu ampliar os objetivos iniciais, ao mesmo tempo que foi adotando o nome de ESCRACHE (acreditamos que no final de 1997 ou princípio de 98) que já portava uma das comissões do H.I.J.O.S.  (Hijos por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio - Filhos pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio).

É interessante conhecer alguns casos, para compreender o desenvolvimento qualitativo do movimento. Salvo informação contrária, o primeiro escrachado foi Jorge Magnaco, médico ginecologista que atendia aos partos no centro de desaparecimento forçado denominado ESMA. Sua ação foi decisiva para retirar os filhos recém-nascidos de suas mães, que seriam “desaparecidas”, e entregá-los aos que os mantém seqüestrados (a maioria militares de alta ou média graduação, que participa de operações de tortura, seqüestro e assassinato), em muitos casos, até hoje. Até seu escrache, o Sr. Magnaco como muitos outros torturadores, assassinos e cúmplices, vivia uma aprazível e cômoda vida de médico de “prestígio”, sem que seu passado sujo fosse conhecido pela maioria de seus colegas e muito menos por seus pacientes. Aparentemente, através de uma investigação televisiva, conseguiu-se descobrir que trabalhava no Sanatório Mitre. O primeiro que fez uma delegação dos organismos que lutam contra a impunidade foi ir ao Sanatório e fazer os patrões da instituição médica conhecerem a realidade e tentar persuadi-los de demiti-lo. Mas é evidente que para um capitalista isso não podia ser argumento e a pacífica petição foi rechaçada. Foi necessário toda uma luta para começar a arruinar a vida de tão asqueroso sujeito! Efetivamente, foram necessárias várias manifestações desde o sanatório até sua casa assim como um inúmeros cartazes e pichações para queimá-lo realmente. Assim, pela mesma razão o que o haviam mantido (em última instância, a rentabilidade) os patrões do Sanatório viram-se obrigados a demiti-lo.

Isso foi e é muito importante, porque desde o princípio se verificava que só a ação direta e decidida, e não o diálogo com burgueses poderia realmente dar seus frutos tanto na queimação de um seqüestrador, como em seu aberto castigo social. Foi um castigo importante (claro que muito menor do que merecem!) fazê-lo perder o emprego, impor-lhe uma redução em seu nível de renda e de vida, talvez fazê-lo perder seu posição social, queimá-lo no bairro e em todas as partes, sem a mediação dos burgueses e sem sentar-se a esperar que a justiça institucional fizesse algo. Depois de mais de quinze anos de promessas da justiça democrática, haveria de ser por demais ingênuo para continuar esperando! Já não crêem muitos dos que acreditavam no conto democrático do Sr. Alfonsín em 1984! O que não havia dado certo em muitos anos de luta, conseguia impor a ação direta de uma minoritária manifestação proletária!

Com diferentes resultados, nos meses seguintes fizeram-se outros ESCRACHES: o de Julio Simón (aliás “Turco”), o de Juan del Cerro (aliás, “Colores”) em dezembro do mesmo ano. Nesses casos grupos de companheiros fazem algumas ações prévias para anunciar a manifestação geral de ESCRACHE no próprio bairro: fala-se com os vizinhos, fazem-se panfletos com a foto e o prontuário do torturador, picha-se sua casa (“aqui vive um assassino” ). Nestas ações, vai se constatando que, graças a toda estratégia permissiva do Estado democrático, o torturador havia se considerado até o momento absolutamente impune e que na maioria dos casos os vizinhos não sabem de nada e se surpreendem muito ao saber que esse cidadão modelo que vêem passar todos os dias, com o pão e o jornal debaixo do braço, é na realidade um assassino, um monstruoso torturador, um dos homens-chave do terrorismo de Estado. E, passada a surpresa, muitos vizinhos juntam-se à ação: alguns participam da manifestação, outros decidem não vender-lhe mais pão, noutros casos o ponto de táxi da esquina não lhe envia mais carro, cortam seu crédito no bairro, etc. Muitos querem expulsá-lo do bairro, outros dizem que deve-se lutar até que esses sujeitos sejam colocados na prisão (11). Enfim, vários torturadores mudam de endereço, tratando de se defender de novos escraches.

Em muitos casos, os escrachados, foram condenados pela justiça burguesa faz alguns anos. Alguns deles estiveram uns meses em prisão domiciliar ou em prisões de luxo, mas o espectro político argentino os anistiou e liberou todos, com base nas leis de Ponto Final e Obediência Devida e Indultos. Por isso, os escraches se situam diretamente contra essas leis e contra todo o espectro político argentino que as aprovou. A contraposição com a justiça burguesa, com a justiça formal se assume explicitamente nas palavras de ordem levantadas: “Contra a Lei de ponto final”, “Contra a Lei de Obediência Devida” e ainda mais claro: “Pela condenação social até a condenação real” .

Esta palavra de ordem unificava, por exemplo, os militantes que realizaram o escrache de Antonio Domingo BUSSI. Este escrache era uma verdadeira prova de fogo, um salto de qualidade com respeito aos outros, principalmente porque Bussi não é somente um milico (general) torturador e chefe da repressão, mas um dirigente oficial atualmente: governador da província de Tucumán. Bussi não é um representante da “ditadura militar”, seus principais méritos como terrorista de Estado foram realizados antes, em pleno governo de instituições democráticas, durante o governo peronista. Na verdade, tal sujeito foi o chefe supremo do plano de extermínio desenvolvido pela burguesia argentina, denominado “Operação Independência”. Nesse sentido, pode-se dizer que Bussi foi um verdadeiro precursor democrata de toda política militar de terrorismo de Estado aberto, que logo seria geral em todo o país, durante o que se chamou primeiramente “O Processo” e depois “A Ditadura” (12). Nesse sentido, também, o escrache de Bussi é uma prova de fogo, porque se situa contra toda a corrente que quer responsabilizar unicamente a “ditadura militar” pelos massacres, como se antes e depois dela não se houvessem empregado exatamente os mesmos procedimentos. Bussi, exerce as funções de governador da província, também hoje, em nome da república democrática (seu partido é o Partido Republicano). O escrache era complicado pela dificuldade em reunir companheiros, em pleno campo controlado policialmente pelo adversário, mas também pela distância que fica de Buenos Aires e o difícil e caro que era deslocar tantos companheiros de outras províncias. Conhecendo a proximidade de seu escrache, Bussi fugiu para Buenos Aires, onde passou o fim de semana e enviou 5000 milicos para reprimir. Apesar do impressionante aparato policial (um companheiro dizia que, quando começaram os escraches, havia um ou dois policiais vigiando, “hoje colocam 5 policiais para cada manifestante, além dos infiltrados à paisana” ) e de não ter sido possível nos aproximarmos do prédio do governo, devido ao cordão repressivo que o protegia, alguns objetivos importantes foram alcançados com a manifestação, efetuando-se atos e a praça que levava o nome de “Operação Independência” (recordação macabra da repressão) foi batizada com o nome do militante  “Fredy Rojas” , assassinado em 1987. Outras placas foram colocadas, com inscrições tais como: “companheiro desaparecido”  e  “Memória e Justiça” .

Inclusive, nesse caso muito difícil alcançaram-se objetivos importantes de unificação e escrache. Muitos outros altos militares foram também escrachados, inclusive do mais alto escalão: Galtieri, Videla, Massera, Etchecolatz, Acosta y Suarez Mason. Ao mesmo tempo que tais ações unificam, vão se superando os objetivos iniciais e o escrache vai se tornando mais potente.

Etchecolatz o bom cidadão

“Senhor vizinho: não posso ser infiel à minha norma de respeito e consideração por meus iguais. Não estou obrigado a pedir nenhum tipo de desculpas pelos episódios registrados na véspera, porque nunca participei nem participo de qualquer expressão de violência, mas é meu dever e obrigação de bom cidadão e vizinho transmitir-lhe meu pesar pelos momentos de incerteza e riscos que injustamente teve de suportar.”

O comovedor bilhete acima foi passado pelo ex-comissário general Miguel Etchecolatz (chefe de polícia de Buenos Aires durante o período de maior repressão, mão direita do General Camps, responsável por vários campos de concentração - o Poço de Quilmes, o COT 1Martinez, Porto Vasco e Arana -, responsável pela “Noite dos Lápis”) por baixo da porta pelos seus vizinhos do edifício Pueyrredón y Córdoba, logo após o escrache realizado pelo H.I.J.O.S. Esse bom cidadão havia sido condenado a 23 anos de prisão por assassinatos e torturas reiterados, mas foi liberado pela lei de Obediência Devida. Como em outros casos, hoje Etchecolatz é julgado pelo desaparecimento de bebês em cativeiro.

Na prática o ESCRACHE vai mais longe do que a denúncia, ou melhor, é uma denúncia que vai se fortificando e, na medida em que é assumida abertamente por mais pessoas, vai se constituindo numa força que liquida, na prática, a impunidade na qual vivem os torturadores e assassinos!  É uma verdadeira condenação social que segue crescendo.

Como diz o significado da palavra. ESCRACHAR implica deixar completamente “queimado”, “incendiado”, “incinerado” (como também se diz no dialeto lunfardo),... o escrachado. Busca-se queimá-lo publicamente para sempre, destruir a segurança em que vive, esmagá-lo com a publicidade de suas próprias atrocidades, arruinar a vida dupla que construiu na qual esconde seu passado de torturador e assassino.

Os escraches são convocados por diferentes grupos e associações proletárias ligadas aos desaparecidos e à luta histórica contra a impunidade. O mais importante a sublinhar a respeito é que, às Madres de Plaza de Mayo, às Abuelas de Plaza de Mayo e às diferentes associações de “Familiares de Detidos e Desaparecidos por Razões Políticas”, vem se agregando cada vez mais jovens proletários ativos, muitos deles agrupados na associação, que já mencionamos, que se deu o significativo nome de H.I.J.O.S.

Os mesmos se convocam por meio de cartazes e panfletos, alguns dos quais nós reproduzimos neste mesmo artigo, com o objetivo de divulgá-los em outros países.

A força da operação ESCRACHE e o conseqüente pânico que suscita nas forças repressivas se deve, antes de mais nada ao protagonismo dos proletários: longe de deixar as coisas nas mãos das instituições burguesas, dos juízes e parlamentos, assumem a ação direta de escrachar um torturador. Mais ainda, a ação parte da denúncia de todas as instituições burguesas, que, longe de terem feito algo contra os militares assassinos e torturadores, têm assegurado a sua impunidade: todos os governos, desde 1984, os partidos políticos correspondentes, o poder judicial em todos os seus escalões, a Igreja que sempre foi cúmplice do terrorismo estatal, o parlamento, as Leis de Ponto Final e Obediência Devida...

Além do mais, não se exige só a  “recuperação de nossos irmãos seqüestrados e nascidos em cativeiro durante a ditadura” e a  “prisão (para) todos os genocidas e cúmplices” , mas levantam-se palavras de ordem contra o perdão e a reconciliação que (em troca de algumas migalhas aos familiares) todas as forças burguesas aspiram a impor. As palavras de ordem fundamentais seguem sendo:

 · NÃO ESQUECEMOS

 · NÃO PERDOAMOS

 · NÃO NOS RECONCILIAMOS

Isto quer dizer que a operação ESCRACHE é forte em seu conteúdo, por situar-se programaticamente contra a conciliação, o esquecimento e o perdão, que seguem unificando a todas as forças burguesas, e por sua forma, a ação direta proletária sem mediações nem súplicas ao Estado burguês. Portanto, não se deve estranhar que todas as instituições do Estado tratem de liquidar essa ação direta e que em todos os casos a polícia e outras forças repressivas intervenham para proteger a integridade física e os bens dos assassinos e torturadores.

A tortura e o desaparecimento físico dos militantes proletários não foi um excesso dos militares, nem loucura de alguns oficiais, mas uma política geral do estado argentino.

Trechos de uma entrevista com o capitão Adolfo Scilingo (torturador e “desaparecedor” oficial da Marinha), realizada por Página 12 e republicada pelo jornal Hika:

“...Nas conversações entre vocês, como se referiam a isso?

Era Chamado de vôo. Era normal, ainda que hoje pareça uma aberração. Assim como Pernías ou Rolón disseram aos senadores que a tortura para conseguir informação do inimigo era o que se havia adotado, de forma regular, isso também. Quando recebi a ordem fui ao sótão, onde estavam os que iam voar. Embaixo não ficava ninguém. Assim, informaram-lhes que iriam ser transferidos ao sul e que por esse motivo seriam vacinados. Aplicaram-lhes uma injeção... quero dizer, uma dose para deixá-los tontos, sedados. Assim, adormeciam.

Quem aplicava?

Um médico naval. Depois os colocaram num caminhão verde da Marinha, com toldo de lona. Fomos ao aeroparque, entramos pela parte de trás. Carregaram os subversivos como zumbis e os embarcaram no avião.

Quem participou?

A maioria dos oficias da Marinha fizeram um vôo, era para rodiziar gente, uma espécie de comunhão.

Em que consistia essa comunhão?

Era algo que devia ser feito. Não sei o que sentem os carrascos quando têm de matar, descer a guilhotina ou nas cadeiras elétricas. Ninguém gostava de fazer isso, não era algo agradável. Mas se fazia e se entendia que era a melhor forma, não se discutia. Era algo supremo que se fazia pelo país. Um ato supremo. Quando se recebia a ordem não se falava mais no assunto. Cumpria-se de forma automática. Vinham rodiziando de todo o país. Alguém pode ter se salvado, mas de forma anedótica. Não era um grupinho, foi toda a Marinha.

Qual era a reação dos detentos quando lhes diziam da vacina e da transferência?

Ficavam contentes.

Suspeitavam do que se tratava?

De nada. Ninguém tinha consciência de que ia morrer. Uma vez que o avião decolava, o médico que ia a bordo lhes aplicava uma segunda dose, um calmante poderosíssimo. Ficavam adormecidos.

Quando os prisioneiros adormeciam, o que vocês faziam?

Isto é muito mórbido.

Mórbido é o que vocês fizeram.

Existem quatro coisas que me fazem mal. Os vôos que fiz, a pessoa que vi torturarem e a recordação do ruído das cadeias e grilhões. Eu os vi apenas duas vezes, mas não posso esquecer esse ruído. Não quero falar disso, deixe-me ir.

Isto não é o ESMA. Você está aqui por sua vontade e pode ir embora quando quiser.

Sim, já sei. Não quis dizer isso. Existem detalhes que são importantes, mas me custa contá-los. Quando penso nisso, fico louco. Tiravam suas roupas desmaiados e, quando o comandante do avião dava a ordem, em função de onde estava o avião, além-mar de Punta Indio, abria-se a portinhola e eram lançados nus um por um. Essa é a história real, que ninguém pode desmentir. Fazia-se em aviões Skyvan da Prefeitura e em aviões Electra da Marinha...”

Dificuldades e contradições

Claro que numa fase como a atual, em que a derrota contra-revolucionária segue pesando enormemente, em que a correlação de forças continua sendo tão desfavorável para os proletários, existem muitas debilidades.

Alguns companheiros pensam que, na situação atual, o ESCRACHE é (dito com muita ironia) lamentavelmente mútuo. Ou seja, que não somente se escracha o milico torturador ou o chefe das operações de seqüestro e desaparecimento de militantes ou de seus filhos, mas também os próprios participantes, sobretudo quando são poucos, ficam totalmente escrachados, filmados e conhecidos pelas forças repressivas. Não temos dúvida sobre a realidade desse fato, que resulta mais ou menos inevitável numa situação como a atual, em que tais operações não são tão massivas quanto deveriam ser e é relativamente fácil identificar os militantes presentes. Podem-se e devem-se adotar medidas mínimas a respeito. Não há dúvidas que o excesso de publicidade pode prejudicar os próprios militantes e até limitar os efeitos do próprio escrache (13). É importante saber que todo avanço tem implicado riscos desse tipo e militantes fichados (como no caso das históricas e valentes MADRES) e que só a generalização, a maior massificação dessas e de outras ações proletárias fará com que o trabalho de “inteligência” dos jornalistas e outros milicos seja menos eficaz.

Quanto ao conteúdo das palavras de ordem, existem algumas que podem ser compreendidas como um pedido ou exigência ao Estado que este poderia cumprir, por exemplo, trocando uma lei por outra e prendendo mais um milico, para liquidar o movimento. Não devemos esquecer que todos os democratas, os partidos políticos e instituições do Estado estão aí precisamente para transformar uma necessidade do proletariado em uma reforma institucional (14), uma palavra de ordem desenvolvida na rua em um decreto ou lei. Assim, por exemplo, no Uruguai, a enorme energia proletária que existia contra os torturadores e assassinos foi habilmente canalizada, por todo o espectro político com protagonismo claro de esquerda (incluindo muitos dos grupos de ex-guerrilheiros, como os “Tupamaros” oficiais), para o marco institucional, ou seja, o Estado burguês. A polêmica legalista em torno de leis e plebiscitos, as mobilizações por votos verdes e outras distrações terminou desmoralizando muitos militantes e liquidando grande parte daquele movimento.

E efetivamente é o que se continua tratando de fazer. Em primeiro lugar, tem-se tratado de demarcar juridicamente o movimento baseando-o nas próprias leis de Ponto Final e de Obediência Devida, afirmando que se pode somente acusar os militares responsáveis pelo seqüestro de crianças.

Para sermos mais exatos, é necessária uma breve explicação. Do ponto de vista jurídico, os milicos foram declarados por aquelas leis, penalmente irresponsáveis de todas as atrocidades contra os lutadores sociais. Frente a isso alguns dos coletivos que lutam contra a impunidade concluíram que aquelas leis não podem ser aplicadas quando se trata de crianças. Essa visão foi aceita por alguns juízes e quando alguns milicos foram citados, seus advogados alegaram a prescrição. A resposta jurídica foi que não pode haver prescrição em todos os casos de bebês e crianças desaparecidas, porque se trata de seqüestro e o prazo da prescrição só pode começar quando o delito terminar, o que não é o caso, dos bebês que ainda não apareceram: portanto, esses milicos são totalmente condenáveis hoje por seqüestro porque continuam cometendo o delito.

Devemos compreender a força do argumento jurídico que conseguiu que alguns membros importantes da repressão histórica fossem condenados à prisão (Videla, Massera...), mas é necessário insistir uma vez mais que todo esse embrulho jurídico não é nosso terreno, não é o terreno do proletariado, não é o terreno da verdadeira luta contra a impunidade. Devemos entender que estamos no terreno de nosso inimigos, no terreno da burguesia, no terreno das instituições jurídicas e que por definição os que lutam contra todas elas não podem encontrar justiça. Como temos explicado em outras ocasiões, se eles (os governantes, os juízes, os parlamentares, as instituições do capital...) aceitam tal coisa do movimento é por duas razões: pela própria força do movimento, que os obriga a fazer concessões, e porque baseados nessas concessões pretendem quebrar o movimento. Ou seja, se algum desses criminosos como Videla se encontra preso (15), é, em último caso, para acalmar-nos, para nos mostrar que a justiça burguesa funciona... em síntese, pelas mesmas razões que Pinochet: para desarmar o movimento, para subjugar o proletariado.

Há quem diga que é graças à luta que eles estão presos. E estamos totalmente de acordo, mas insistimos: se os metem em cana não é precisamente para que a luta continue e seja cada vez mais potente (que é o que interessa à nós, proletários), mas, pelo contrário, para que a luta acabe. É no fundo a única razão que têm para colocar na prisão seus cúmplices, esses terroristas de Estado que são tão essenciais para o bom funcionamento de toda democracia e que em um momento eles mesmos puseram a reprimir. Tendo em conta todas as manobras que fizeram para perdoá-los, indultá-los, desculpá-los pela “obediência devida”; não vamos acreditar que agora querem condená-los!

E, por mais que possamos compreender todos aqueles que se meteram em todo esse embrulho jurídico para que sejam culpados os culpáveis, não nos cabem dúvidas de que se os culpam, não o fazem por razões jurídicas, nas quais sempre cagaram quando lhes era conveniente, mas precisamente porque o movimento é forte, porque tem demonstrado uma continuidade exemplar, porque tem conseguido voltar a colocar a questão da luta contra a impunidade no centro da atualidade. Seja como seja, o importante é não esquecer nem um segundo, que quando a justiça institucional mete algum desses monstros na cadeia não o faz graças à sua iniciativa, mas como resposta das instituições burguesas frente ao movimento: ou seja, porque é considerada a melhor resposta das instituições burguesas para liquidar o movimento. Na verdade, toda resposta do Estado se baseia na estratégia da dominação, da desestruturação de qualquer força que questione a ordem burguesa.

Além do mais, se aceitarmos que somente os casos em que não há prescrição os milicos sejam condenados, não estaremos afirmando e aceitando que todos os demais casos estão prescritos? Quando para nós não deve haver prescrição que valha!

Além do mais, ao se aceitar que só sejam condenados quem se pode provar que participou no seqüestro de crianças, não está se aceitando as leis que inocentaram os que “simplesmente” torturaram e fizeram mais de 30.000 desaparecidos? Quando para nós, esses milicos nunca terão perdão de nenhum tipo!

Ao se aceitar que sejam “presos” nessas prisões de luxo que seus cúmplices põem à sua disposição, não está se aceitando que esse é o castigo que merecem? Quando sabemos que tudo isso é um simulacro de justiça e uma trapaça contra a humanidade!

E no fim, ao se aceitar como justiça esse embuste gigantesco, não estará aumentando a ilusão de que a justiça burguesa poderia fazer justiça? Não são nossos inimigos que na realidade ganham com todo esse simulacro?

Maturidade do movimento

Para o mal dos torturadores e assassinos, o movimento tem demonstrado uma enorme maturidade e, apesar dos milicos em cana, o movimento se fortificando e denunciando a justiça burguesa como totalidade. Na verdade, panfletos, manifestos, proclamações, jornais e cartazes denunciam a totalidade da política de “justiça” da sociedade argentina. Assim, não só denunciam as prisões de ouro na qual se encerram os culpados dos seqüestros de bebês, mas continuam rechaçando em cada manifestação do movimento todas as leis que perdoam os torturadores. Cada novo escrache recorda que tal assassino, que tal torturador  “foi deixado em liberdade pela Lei de Obediência Devida” , livre  “pelas leis de Ponto Final e pelo Indulto presidencial” .

Além do mais, o desenvolvimento dos escraches não apenas tem permitido que se siga queimando os torturadores inocentados por distintas leis e indultos, mas que se enfrente abertamente instituições inteiras e em geral toda política burguesa, ao mesmo tempo que se recordam os desaparecidos e mais ainda se reivindica sua luta revolucionária.

Assim H.I.J.O.S. e outros grupos, por exemplo, em 11 de agosto de 1998, lançaram uma  “jornada de denúncia à Igreja Cúmplice” . Difundiram panfletos escrachando os principais chefes da Igreja oficial, mostrando-os quando compartiam momentos felizes com os principais milicos. Ao mesmo tempo, homenageavam os que haviam caído lutando contra o Estado.

Tampouco se salva a imprensa cúmplice e seus proprietários. Assim aproveitou-se a festa do centenário do jornal LA NUEVA PROVINCIA, de Bahía Blanca para escrachar toda a família Massot, proprietária do mesmo. A festa do centenário, em que havia um “buffet frio” e 2000 convidados (Menem, talvez prevenido, não foi!), teve como “música de fundo” a leitura dos editoriais de em que o tal jornal apoiava os grandes milicos assassinos (dando o exemplo de sujeitos como “Alfredo Astiz”) e como “animação externa” a gritaria de protesto e a simbólica queima de cada manifestante de exemplares desse jornal.

Outro exemplo no vigésimo aniversário do campeonato de futebol que a Argentina havia ganhou, H.I.J.O.S. publicou um cartaz onde aparecem festejando o comandante general da marinha, Emilio Massera, o presidente da nação Jorge Rafael Videla e o comandante em chefe da Aeronáutica brigadeiro general Orlando Ramón Agosti. No mesmo, a copa da “Argentina 78” é uma caveira com um gorro de milico. No impressionante cartaz pode-se ler em grandes letras: “Enquanto o povo festejava o campeonato do mundo eles festejavam o genocídio” .

 “Sobre a igualdade, a injustiça e outras coisas mais:

“Rebelamo-nos contra a impunidade e por isso pedimos justiça, mas não ignoramos que a justiça da sociedade que consagra a injustiça não é mais que um embuste. Igual à política de extermínio dos militantes populares nos anos 70, as grandes injustiças que nos comovem foram e continuam sendo feitas com a tolerância de amplos setores sociais. Como temos experimentado aqui, a justiça costuma não alcançar os responsáveis visíveis. As leis de ponto final e obediência devida e depois os indultos aos genocidas, são prova disso. Mais ainda, quando a justiça aprisiona os assassinos, não somente é incapaz de reparar as injustiças, mas cria a ficção de que os injustos estão presos e a rua é dos justos. A justiça na sociedade hierárquica serve somente para aquietar as consciências.

A única maneira de nos defendermos das injustiças é a denúncia permanente, encarar de forma contínua a verdade e fazer com que as pessoas se inteirem. Apontar os assassinos, seus colaboradores, os que se beneficiaram com suas ações, os que as toleraram. Fazer com que as pessoas conheçam quem é seu vizinho, romper com o anonimato que a cidade permite. Fazer com que aqueles que permitiram e permitem as grandes injustiças de nossa época enfrentem as conseqüências de suas ações e o olhar e a reação de todas as pessoas. Não é com a lei que combateremos as injustiças, mas com a convicção de que todos somos iguais e com nossa vontade para defendê-la. A sociedade argentina redescobriu uma palavra para nomear essa estratégia de resistência à injustiça. Os filhos de desaparecidos que lutam contra a impunidade e o esquecimento a chamam: E S C R A C H E.

Extraído do texto de mesmo título, publicado pela revista “A Desalambar” Número 10
 Casilla de Correo 18 C.P. 1871 - Buenos Aires - Argentina.

E talvez o mais importante de tudo: os objetivos do movimento são cada vez mais amplos e finalistas. Cada vez se assume com mais clareza, que essa luta é uma luta pela revolução. Na verdade, apesar da tentativa de reduzir o movimento a um simples movimento “pelos direitos do homem”, cada vez se reivindica mais claramente não só a luta dos “filhos” e “pais” desaparecidos, mas o objetivo revolucionário da luta desses familiares e se começa a assumir que a luta atual tem necessariamente que se situar em continuidade com a luta histórica revolucionária.

Claro que não é necessário que uma luta se defina como revolucionária para que o seja. Há muitos exemplos históricos onde o proletariado levou adiante um movimento insurrecional revolucionário com palavras de ordem como “terra e liberdade”, no México, ou mais vago ainda como “paz e pão”, na Rússia. O que queremos destacar é que na Argentina e no Cone Sul o triunfo da contra-revolução e o terrorismo de Estado havia sido tamanho que ninguém se animava a falar de revolução e que muitas vezes os que lutavam contra o Estado se encontravam prisioneiros de reivindicações burguesas como os “direitos do homem”. O que queremos destacar é que esse movimento está reemergindo e já começa a assumir de novo que não se trata de pedir direitos ao Estado, que a própria luta que os filhos ou pais desaparecidos haviam empreendido era uma luta pela revolução social e que - ainda que os mesmos tenham cometido erros - não há outra saída que a luta revolucionária.

Nas declarações públicas dos FILHOS, MÃES... nota-se uma compreensão cada vez mais clara disso. Já não se insiste na “inocência” de seu familiar, mas se reivindica sua ação; já não se chora sua injustiça, mas se reivindica a luta dos que morreram combatendo:  “meu pai foi um militante revolucionário” ;  “minha filha se incorporou a luta por todos nós” ;  “eles lutaram pela revolução, porque era e é necessária”  (16). A presidente histórica da Associação das MADRES DE LA PLAZA DE MAYO, Hebe Bonafini, por exemplo, proclama abertamente tudo isso. Por exemplo:

“Aprendemos muitas coisas na luta, aprendemos a amar a Revolução com uma intensidade incrível, porque a revolução são nossos filhos, mas custou um tempo para nos darmos conta que eles eram a revolução e quando assim foi, nosso amor cresceu e não cabe no nosso corpo. Nossos filhos estão mais vivos do que nunca nesta praça, porque os que estamos aqui somos os que lutamos, que não acreditamos no sistema, que enfrentamos com toda a força a degradação que ocorre na classe política... Devemos nos preparar com uma ideologia firme como uma pedra, que não se mova, que nos permita caminhar com a cabeça erguida, uma ideologia como a que tinham os nossos, que eram sorridentes, que viviam, que amavam, lutavam, militavam e tinham a melhor esperança: eles não chegaram a realizar seus sonhos, talvez nós tampouco, mas é obrigação de vocês que o sonho dos 30.000 se realize.”

Apesar da enorme demonstração de humanidade e luta contra este putrefato sistema social que esses grupos proletários estão dando na Argentina, não há dúvidas que a correlação de forças não é favorável. A derrota foi muito profunda, ainda há poucos proletários que se reconhecem nessa luta, tanto no terreno local quanto no terreno internacional. O interesse dos lutadores não é desconhecer esse fato, mas assumi-lo como um problema muito sério. A generalização dessa luta não é somente um desejo revolucionário, mas uma necessidade imperiosa.

Por isso, a luta contra a impunidade deve necessariamente ligar-se a todas as outras lutas que o proletariado hoje leva adiante, a nível internacional. Baseado nisso, e afirmando cada vez mais abertamente que essa é uma luta revolucionária, que somente enfrentando o capitalismo se combate a impunidade, o movimento seguirá desenvolvendo-se em força e capacidade.

Por outro lado, o que tem sido verificado todo esse tempo é esse ABC do programa do proletariado, de que não será no marco institucional que se solucionarão suas reivindicações, não será seu inimigo - o Estado burguês - que lhe dará satisfação, mas que se trata de uma relação de forças: só a violência revolucionária poderá liquidar a impunidade. Tampouco é interesse dos que lutam desconhecer este fato.

Correlação de forças entre as classes, generalização do movimento e das reivindicações proletárias, necessidade da violência revolucionária, são chaves indispensáveis da luta contra a impunidade e em última instância da luta de sempre pela revolução social. Sim, exatamente a mesma luta pela qual morreram lutando os 30.000, como disse Hebe Bonafini.

Os Criminosos sob Vigilância

Mas os torturadores e assassinos também sabem disso, também sabem que a luta é a mesma de sempre. Sabem, melhor que ninguém, que a questão não é de direito, não é formal, mas que se trata de uma questão de forças, que em última instância enquanto tiverem a força estarão impunes. E, como toda a classe dominante, não se suicidarão, não renunciarão à sua força, não renunciarão à sua dominação sob nenhum aspecto. Eles sabem que só a força revolucionária poderá atacá-los e não tem escrúpulos em dizê-lo e em chamar abertamente a voltar a utilizar os mesmos procedimentos que antes para consagrar sua impunidade.

Há tempos, Astiz declarava à direita e à esquerda que havia matado e que não hesitaria em matar novamente. Outros têm ido ainda mais longe.

O ex-major Hugo Abete, preso por haver participado de um levante carapintada, declarava na prisão, em julho de 98, referindo-se a operação escrache:

“(é)um plano perfeitamente elaborado que, em seus fins mais espúrios, prossegue o que a subversão começou com a luta armada e agora continua por outros meios... A destituição de Astiz, a detenção de Videla e outras que seguramente ocorrerão são parte desse plano, como são... as denominadas operação escrache.... Pessoalmente, creio que se aplica o mesmo critério confusionista que hoje impera na sociedade, o bom vizinho estaria em todo o seu direito de escrachar as casas daqueles que não fazem nada para protegê-lo, juntamente com sua propriedade. Também estariam os militares e seus familiares, que poderiam fazer o mesmo com as casas dos subversivos ou seus parentes. Assim, novamente, diante da carência de autoridade e a evidente falta de concórdia política, os militares voltariam a empregar os mesmos métodos de quem os agride. E isto me faz recordar que de forma parecida começou a guerra contra a subversão, quando os juízes ameaçados se acovardaram, ficaram paralisados e deixaram de atuar, e os militares tivemos de sair e combater a impunidade dos que colocavam bombas, seqüestravam e assassinavam indiscriminadamente. A confusão, a impunidade e o ódio nos levarão a repetir a história novamente ?”

Ou seja, os criminosos sabem perfeitamente que se trata de uma questão de força. Ao declarar isto, estão dizendo claramente à classe que representam que ela necessita deles, que o sistema democrático existente necessita do terrorismo estatal, que o desaparecimento forçado de pessoas, o assassinato massivo de militantes, foi e será a única forma de manter o repugnante sistema social que defendem: o capitalismo e sua democracia. A alternativa que oferecem é: ou aceitam todas as conseqüências do terrorismo de Estado ou voltamos a lhes aplicar o terrorismo de Estado democrático.

Nunca mais

Contra isso lutamos!  Para que nunca mais se volte a produzir essa história repressiva, continuaremos saindo às ruas para escrachar os criminosos de Estado, para que nunca mais o Estado burguês possa reprimir os militantes proletários com a impunidade que fez, para fortificarmo-nos enquanto classe frente a um Estado que, qualquer que seja a forma que adote, é criminoso.

Mas como dissemos, isto coloca desafios muito sérios ao movimento contra a impunidade em particular, e em geral, a todo o proletariado. Somente a generalização da luta, sua extensão a todos os países, a organização e a potência revolucionária do proletariado poderá liquidar a impunidade do terrorismo de Estado.

Generalizemos o escrache de torturadores a todo o planeta! Aumentemos a potência, a força, a generalização dos escraches!

Mas, ao mesmo tempo, afirmemos claramente que sem a destruição da sociedade burguesa sempre haverá torturadores, criminosos de Estado e milicos assassinos, assumamos o fato de que somente a revolução social liquidará para sempre o terrorismo de Estado, que é indispensável a ditadura revolucionária do proletariado que esmague e destrua integralmente tanto o Estado terrorista como a sociedade que ele representa e defende: o sistema capitalista mundial.

Retomemos então a bandeira revolucionária dos militantes proletários desaparecidos e assassinados, não só na década de 70, como a de nossos queridos companheiros Rosigna, Severino Di Giovani e tantos outros que morreram lutando contra o Estado burguês na Argentina, que caíram nesse país combatendo pela revolução mundial. Assumamos o caráter inteiramente internacionalista dessa luta de sempre dos fuzilados, dos aprisionados, dos desaparecidos, dos perseguidos em todo o mundo por esse mesmo inimigo: o capitalismo e seu Estado.

NOTAS:

1. O fechamento de um meio de comunicação como o jornal EGIN foi considerado por todos os especialistas sérios em direito penal, como um ato abertamente inconstitucional e violador dos direitos fundamentais de expressão e informação. Veja-se, por exemplo, a explicação de Enrique Gimbernat, catedrático do Direito Penal e membro do Conselho Editorial do El Mundo.

2. Extraído de uma carta mensagem das Madres de Plaza de Mayo dirigida aos “trabalhadores do Diário Egin e Radio Egin” com motivo do fechamento, ordenado por Garzón, desses meios de expressão. Nessa carta se denuncia o terrorismo de Estado e em particular a conduta vexatória de Garzón nessas ações policiais: “denunciar a conduta vexatória desse mesmo Juiz”. Ao mesmo tempo, as madres frisam que a razão da censura selvagem por parte do Estado espanhol se deve que  “os companheiros do diário Egin e Radio Egin foram os únicos que se atreveram a denunciar com dados, fichas, nomes e sobrenomes os casos de execuções e torturas cometidas com a ajuda dos juízes da Audiência Nacional”  (A Audiência Nacional é o democrático nome que o Estado espanhol colocou na velha instituição franquista criada em 1963 e denominada “Tribunal de Ordem Pública”). Assinam a carta: Hebe Bonafini e Mercedes Meroño em nome das Madres.

3. Ver o texto completo desse dramático chamado em nosso órgão central em castelhano Comunismo #4. Nessa mesma revista nosso grupo explica as condições que conduziram a essa derrota proletária e toma posição sobre as questões centrais da revolução e contra-revolução nesse país. O chamado dos Cordões Industriais tem um enorme valor histórico de denúncia de todas as frações burguesas, ainda que os limites ideológicos do mesmo, que tornaram possível o desarmamento e o massacre posterior, sejam evidentes: esses setores proletários não se situam abertamente contra Allende e a Unidade Popular, mas até o chamam de “companheiro Allende” apesar da política abertamente antiproletária do mesmo. Essa nefasta dependência ideológica do populismo se vê também na repetição, por parte dos Cordões Industriais, de muitas frases feitas pela Unidade Popular. Pensamos que pertence a esse campo a afirmação chauvinista e que foi tão característica da esquerda burguesa chilena de “a classe operária mais consciente e organizada da América Latina”, que longe de forjar a unidade do proletariado como classe tende à sua divisão. Desnecessário dizer que o próprio proletariado no Chile repudia esse tipo de ideologia chauvinista que somente serve para isolá-lo de seus irmãos de classe do continente e do mundo.

4. Atenção! Não estamos dizendo simplesmente dizendo que as caras dos outros sejam menos criminosas. O que afirmamos é que a cara de Pinochet coincide notavelmente com a imagem espetacular do ditador que qualquer filme sobre o tema necessita: é uma cara ideal para fazer o papel de vilão em qualquer espetáculo.

5. Como assinalamos em diferentes oportunidades, o terrorismo de Estado é essencial no funcionamento do Estado democrático. Todo o edifício formal e legal, jurídico e pacífico, toda a organização democrática da sociedade se sustenta no terror que inspiram, aos que se encontram privados de propriedade (separados de seus meios de vida e da produção desses meios de vida), a polícia, o exército, os diferentes corpos de segurança e milícias privadas, os juízes, os tribunais, as prisões, os hospitais psiquiátricos e outros aparatos de repressão. O terrorismo aberto contra uma classe social em movimento só é usado pela classe dominante em certas ocasiões, precisamente porque esse terror cotidiano que persegue cada explorado, na rua, no campo ou em casa, e até no trabalho, é o fundamento decisivo do que se chama paz nesta sociedade, a paz social. Por isso na maioria do tempo, a sociedade burguesa vive como se todo mundo estivesse conforme com ela, como se ninguém a colocasse em questão, o terrorismo de Estado não aparece abertamente à maioria da população como o que é, mas mantém-se como ameaça e o Estado só utiliza o monopólio que tem da violência contra membros particulares da sociedade acusados de atacar a lei e a ordem: na maioria dos casos de não respeitar a propriedade privada.

6. “Álibi” significa justificativa.

7. As potências triunfantes conseguiram montar um espetáculo no qual os nazis eram em si os maus e massacradores, dando assim uma potente justificativa para todos os outros massacres da guerra: os 60 milhões de mortos, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, os campos de concentração e exploração organizados pelos aliados (por exemplo na URSS), o bombardeio sistemático das cidades e bairros operários dos países vencidos,... tudo, tudo tornava-se validado e justificado. Anos depois, quem recordasse Hiroshima ou Dresden, Nagasaki ou Berlim, poderia receber o rótulo de “pró-fascista” (uns anos depois de “revisionista”) e ser desqualificado.

8. Ver nosso artigo “A luta pelos desaparecidos e contra a impunidade” em Comunismo #36.

9. O extrato que publicamos leva como assinatura: Prisioneiras políticas, Prisão de alta segurança (CHILE) . O texto completo foi recebido do Chile  “no momento culminante da detenção de Pinochet em Londres” e foi publicado por “RESUMEN latino-americano” (Ap. de correos 46078 - Madrid 28080 - http://nodo50.ix.apc.org/resumen) no número 38 de novembro/dezembro 1998.

10. O significado etimológico assim como histórico-social dessa palavra do lunfardo se explica na continuação deste mesmo texto.

11. Alguns companheiros nos garantem que, também em outros países, grupos de companheiros realizam esse mesmo tipo de ações. Assim, no Uruguai se havia conseguido “queimar” vários torturadores em seu bairro e em seu trabalho e, em alguns casos, as associações proletárias têm realizado medidas de luta para que joguem na rua de tal ou qual torturador. Recentemente (fevereiro 1999), no Sindicato Médico do Uruguai conseguiu-se desmascarar um médico torturador e fazê-lo expulsar.

12. Os próprios milicos o chamavam pudicamente “o processo”, para esconder o caráter ditatorial desse governo.

13. No princípio, os escraches eram preparados por um punhado de militantes e tinham grande eficácia pelo efeito surpresa. Agora, se dá tanta publicidade que perdem seu efeito surpresa e se está prevenindo a repressão (como se sabe, avisar a imprensa eqüivale equivale como em todo o mundo, a avisar a polícia), e em muitos casos a presença policial é tão gigantesca que o escrache é limitado em seus efeitos.

14. Já demos inúmeros exemplos desse tipo: a liberdade dos presos pela qual lutam os proletários é transformada pelos homens do Estado em “anistia”; a assembléia de greve, em “direito de reunião”; etc. Ver, a respeito, o importante texto programático: “O mito dos direitos e liberdades democráticas” em Comunismo #1, publicado há 20 anos.

15. Com o pretexto da idade, nem sequer estão presos criminosos como Videla ou Massera, mas em “prisão domiciliar”!

16. Declarações recentes, de diferentes familiares e presos políticos, publicadas em diversos meios de difusão.

COMUNISMO # 44



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Notas sobre a autonomia operária na Itália



Coletivo Rete Operaia (Precari Nati)


Publicado na revista contraacorrente número 11

Apresentação

 O Coletivo Rete Operaia é uma articulação de trabalhadores em Bolonha, na Itália, que edita uma revista chamada Precari Nati. Composta por algumas dezenas de jovens operários, em sua maioria não qualificados e submetidos a relações precárias de trabalho, a Rete Operaia busca desenvolver um trabalho de construção e ligação de coletivos autônomos nas empresas (atuam diretamente em fábricas químicas, metalmecânica e em empresas de telecomunicação). Não é um partido, mas possui uma forma organizada que lhe permita – diz numa mensagem para nós – “ser um ponto de contato para todos os trabalhadores revolucionários numa perspectiva comunista internacionalista. Somos um grupo de operários que se bate pela autonomia operária e se concebe instrumento e não direção para a classe operária”. Colaboram com diversos coletivos e publicações de tendência comunista-conselhista e autônoma na Europa.

 O artigo que publicamos neste número foi escrito para a nossa revista, como contribuição à divulgação no movimento operário e revolucionário no Brasil das atuais características e tendências do movimento operário autônomo na Itália.

 Como se sabe, do fim dos anos 60 ao final dos 70, desenvolveu-se na Itália um amplo movimento de lutas operárias, a partir de baixo, sem a direção dos sindicatos e partidos da esquerda oficial. Ações massivas e radicalizadas – que articulavam desde a resistência cotidiana nas fábricas com a sabotagem dos produtos do trabalho e das máquinas, ocupações de casas, coletivos de autonomia cultural até as “greves selvagens” (greves sem e contra as direções sindicais) e confrontos de rua – marcaram esse período de crise revolucionária na Itália. Foi neste período que tanto a prática quanto a reflexão acerca da autonomia operária ganharam fôlego na Itália, com o surgimento de diversos coletivos e movimentos autônomos e diversas correntes de pensamento autônomas. Numericamente, avalia-se que cerca de 13 milhões de trabalhadores – numa população então de 50 milhões de italianos – participaram diretamente das diversas formas que assumiu o movimento de autonomia operária, contrastando, a esse respeito, com os três milhões de eleitores do PC Italiano. “Não obstante”, dizem abaixo os companheiros de Rete Operaia, “só em determinados momentos houve uma relação dialética entre as lutas autônomas [dos operários] e os organismos autônomos”. Momentos sem dúvida importantes em que a luta autônoma encontrou suas próprias formas de organização foram as Assembléias Autônomas dos operários da Alfa-Romeo e da Pirelli, em Milão, bem como a construção de redes de coletivos fabris.

 Utilizando-se do terrorismo, o Estado conseguiu manobrar o estado de espírito dos trabalhadores e da população, desencadeando uma enorme onda repressiva sobre o movimento autônomo dos trabalhadores. O saldo dessa onda repressiva eqüivale em números a um final de guerra civil: cinco mil presos políticos. É interessante notar que os primeiros dos grandes atentados terroristas, em 12 de dezembro de 69, na Piazza Fontana, em Milão, e na cidade de Brescia, no Norte da Itália, foram inicialmente atribuídos pelo Estado a militantes anarquistas e depois descoberto que, na verdade, tiveram origem nos próprios órgãos de segurança do Estado – e com o objetivo, exatamente, de fazer recuar as lutas operárias; objetivo de início parcialmente conseguido, pois os operários metalúrgicos desmarcaram as greves selvagens já anunciadas para a partir de 19 de dezembro, aceitando assim os acordos impostos pelos sindicatos. Esses atentados terroristas foram na verdade um massacre de trabalhadores, preparado pelo Estado para intimidar e confundir, e precisamente em cidades e locais nos quais havia grande concentração operária e grandes iniciativas de lutas. Essa parece ter sido a lógica mantida pelo Estado para deter o crescente espírito de luta do proletariado na Itália. Iniciado em 68, com umas primeiras revoltas operárias em Turim, o “maio de 68” italiano durou dez anos. Chegou ao final precisamente a partir da escalada repressiva do Estado apoiado nas “leis antiterroristas” que ele mesmo impusera após o seqüestro e assassinato de Aldo Moro, em 78 – seqüestro e assassinato nos quais a participação do próprio Estado permanece, até hoje, uma suspeita.

 Esse longo “maio italiano” se situa historicamente – após o movimento de ocupações de fábricas e greves selvagens em maio de 68 na França – em um movimento mais amplo de iniciativa autônoma do proletariado nos países industriais do pós-guerra, iniciado pelos conselhos operários húngaros em 56 e que se desenrola até a derrota das lutas autogestionárias dos operários poloneses em 1980.

 No artigo que segue, os companheiros da Rete Operaia retomam algumas informações desse período italiano e, principalmente, nos informam das características atuais do movimento da e pela autonomia operária na Itália.

Uma precisão inicial

 O denominado “Movimento Autônomo” nasce durante os anos 70, ainda que algumas elaborações deste movimento possam ser encontradas no debate internacional que marcou os anos 20 entre os comunistas oficiais, os comunistas de esquerda e os anarquistas. Nos anos 50 e nos primeiros anos dos 60 na Itália, França, E.U.A., em torno das revistas “obreiristas” ou “antiautocráticas”, Socialisme ou Barbarie para a França, Correspondance para o E.U.A., Quaderni Rossi [Cadernos Vermelhos] para a Itália. Na Itália, freqüentemente os setores neoleninistas deram atenção unicamente à corrente teórica do “Movimento Autônomo” que segue a via da experiência política da esquerda do PSI (Partido Socialista Italiano), aglutinada em torno dos Quaderni Rossi, uma das primeiras revistas “obreiristas” italianas. Não obstante, a influência do “Movimento autônomo” foi muito ampla e não pode ser reduzido a esta corrente; na Itália, outras experiências existiram, como o grupo Unitá Proletaria, formação vinda da esquerda oficial e mais próxima à esquerda comunista.

 O “Movimento Autônomo” nos anos 70 teve em seu interior diferentes componentes, um leninista que nasceu da dissolução das organizações da nova esquerda na Itália (Pottere Operaio, Lotta Continua, PC-ml, etc...) e outro de derivação libertário-conselhista. Ao lado desses dois grandes setores, havia o setor “armado” que se reconhecia em variadas organizações (Prima Linea, Nuclei Armati Proletari e algumas colunas das Brigate Rossi). Tal movimento era então um todo de tendências coletivas, grupos, rádios livres, revistas, que “coabitaram” dentro de um denominado mais geral “movimento” composto por coletivos, coordenações em território e em fábrica, lutas específicas... Não obstante, só em determinados momentos houve uma relação dialética entre as lutas autônomas e os organismos autônomos. Em muitos casos, no surgimento e desenrolar das lutas se desenvolveram coletivos autônomos no interior das fábricas ou nas áreas de moradia, mas este impulso terminou se tornando o espaço “organizado” de grupos radicais que não conseguiram ir ao dos trabalhadores politizados. Com isto não se quer se calar frente às fecundas intuições desta experiência, mas colocá-la em sua justa dimensão; muitas vezes se acredita em uma coincidência entre as lutas autônomas e os grupos autônomos, mas isto é como acreditar que os conselhos operários no passado tenham sido desenvolvidos pelos conselhistas ou sovietistas.

 De um ponto de vista teórico, seguir os perfis específicos dos diversos componentes – alguns até mesmo retornam ao interior dos partidos institucionais – envolveria um artigo à parte. Nós nos limitaremos a ilustrar o panorama do movimento autônomo na Itália e a presença de algumas lutas autônomas que se desenvolvem neste momento no território italiano.

O panorama do Movimento Autônomo

 Atualmente na Itália o Movimento está dilacerado por profundas divisões. Tentaremos ilustrar as áreas principais do “Movimento” na Itália:

 Há uma área definida pós-autônoma que abrange boa parte da experiência dos Centros Sociais Autogeridos, que está politicamente ou dentro [do Partido] da Refundação Comunista (o novo Partido Comunista oficial) ou é seu simpatizante ou do Partido dos Verdes. Este componente desenvolveu e levou ao extremo a concepção de superação do conceito de classe. Este setor fala até agora expressamente de “cidadão” em lugar de “proletário”, desenvolvendo e aumentando as pequenas empresas econômicas, nascidas freqüentemente nos CSA’s. Não estão então interessados em uma mudança da sociedade, correspondente ao fim do capitalismo, mas em uma democratização progressiva dele. Tal componente é aquele que tem o maior sucesso midiático, devido igualmente ter relações privilegiadas com os partidos institucionais. A atividade desse setor – além da defesa político-legal das estruturas das pequenas empresas nascidas nos CSA’s – se situa na frente ambiental, antifascista e intervêm nas lutas dos imigrantes na Itália, embora não colhendo a real dimensão destes proletários, pondo o problema de classe como sendo um problema democrático. A palavra de ordem deste setor é o chamado “salário social”, que é uma reproposição de uma política neokeynesiana, pedindo um maior esforço do Estado na distribuição de renda aos proletários.

 Próximo deste componente há a denominada galáxia das Cobas (organismos sindicais de base) que também expressando uma viva crítica aos sindicatos oficiais se afiliam aos esquemas sindicais clássicos e são incapazes de ver os limites intrínsecos da prática sindical nesta determinada etapa de acumulação do sistema de produção capitalista. Dentro de tal galáxia, as correntes políticas mais discrepantes coabitam, dos maoistas aos anarco-sindicalistas. O seu nível de proposta política permanece preso à defesa do Estado social.

 Há também toda uma série de grupos organizados em coletivos políticos nas áreas de moradia, que se ocupam desde o problema dos imigrantes àquele dos precários, ao apoio das lutas de liberação nacional (dos bascos, da Irlanda, da guerrilha na América do Sul e Ásia), ao apoio dos prisioneiros políticos das organizações comunistas combatentes na Itália, coletivos estudantis, coletivos de trabalhadores, centros populares autogeridos, casas ocupadas por anarcopunk etc.... Esta galáxia produz numerosos fanzines, revistas, boletins. Também neste caso é impossível decifrar as políticas básicas destes grupos tendo em vista sua extrema diversificação e setorialidade.

 Finalmente, há ainda componentes mais estruturados como organizações anarquistas, revistas libertárias, ou partidos de inspiração maoista, trotsquista, que tendo também uma linha própria convivem dentro do “movimento.”

 Atualmente, o componente ligado às correntes conselhistas-autônomas e à esquerda comunista (se se exclui a miríade de partidinhos bordighistas) não abrange muitos coletivos e grupos na Itália. Há seguramente um déficit de projetualidade e de dimensão coletiva decorrente ainda de um clima de paz social que só nestes últimos anos começa a se dissolver com o fim da hipótese neokeynesiana. Apesar disso, permanecem numerosos defeitos intrínsecos ao “Movimento”. O maior defeito é a cisão que muitos grupos fazem entre um imediatismo ousado (a ação), que nasce muito freqüentemente de uma incapacidade analítica de enfrentar os problemas historicizando-lhes em relação ao movimento proletário, e, no outro lado, a pesquisa histórico-analítico com fim nela mesma, que, descobrindo os nós histórico-teóricos do movimento proletário em seu complexo, também não conseguiu ter uma relação dialética com o presente. Tal problema não é de hoje, mas foi também infelizmente um das constantes do movimento autônomo no passado. O movimento autônomo conseguiu em grande parte entender as mudanças atuais, o desenvolvimento de uma mão-de-obra não qualificada, a ruptura com o plano institucional imediato, mas se ressente de uma cuidadosa análise em relação ao desenvolvimento do movimento proletário e de uma perspectiva revolucionária comunista geral, é por isto que grande parte de seus componentes permaneceu deslumbrada com os subprodutos do neoleninismo ou do espontaneísmo maoista. O problema do stalinismo e o leninismo, incluindo o papel do partido e do sindicato e da relação entre ciclo econômico e luta de classe, foi deixado no esquecimento. Estes problemas eram descartados, não tomando a importância destes assuntos, para então tomar por boas muitas das lendas do stalinismo (antifascismo democrático) ou do leninismo (luta de libertação nacional, papel positivo do sindicato), usando estes como atalho já que não se tinha nenhum intenção de enfrentar os problemas gerais. Apenas poucos grupos conseguiram fundir a moderna escola da composição de classe às elaborações histórico-analíticas do movimento proletário. No entanto, por causa da rápida restrição das lutas autônomas, estas experiências não conseguiram ultrapassar os outros componentes que têm hegemonia no interior do Movimento Autônomo.

As lutas autônomas

 Se é verdade que há um atraso político na Itália, no interior dos coletivos políticos do Movimento Autônomo, isto não impede que atualmente a classe esteja produzindo algumas lutas e batalhas sociais completamente autônomas e desatreladas dos sindicatos e partidos oficiais, chegando ao uso de formas extralegais de luta. Há numerosas demonstrações de defesa e ampliação do salário indireto (transporte, moradia), o que provoca em determinadas faixas do proletariado – de modo especial entre os proletários imigrantes de fora da comunidade européia – ocupações de casas, luta por reduções drásticas do preço dos ônibus. Nas empresas, têm havido algumas lutas completamente desatreladas do plano sindical (seja o sindicalismo oficial, seja o sindicalismo de base), apesar de que no terreno da produção ainda haja uma habilidade do capital para se defender de modo satisfatório, revertendo grande importância a este setor, visto seu papel central para a criação da mais-valia. Permanece porém como dado empírico a persistência de uma luta subterrânea da classe trabalhadora no uso do absenteísmo e da sabotagem (em uma empresa, em Turim, há alguns meses, a direção chamou a polícia política especial para descobrir entre os trabalhadores os autores das numerosas sabotagens que aconteceram)*.

 Outras demonstrações são as lutas do proletariado encarcerado (freqüentemente proletários imigrantes de fora da comunidade européia ou jovens proletários italianos) que se batem no interior das celas por melhores condições de vida, tais lutas são parcialmente defendidas pela esquerda que no entanto não pode solucionar o problema da prisão com algumas reformas. Freqüentemente, estas demonstrações de conflito não são percebidas pelo Movimento, muito ocupado na defesa de seus espaços de agilidade política, como um qualquer partido... Enquanto isso está mudando a composição da classe, nas fábricas aumentam-se os ritmos e há uma renovação progressiva da classe operária, pessoas mais jovens e imigrantes.

 Estes jovens trabalhadores precários, são esnobados pelos sindicatos mas sofrem menos o enquadramento empresarial (em um ano um trabalhador jovem pode trabalhar em 4-5 fábricas diferentes) e a ética do trabalho (as funções destes trabalhadores jovens sempre são as mais baixas e menos remunerados).

 A articulação produtiva torna ainda mais estendida a cadeia industrial, mas é relegada às margens da cidade ou se mudou completamente para a província.

 Estas lutas autônomas freqüentemente são brutalmente reprimidas pela polícia, veja-se a propósito o tratamento ao qual os trabalhadores imigrados são submetidos (delações, expulsões, prisão).

 Se houver uma habilidade renovada do movimento autônomo para saber juntar as novidades do período e da potencialidade das lutas autônomas atuais, poderá ser uma nova estação para o movimento autônomo e uma habilidade para o salvaguardar da involução reformista e minimalista na qual verte atualmente. Essa aposta será ganha pelo movimento autônomo na Itália?

* Em email posterior, os companheiros de Rete Operaia esclarecem que essa empresa, na verdade, foi a Fiat de Turim: “as sabotagens suspenderam algumas linhas levando à destruição de mais de 40 motores e carrocerias da Punto (modelo da Fiat). Com a introdução de um grande número de trabalhadores precários, aumentaram as manifestações de insubordinação”.

 Apresentação e tradução feitas pelo Coletivo contraacorrente. Email: contraacorrente@hotmail.com
endereço: Caixa Postal 12.116 CEP 60.021-970 Fortaleza-CE (Brasil) .



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