quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Encontro sobre a Autonomia Operária - Uma Fraude Vulgar




Crítica da CCI (Corrente Comunista Internacional) ao encontro.

Nos dias 10 e 11 de junho, ocorreram em Barcelona algumas reuniões sob o título “Da Autonomia Operária ao Antagonismo Difuso”. Na convocatória, dizia-se que, durante os anos 70, houve, na Espanha, “autênticos movimentos autônomos protagonizados por milhares de trabalhadores que não queriam uma saída capitalista para a crise do franquismo” . Acrescentava-se que era importante conhecer esses movimentos, diante da situação atual, e que no Encontro tratariam da “história (as lutas dos anos 70) e a atualidade unidas por uma ponte (Balanço)” . A convocatória era, pois, muito atraente para a reflexão operária.

Os jovens operários de hoje e também a geração anterior, que viveu as grandes greves dos anos 60-70, necessitam de conhecer a fundo essas experiências, tirar lições de como então se comportaram os sindicatos - que fizeram o impossível para destroçá-las - e as forças “democráticas” - que prometeram as “liberdades”, o “Estado das autonomias” e a “modernização da Espanha”, como alternativa para desviar e frear o desenvolvimento da luta operária na perspectiva da unidade internacional e revolucionária para a destruição do capitalismo.

Fomos ao encontro com ânimo de contribuir para o conhecimento e balanço daquelas experiências, para que a classe operária supere a difícil situação atual. Qual não foi a nossa surpresa, quando os organizadores - que em nenhum momento mostraram a cara, disfarçando-se de “gente de base” - impediram qualquer discussão sobre as lutas dos anos 70, reduzindo-a a mero folclore nostálgico, uma espécie de “água passada não move moinho”, e, exagerando, diziam que, com as mudanças tecnológicas operadas no capitalismo, com o fim das fábricas e do correspondente “operário massa”, a classe operária foi pulverizada, desapareceu, não existe. Mais ainda, na sociedade atual já não existiria sujeito revolucionário, teriam desaparecido todos os antagonismos.

Essa “teoria”, que expuseram com um palavreado pedante e ares de grande novidade - é uma velha ladainha que vem se repetindo desde os anos 50 [1] -, supõe um ataque à consciência da classe operária e não é senão outra voz que se une ao coro orquestrado por todos os meios informativos (!?) e intelectuais da burguesia com sua monótona repetição de que a classe operária “não existe mais”, “a luta de classes desapareceu” e, se ainda se deve “lutar”, é como cidadãos, de mãos dadas com o Estado “democrático”, para superar as injustiças que existem no mundo.

Nossa intervenção retomou as análises que desenvolvemos na série Resposta às Dúvidas sobre a Classe Operária [2], sublinhando que a fumaceira da “nova economia” baseada na INTERNET não deve ocultar para nós que é necessário seguir construindo automóveis, alimentos, máquinas, computadores; transportar, extrair petróleo, refiná-lo etc., e que tudo isso nasce da exploração global e mundial da classe operária e não da informática virtual da “rede de redes”. Que, hoje, todos os trabalhadores - sejam eles fixos, precários, imigrantes, autônomos ou obrigados à solidão do “teletrabalho” - permanecem completamente separados dos meios de produção e de vida, vendo-se forçados a vender sua força de trabalho no mercado capitalista para poder sobreviver. Essa condição não se modificou, em absoluto - a não ser para pior: para fazê-la mais dura, mais precária e mais extenuante -, e é a mesma dos operários dos anos 70, dos que sofreram a guerra mundial nos anos 40 ou dos que se rebelaram contra o capitalismo na onda revolucionária dos anos 1917-23.

Os organizadores do Encontro qualificaram nossas argumentações de antiquadas e nos convidaram a “remover a ferrugem da cabeça”, adicionando seu “valor agregado” às campanhas sobre o “fim dos antagonismos”: em vez de perder tempo em “lutas sem sentido” seria preciso dedicar-se a “viver a vida” e a “fazer uma investigação para detectar os autênticos desejos das pessoas”. Disseram que o desemprego é uma libertação! Pois “permite a quem o desfruta se dedicar ao ócio”.

Essas barbaridades são um insulto aos operários e a todos os oprimidos que padecem a praga do desemprego, seja em sua forma pura e dura de não encontrar nenhum trabalho e “desfrutar dos prazeres do ócio”, seja em sua forma, mais massiva e mais cruel, de desemprego disfarçado de trabalho precário, isto é, de ter a vida encadeada a uma angustiante sucessão de um emprego de 3 semanas, um desemprego de 3 meses, outro emprego de 2 meses, um cursinho de “formação”, outro contrato de 3 meses... E se torna ainda mais desprezível que se diga isso em nome das grandes lutas operárias dos anos 70.

Durante o encontro, alguns companheiros criticaram as afirmações dos organizadores, mas o fizeram de forma muito tímida. Outros, que nos deram razão, preferiram retirar-se, enojados com a manipulação que consistia em embrulhar a mercadoria fraudulenta do “antagonismo difuso” com a bela embalagem da “Autonomia Operária”. [3]

Essa dificuldade para responder à vil manobra de intelectuais despreparados se explica por um problema, sobre o qual devemos alertar muitos companheiros jovens. Atualmente, é difícil ver, de maneira direta, a classe operária, devido à dificuldade e ao caráter confuso e contraditório do desenvolvimento de suas lutas. Por isso, muitos companheiros - que vêem ser mais necessário que nunca lutar para mudar esta sociedade que corre para o desastre - se lançam na participação em pretensas “lutas anticapitalistas”, como as de Seatle e Davos “contra a globalização”, a comédia das manifestações “antimilitaristas” contra o desfile de Barcelona, a cilada das “okupações” e toda uma série de formas de “ação”, pretensamente “radicais” e “libertadoras”, que não fazem outra coisa senão reforçar as mistificações capitalistas.

A conseqüência de se envolver nessa espiral de “lutas” inúteis é acabar totalmente desmoralizados. Quando alguns companheiros, fartos dessa falsa alternativa tentam fazer uma crítica dessas “lutas”, os manobristas, como os organizadores dos “Encontros”, dizem que eles “têm razão”, que é verdade que “essas lutas não servem para nada”, mas que a alternativa é “ir para a casa” e “viver a vida” para “realizar um subversão noturna” (Sc). Ou seja, escamoteam as críticas e, com isso, companheiros desejosos de lutar contra a miséria e a barbárie atual se desmoralizam e se perdem para a luta revolucionária da classe operária.

É necessário romper a falsa alternativa que consiste em escolher entre as mobilizações “anticapitalistas” estilo Seatle e a estupidez do “antagonismo difuso”. Diante disso, há um caminho menos “brilhante”, que requer mais paciência, mais tenacidade, uma confiança baseada na visão global e a longo prazo da luta histórica da classe operária. Uma capacidade para, em lugar de se agitar em ações estéreis, estar com as lutas difíceis, cheias de armadilhas, complicadas, sabotadas pelos sindicatos, confusas, que hoje a classe operária protagoniza. Lutas que não dizem, claramente e aos gritos: “aqui está a classe operária!” Mas encerram o único futuro possível para a humanidade.

Adalen, 12/07/2000

NOTAS:

[1] São inúmeros os “teóricos” que, desde a 2ª guerra mundial - Adorno, Marcuse, os neo-situacionistas etc. - vêm proclamando o “fim da classe operária”. Com a reaparição massiva e internacional do proletariado, desde os fins dos anos 60, esses gênios pedantes da sociologia barata tiveram que sair pela tangente. Mas, hoje, depois de 10 anos difíceis para a classe operária, como conseqüência da queda do falso comunismo dos países do leste - que nós prevíamos, como se pode ver na REVISTA INTERNACIONAL n.º 60 -, novos “gênios”, como um tal de Bonanno, entre outros, voltam à carga.

[2] Ver Acción Proletaria n.º 145, em diante.

[3] Um deles nos propôs, muito judiciosamente, organizarmos alguns Encontros para discutir e conhecer de verdade as lutas dos anos 70, e transmitir suas lições paras as gerações atuais. A proposta nos parece muito boa e estamos dispostos a apoiá-la.

Extraído de Acción Proletária n.º 153 (bimestral).
Corrente Comunista Internacional ( http://www.internationalism.org)


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O Comunismo de Conselhos e a Crítica do Bolchevismo




Cajo Brendel

 "Suponhamos que a direção central seja capaz de distribuir tudo que foi produzido, de maneira correta. Mesmo então, permanece o fato de que os produtores não têm à  sua disposição o maquinário de produção. Este maquinário, além de não lhes pertencer, funciona para dispor deles. A conseqüência inevitável é que aqueles grupos que se opõem à direção existente serão oprimidos com uso da força. O poder econômico central está nas mãos daqueles que, ao mesmo tempo, exercem o poder político. Qualquer oposição que pense de modo diferente sobre os problemas econômicos e políticos será oprimida o máximo possível. Isto significa que, no lugar de uma associação de produtores livres e iguais, como a definida por Marx, há um presídio como nunca se viu."

Essa citação, livremente traduzida de um texto de setenta anos de idade, explica que as relações de produção que foram desenvolvidas na Rússia depois de 1917 nada têm a ver com o que Marx e Engels entendiam por  comunismo. Na época em que o supracitado panfleto foi publicado, o terror dos anos 30 ainda estava por vir. Parecia apenas uma profecia. Não havia qualquer evento político que provocasse essa crítica da sociedade soviética; essa crítica surgiu de uma análise econômica. Com base nesta, o surgimento do stalinismo foi entendido como expressão de um sistema econômico que consiste numa exploração capitalista de Estado, e isto caracterizando não apenas o stalinismo.

O texto que citamos foi obra de um grupo cujos autores pertenciam a uma corrente que surgiu nos anos seguintes à primeira guerra mundial, e continua válido. Esta corrente se caracterizou por uma clara crítica da social-democracia e do bolchevismo. Analisou cuidadosamente a experiência cotidiana da classe operária e chegou assim a novas idéias sobre a luta de classes. A corrente via a social-democracia e o bolchevismo como o "velho movimento operário"; o oposto disso seria "um novo movimento dos trabalhadores".

Os mais antigos membros dessa corrente foram marxistas alemães e holandeses que sempre atuaram na ala esquerda da social-democracia. Nos anos de luta contra o reformismo, eles se tornaram cada vez mais críticos da social-democracia. Os mais conhecidos dessa corrente foram dois holandeses, Anton Pannekoek (1872-1960) e Herman Gorter (1864-1927), e também dois alemães, Karl Schroder (1884-1950) e Otto Ruhle (1874-1943). Mais tarde, o então jovem Paul Mattick (1904-1980) seria um de seus teóricos mais importantes.

As idéias de Pannekoek chamaram a atenção, logo depois da virada do século, para algumas reflexões marxistas sobre filosofia. De 1906 até a eclosão da primeira guerra mundial, ele trabalhou na Alemanha. Primeiro, por um ano, como professor na escola do SPD, e depois, quando foi ameaçado de expulsão da Alemanha, trabalhou em Bremen e escreveu artigos para diversas publicações de esquerda. Em Bremen, Pannekoek testemunhou uma greve selvagem dos estivadores. Esta experiência influenciou suas idéias sobre a luta de classes, e também sua interpretação do marxismo. Em conseqüência, muito cedo ele recusou as teorias bolcheviques sobre organização, estratégia e política.

Otto Ruhle nunca se identificou com uma corrente no movimento operário alemão.  Mas ele nunca negligenciou os interesses gerais da classe operária. Como Pannekoek, recusou o bolchevismo na década de 1920 e foi um dos primeiros a argumentar que a revolução proletária é algo completamente diferente de uma revolução burguesa e conseqüentemente requer formas de organização completamente diferentes. Por esta razão, ele recusou a falácia de que a revolução proletária seria tarefa de um partido. "A revolução", dizia, "não é uma tarefa de partido; política e economicamente é uma tarefa de toda a classe operária".

Tais idéias, que seriam mais detalhadas, caracterizam a corrente que ficou conhecida como comunismo de conselhos. O comunismo de conselhos, do início da década de 1920, baseou-se nas experiências das revoluções russa e alemã, defendia a democracia dos conselhos e recusava o poder do partido. Procurou se distinguir do bolchevismo e dos bolcheviques, e daqueles que se autodenominavam comunistas.  Contudo, nas suas origens, ele estava muito distante das opiniões que desenvolveria mais tarde.


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No começo, o comunismo de conselhos pouco se diferenciava do leninismo. Ruhle, todavia, não considerava comunistas os partidos da terceira internacional. Alguns anos depois, os comunistas de conselhos iriam se distinguir com muito mais clareza do bolchevismo. A chamada revolução de outubro acabou com o czarismo  e pôs um fim às relações feudais, limpando o campo para capitalismo.

Os comunistas de conselhos foram ainda mais longe. Eles apontaram o fato de que uma economia como a russa, baseada no trabalho assalariado, ou seja, uma economia em que a força de trabalho é uma mercadoria, tem como finalidade a produção de mais-valia mediante a exploração dos trabalhadores.  A questão não é se a mais-valia vai para o capitalista privado ou para o Estado, enquanto proprietário dos meios de produção. Os comunistas de conselhos lembravam que Marx tinha dito que a nacionalização dos meios de produção não tem nada a ver com socialismo. Eles também assinalaram que, na Rússia, a produção obedecia as mesmas leis que existem no capitalismo privado clássico. A exploração só pode chegar a um fim - dizia Marx - quando o trabalho assalariado não mais existir. Os comunistas de conselhos explicavam, referindo-se a Moscou, que não havia comunismo. A diferença entre comunismo de conselhos e bolchevismo torna-se, assim, mais clara e mais completa.


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O que dissemos não deve ser entendido como significando que o comunismo de conselhos é uma crítica do stalinismo, especificamente. É uma crítica do bolchevismo, em geral. Os comunistas de conselhos não vêem o stalinismo como um tipo de "contra-revolução" que privou a revolução de outubro de seus frutos. Mais precisamente, eles viam o stalinismo apenas como um fruto dessa revolução, da revolução que abriu as portas ao capitalismo na Rússia. Stalin foi o herdeiro do bolchevismo e da revolução bolchevique. O desenvolvimento dessa teoria  foi lento, acompanhando o desenvolvimento social. Com o tempo, os comunistas de conselho mudariam sua opinião e sua prática. Inicialmente, na Alemanha e na Holanda, partidos comunistas de conselhos foram fundados. Isto contradizia a opinião de alguns que, como Ruhle, afirmavam que partidos nada tinham a ver com a classe operária. Ruhle, no entanto, via essas organizações como partidos "de um tipo completamente diferente – ”um partido que já não era mais um partido."

Quatro anos depois, em 1924, Ruhle falava uma linguagem diferente. "Um partido com caráter revolucionário  na acepção proletária do termo", ele disse, "é um absurdo. Seu caráter revolucionário só pode existir como expressão burguesa e somente quando a questão é a passagem do feudalismo ao capitalismo". Ele estava inteiramente certo e por esta razão os “absurdos” desapareceriam do teatro proletário dentro de dez anos. Havia poucas exceções e, após a segunda guerra mundial, a expressão foi abandonada.

Ao mesmo tempo, os comunistas de conselhos amadureceram. Eles entenderam que a revolução russa era uma revolução burguesa e que a economia russa nada mais era do que capitalismo de Estado. Eles enxergaram mais claro e novas pesquisas amadureceram.

A análise mais importante foi completada por Pannekoek em 1938. Ele publicou um panfleto sobre a filosofia de Lênin e produziu uma análise mais aprofundada do bolchevismo. Pannekoek apontou o fato de que o marxismo de Lênin era uma lenda e contradizia o marxismo real. Ao mesmo tempo, ele explicou a causa: "Na Rússia, a luta contra o czarismo assemelhava-se em muitos aspectos à luta contra o feudalismo na Europa, muito tempo antes. A religião e a igreja apoiavam o poder existente. Por esta razão, uma luta contra a religião era uma necessidade social". Portanto, aquilo que Lênin considerava como materialismo histórico pouco se diferenciava do materialismo burguês, do século XVIII francês, um materialismo que, naqueles tempos, foi usado como arma espiritual contra a igreja e a religião. Ou seja, apontando as similaridades entre as relações sociais na Rússia antes da revolução e aquelas da França pré-revolucionária, os comunistas de conselhos registravam que Lênin e os membros de seu partido haviam reivindicado o nome de jacobinos para si mesmos. Eles pensavam que seu partido na revolução burguesa russa teve a mesma função dos jacobinos franceses.

O poder bolchevique – que, em março de 1918, poucos meses depois de outubro de 1917, esmagou o já reduzido poder dos sovietes – foi,  como os comunistas de conselhos diziam, uma conseqüência lógica da revolução de outubro. Os sovietes não se adaptaram a um sistema que consistia na superestrutura política das relações de produção capitalistas de Estado.

O que o movimento comunista de conselhos entendia por comunismo era algo completamente diferente daquele sistema. A ditadura do partido não corresponde às relações sociais baseadas na abolição do trabalho assalariado e no fim da exploração dos trabalhadores. Uma sociedade em que os produtores são livres e iguais não pode ser diferente da democracia dos produtores.

Cajo Brendel

Originalmente publicado em Red & Black Notes #8,  primavera de 1999.

Livremente traduzido de Council Communism & The Critique of Bolshevism, disponível em http://ca.geocities.com/red_black_ca/






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INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL




Karl Marx

Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica.

A existência profana do erro ficou comprometida, uma vez refutada sua celestial oratio pro aris et focis [oração pelo lar e pelo ócio].

O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.

A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o autosentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual.

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo.

A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da critica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade.

A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religião é apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo.

Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está à serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas. Com isto, a crítica do céu se converte na crítica da terra, a critica da religião na critica do direito, a crítica da teologia na crítica da Política.

A exposição seguinte - uma abordagem a este trabalho - não se prende diretamente ao original, senão a uma cópia deste, à filosofia alemã do direito e do Estado, pelo simples fato de se ater à Alemanha.

Se nos quiséssemos ater ao status quo alemão, ainda que da única maneira adequada, isto é, de modo negativo, o resultado continuaria a ser anacrônico. A mesma negação de nosso presente político já se acha coberta de pó no sótão de trastes velhos dos povos modernos. Ainda que nos recusemos a recolher estes materiais empoeirados, continuaremos conservando os materiais sem poeira. Ainda que neguemos as situações existentes na Alemanha de 1843, apenas nos situaremos, segundo a cronologia francesa, em 1789, e ainda menos no ponto focal dos dias atuais.

E o caso da história alemã gabar-se de um movimento ao qual nenhum povo do firmamento histórico se adiantou a ela nem a seguirá. Com efeito, os alemães compartem as restaurações dos povos modernos, sem haver participado de suas revoluções. Passamos por uma restauração, em primeiro lugar, porque outros povos se atreveram a fazer uma revolução e, em segundo lugar, porque outros povos sofreram uma contra-revolução; a primeira vez porque nossos senhores tiveram medo e a segunda porque não o tiveram. Tendo à frente nossos pastores, só uma vez nos encontramos em companhia da liberdade: no dia de seu enterro.

Uma escola que legitima a infâmia de hoje com a infâmia de ontem; uma escola que declara ato de rebeldia todo grito do servo contra o knut, da mesma maneira que este é um knut pesado de anos, tradicional, histórico; uma escola a que a história só mostre seu a posteriori, como o Deus de Israel a seu servo Moisés, numa palavra, a Escola histórica do Direito teria sido inventada pela história alemã se já não fosse por si uma invenção desta. É Shylock, mas o criado Shylock, que por cada libra de carne cortada do coração do povo, jura e perjura por sua escritura, por seus títulos históricos, por seus títulos cristão-germânicos.

Em troca, certos entusiastas bondosos, germanistas pelo sangue e liberais pela reflexão, vão buscar além da história, nas selvas teutônicas virgens, a história da nossa liberdade. Mas, se só se encontra na selva, em que se distingue a história da nossa liberdade da história da liberdade do javali? Além disso, é fato sabido que quanto mais alguém se interna no bosque, tanto mais ressoa sua voz fora deste. Por conseguinte, deixemos em paz a selva virgem teutônica.

Guerra aos estados de coisas alemães! É certo que se encontram abaixo do nível da história, abaixo de toda critica, mas continuam a ser, apesar disto, objeto de crítica, assim como o criminoso, por não se achar abaixo do nível da humanidade, não deixa de ser objeto do verdugo. Na luta contra eles, a crítica não é uma paixão do cérebro, mas o cérebro da paixão. Não é o bisturi anatômico, mas uma arma. Seu objeto é o adversário, que não procura refutar, mas destruir. O espírito daquelas situações já foi refutado. Não são dignas de ser lembradas; devem ser desprezadas como existências proscritas. Não há necessidade da crítica esclarecer este objeto frente a si mesma, pois dele já não se ocupa. Esta crítica não se conduz como um fim em si, mas, simplesmente, como um meio. Seu sentimento essencial é a indignação; sua tarefa essencial, a denúncia.

Trata-se de descrever a surda pressão mútua de todas as esferas sociais, umas sobre as outras, a alteração geral e imprudente, a limitação que tanto se reconhece quanto se desconhece, enquadrada dentro do modelo de um sistema de governo, que, vivendo da conservação de tudo aquilo que é lamentável, não é outra coisa senão o que há de lamentável no governo. Espetáculo lamentável! A divisão da sociedade até o infinito nas raças mais diversas, que se enfrentam umas às outras com pequenas antipatias, más intenções e brutal mediocridade e que, precisamente em razão de sua mútua posição cautelosa são tratadas por seus senhores, Sem exceção e com algumas diferenças, como existências sujeitas a suas concessões. Até isto, até o fato de se verem dominadas, governadas e possuídas tem que ser reconhecido e confessado por elas como uma concessão do céu! E, por outro lado, aqueles senhores, cuja grandeza se encontra em relação inversa ao numero delas!

A crítica que se ocupa deste conteúdo é a crítica da competição. Durante a competição não interessa saber se o adversário é nobre, da mesma categoria, se é um adversário interessante; trata-se de vencê-lo. Trata-se de não conceder aos alemães nem um só instante de ilusão e de resignação. Há que tornar a opressão real ainda mais opressiva, acrescentando àquela a consciência da opressão; há que tornar a infâmia ainda mais infamante, ao proclamá-la. Há que pintar a todas e a cada uma das esferas da sociedade alemã como a partie honteuse [partes pudendas] da sociedade alemã; há que obrigar estas relações escravizadas a dançar, cantando-lhes sua própria melodia. Há que ensinar o povo a ter pavor de si mesmo, para infundir-lhe ânimo. Com isto, se satisfaz uma indisfarçável necessidade do povo alemão; as necessidades dos povos são, em sua própria pessoa, os últimos fundamentos de sua satisfação.

Esta luta contra o status quo alemão tampouco carece de interesse para os povos modernos, pois o status quo alemão é a consagração franca e sincera do antigo regime, e o antigo regime, a debilidade oculta do Estado moderno. A luta contra o presente político alemão é a luta contra o passado dos povos modernos; as reminiscências deste passado continuam a pesar ainda sobre eles e a oprimi-los. É instrutivo para estes povos ver como o antigo regime, que neles conheceu sua tragédia, representa agora sua comédia; é instrutivo para estes povos vê-lo como o espectro alemão. Sua história foi trágica enquanto encarnou o poder preexistente do mundo e a liberdade como uma ocorrência pessoal; numa palavra, enquanto acreditou e devia acreditar na sua legitimidade. Enquanto o antigo regime e a ordem existente no mundo lutavam contra um mundo em estado de gestação, traziam de sua parte um erro histórico-universal e não de caráter pessoal. Portanto, sua catástrofe foi trágica.

Pelo contrário, o atual regime alemão, que é um anacronismo, uma contradição flagrante com todos os axiomas geralmente reconhecidos, a nulidade do antigo regime posta em evidência frente ao mundo inteiro, só imagina crer em si próprio e exige do inundo a mesma fé ilusória. Se acreditasse em seu próprio ser, acaso iria escondê-lo sob a aparência de um ser estranho e procurar sua salvação na hipocrisia e no sofisma? Não, o moderno regime antigo já não é mais do que o comediante de uma ordem social cujos heróis reais já morreram. A história é conscienciosa e passa por muitas fases antes de enterrar as velhas formas. A comédia é a última fase de uma forma histórico-universal. Os deuses da Grécia, já tragicamente feridos no Prometeu acorrentado de Ésquilo, morreram ainda outra vez, comicamente, nos colóquios de Luciano. Por que esta trajetória histórica? Para que a humanidade possa separar-se alegremente de seu passado. Este alegre destino histórico é que nós reivindicamos para as potências políticas da Alemanha.

Não obstante, tão logo a moderna realidade político-social se veja submetida à crítica, isto é, tão logo a critica ascende ao plano dos problemas verdadeiramente humanos é que se encontra fora do status quo alemão, pois de outro modo abordaria seu objeto por baixo de si mesma. Um exemplo: a relação entre a indústria, o inundo da riqueza em geral e o mundo político é um problema fundamental da época moderna. De que forma este problema começa preocupar os alemães? Sob a forma de normas protetoras, de sistema proibitivo, da economia nacional. O germanismo passou dos homens a matéria e, um belo dia, nossos donos do algodão e nossos heróis do ferro viram-se convertidos em patriotas. Assim, pois, na Alemanha começa-se pelo reconhecimento da soberania do monopólio rumo ao interior, conferindo-lhe a soberania rumo ao exterior. Isto significa que na Alemanha se começa por onde terminam a França e a Inglaterra. A velha situação insustentável contra a qual se levantam teoricamente estes países e que só são suportáveis como são suportados os grilhões, é saudada na Alemanha como a primeira luz do amanhecer de um belo futuro, que apenas se atreve a passar de uma ladina teoria à mais implacável prática. Enquanto na França e na Inglaterra o problema é colocado em termos de economia política ou império da sociedade sobre a riqueza, na Alemanha os termos são outros: economia nacional ou império da propriedade privada sobre a nacionalidade. Portanto, na França e na Inglaterra trata-se de abolir o monopólio, que chegou a suas últimas conseqüências; na Alemanha, trata-se de levar o monopólio a suas últimas conseqüências, No primeiro caso, trata-se da solução; no segundo, simplesmente da contradição. Exemplo suficiente da forma alemã que ali adotam os problemas modernos, de como nossa história, tal qual o recruta imbecil, não teve até agora outra missão senão a de praticar a repetir exercícios já feitos.

Por conseguinte, se todo o desenvolvimento da Alemanha não saísse dos marcos do desenvolvimento político alemão, um alemão apenas poderia, muito bem, participar dos problemas do presente, do mesmo modo como um russo deles pode participar. Mas, se um indivíduo livre não se acha vinculado às cadeias da nação, ainda menos livre se vê a nação inteira diante da libertação de um indivíduo. Os citas não investiram um só passo contra a cultura grega porque a Grécia contasse um deles entre seus filósofos.

Por sorte, nós, alemães, não somos citas.

Assim como os povos antigos viveram sua pré-história na imaginação, na mitologia, nós, alemães, vivemos nossa pós-história no pensamento, na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos do presente, sem ser seus contemporâneos históricos. A filosofia alemã é o prolongamento ideal da história da Alemanha. Portanto, se ao invés das oeuvres incompletes [Obras incompletas] de nossa história real, criticamos as oeuvres posthumes [Obras póstumas] de nossa história ideal, a filosofia, nossa crítica figura no centro dos problemas dos quais diz o presente: That is the question [Eis a questão].

O que para os povos progressistas é a ruptura prático com as situações do Estado moderno, na Alemanha, onde estas situações nem sequer existem, isto significa, antes de mais nada, a ruptura critica com o reflexo filosófico destas situações.

A filosofia alemã do Direito e do Estado é a única história alemã que se acha a par com o presente oficial moderno. Por isto, o povo alemão não tem outro remédio senão incluir também esta sua história feita de sonhos entre suas situações existentes e submeter à crítica não só estas mesmas situações mas, também e ao mesmo tempo, seu prolongamento abstrato. O futuro deste povo não pode limitar-se nem à negação de suas condições estatais e jurídicas reais, nem à execução indireta das condições ideais de seu Estado e de seu direito, já que a negação direta de suas condições reais já está envolvida em suas condições ideais e a execução indireta de suas condições ideais quase a fez sobreviver ao contemplá-las nos povos vizinhos. Assim, ao reclamar a negação da filosofia, o partido político prático da Alemanha tem toda razão. Seu erro não reside na exigência, mas em deter-se na simples exigência, que não coloca nem pode colocar seriamente em prática. Acredita colocar em prática aquela negação pelo fato de voltar as costas à filosofia e de resmungar, olhando para o lado oposto, umas tantas frases banais e mal-humoradas. A limitação de seu horizonte visual não inclui também a filosofia da realidade alemã no Estreito de Bering, nem chega a imaginá-la quimericamente, inclusive, entre a prática alemã e as teorias que a servem. Exige-se uma conexão com os germes reais da vida, mas esquece-se que o germe real da vida do povo alemão só brotou, até agora, de sua caixa craniana. Numa palavra, não podereis superar a filosofia sem realizá-la.

A mesma injustiça, só que com fatores inversos, cometeu o partido político teórico, que partia da filosofia.

Este partido só via na luta atual a luta critica da filosofia com o mundo alemão, sem imaginar sequer que a filosofia anterior pertencia ela mesma a este mundo e era um complemento, ainda que apenas seu complemento ideal. Assumia uma atitude crítica frente à parte contrária, mas não adotava um comportamento crítico para consigo mesmo, já que partia das premissas da filosofia e, ou se detinha em seus resultados adquiridos ou apresentava como postulados e resultados diretos da filosofia, os postulados e resultados de outra origem, embora estes supondo que sejam legítimos - só podem manter-se de pé, pelo contrário, mediante a negação da filosofia anterior, da filosofia como tal. Propomo-nos a tratar mais a fundo deste partido. Seu erro fundamental pode resumir-se assim: acreditava poder realizar a filosofia sem superá-la.

A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que encontra em Hegel sua expressão máxima, a mais conseqüente e a mais rica, é simultaneamente as duas coisas, tanto a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele relacionada como a negação decisiva de todo o modo anterior de consciência política e jurídica alemã, cuja expressão mais nobre, mais universal, elevada à ciência, é precisamente a mesma filosofia especulativa do direito. Assim como a filosofia especulativa do direito - este pensamento abstrato e superabundante do Estado moderno cuja realidade continua a ser o além, apesar deste além se encontrar do outro lado do Reno - só poderia processar-se na Alemanha, assim também, por sua vez e inversamente, a imagem alemã, conceitual, do Estado moderno - abstraída do homem real - só se tornou uma possibilidade porque e enquanto o mesmo Estado moderno se abstrai do homem real ou satisfaz o homem total de modo puramente imaginário. Em política, os alemães pensam o que os outros povos fazem. A Alemanha era sua consciência teórica. A abstração e a arrogância de seu pensamento corria sempre em parelha com a limitação e a mesquinhez de sua realidade. Por conseguinte, se o status quo do Estado alemão exprime a perfeição do antigo regime, o acabamento da lança cravada no Estado moderno, o status quo da consciência do Estado alemão expressa a imperfeição do Estado moderno, a falta de consistência de seu próprio corpo

Enquanto adversário decidido do modo anterior de consciência política alemã, o Estado orienta a crítica da filosofia especulativa do direito não para si mesma, mas para tarefas cuja solução exige apenas um meio: a prática.

Indagamo-nos: pode a Alemanha chegar a uma prática à la hauter des principes [à altura dos princípios], isto é, a uma revolução que a eleve não só ao nível oficial dos povos modernos mas, também, ao nível humano que será o futuro imediato destes povos!

As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã e, portanto, de sua energia prática, consiste em saber partir decididamente da superação positiva da religião. A crítica da religião derruba a idéia do homem cama essência suprema para si próprio. Por conseguinte, com o imperativo categórico mudam todas as relações em que o homem é um ser humilhado, subjugado, abandonado e desprezível, relações que nada poderia ilustrar melhor do que aquela exclamação de um francês ao tomar conhecimento da existência de um projeto de criação do imposto sobre cães: Pobres cães! Querem tratá-los como se fossem pessoas!

Até historicamente a emancipação teórica tem um interesse especificamente prático para a Alemanha. O passado revolucionário da Alemanha é, de fato, um passado histórico: é a Reforma. Como então no cérebro do frade, a revolução começa agora no cérebro do filósofo.

Lutero venceu efetivamente a servidão pela devoção porque a substituiu pela servidão da convicção. Acabou com a fé na autoridade porque restaurou a autoridade da fé. Converteu sacerdotes em leigos porque tinha convertido leigos em sacerdotes. Libertou o homem da religiosidade externa porque erigiu a religiosidade no interior do homem. Emancipou o corpo das cadeias porque sujeitou de cadeias o coração.

Mas, se o protestantismo não foi a verdadeira solução, representou a verdadeira colocação do problema. Já não se tratava da luta do leigo com o sacerdote que existe fora dele, mas da luta com o sacerdote que existe dentro de si próprio, com sua natureza sacerdotal. E, se a transformação protestante do leigo alemão em sacerdote emancipou os papas leigos, os príncipes, com toda sua clerezia, se emancipou privilegiados e filisteus, a transformação filosófica dos alemães com espírito sacerdotal em homens emancipará o povo. Mas, do mesmo modo que a emancipação não se deteve nos príncipes, tampouco a secularização dos bens se deterá no despojo da igreja, realizada sobretudo pela hipócrita Prússia. A guerra dos camponeses, fato mais radical da história alemã, lançou-se contra a teologia. Hoje, com o fracasso da própria teologia, o fato mais servil da história alemã, nosso status quo, se lançará contra a filosofia. As vésperas da Reforma, a Alemanha oficial era o servo mais submisso de Roma. As vésperas de sua revolução, é o servo submisso de algo menos que Roma, Prússia e Áustria, de fidalguetos rurais e filisteus,

Não obstante, uma dificuldade fundamental parece opor-se a uma revolução alemã radical.

Com efeito, as revoluções necessitam de um elemento passivo, de uma base material. A teoria só se realiza numa nação na medida que é a realização de suas necessidades. Ora, ao imenso divórcio existente entre os postulados do pensamento alemão e as respostas da realidade alemã corresponderá o mesmo divórcio existente entre a sociedade alemã e o Estado e consigo mesma! Não basta que o pensamento estimule sua realização; é necessário que esta mesma realidade estimule o pensamento -

Todavia, a Alemanha não escalou simultaneamente com os povos modernos as fases intermediárias da emancipação política. Praticamente,. não chegou sequer às fases que superou teoricamente. Como poderia, de um salto mortal, remontar-se não só sobre seus próprios limites, como também e ao mesmo tempo, sobre os limites dos povos modernos, sobre limites que na realidade devia sentir e aos quais devia aspirar como a emancipação de seus limites reais! Uma revolução radical só pode ser a revolução de necessidades radicais, cujas premissas e lugares de origem parecem faltar completamente.

Não obstante, se a Alemanha só abstratamente acompanhou o desenvolvimento dos povos modernos, sem chegar a participar ativamente das lutas reais deste, não é menos verdade que, de outro lado, partilhou os sofrimentos deste mesmo desenvolvimento, sem usufruir seus benefícios e satisfações parciais. A atividade abstrata de um lado, corresponde o sofrimento abstrato do outro. Assim, numa bela manhã, a Alemanha se encontrará em nível idêntico à decadência européia antes mesmo de haver atingido o nível da emancipação européia. Poderíamos compará-la a um idólatra que agonizasse, vítima do cristianismo.

Fixemo-nos, antes de mais nada, nos governos alemães, e os veremos de tal modo impulsionados pelas condições da época, pela situação da Alemanha, pelo ponto de vista da cultura alemã e, finalmente, por seu próprio instinto certeiro, a combinar os defeitos civilizados do mundo dos Estados modernos, cujas vantagens não possuímos, com os defeitos bárbaros do antigo regime, de que nos podemos jactar até a saciedade, que a Alemanha, senão por prudência, pelo menos à falta desta tem que participar cada vez mais da constituição de Estados que estão muito além de seu status quo. Acaso, por exemplo, há no mundo algum país que partilhe tão simplesmente como a chamada Alemanha constitucional todas as ilusões do Estado constitucional sem partilhar de suas realidades. Ou não teria que ser necessariamente uma ocorrência do governo alemão o fato de associar os tormentos da censura aos tormentos das leis de setembro na França, que pressupõem a liberdade de imprensa. Assim como no panteão romano se reuniam os deuses de todas as nações, no sacro império romano germânico se reúnem os pecados de todas as formas de estado. Que este ecletismo chegará a alcançar um nível até hoje inimaginado, o garante, de fato, o enfado estético-político de um monarca alemão que aspira desempenhar, se não através da pessoa do povo, pelo menos em sua própria, se não para o povo, pelo menos para si mesmo, todos os papéis da monarquia: a feudal e a burocrática, a absoluta e a constitucional, a autocrática e a democrática. A Alemanha, como a ausência do presente político constituído num mundo próprio, não poderá derrubar as barreiras especificamente alemães sem derrubar a barreira geral do presente político.

Para a Alemanha, o sonho utópico não é a revolução radical, não é a emancipação humana geral, mas, ao contrário, a revolução parcial, a revolução meramente política, a revolução que deixa de pé os pilares do edifício. Sobre o que repousa uma revolução parcial, uma revolução meramente política? No fato de emancipar uma parte da sociedade burguesa e de instaurar sua dominação geral, no fato de uma determinada classe empreender a emancipação geral da sociedade a partir de sua situação especial. Esta classe emancipa toda a sociedade, mas apenas sob a hipótese de que toda a sociedade se encontre na situação desta classe, isto é, que possua, por exemplo, dinheiro e cultura ou que possa adquiri-los.

Nenhuma classe da sociedade burguesa pode desempenhar este papel sem provocar um momento de entusiasmo em si e na massa, momento durante o qual confraterniza e se funde com a sociedade em geral, com ela se confunde e é sentida e reconhecida como seu representante geral, que suas pretensões e direitos são, na verdade, os direitos e ai pretensões da própria sociedade, que esta classe é realmente o cérebro e o coração da sociedade. Somente em nome dos direitos gerais da sociedade pode uma classe especial reivindicar para si a dominação geral. E, para atingir esta posição emancipadora e poder, portanto, explorar politicamente todas as esferas da sociedade em benefício da própria esfera, não bastam por si sós a energia revolucionária e o amor próprio espiritual. Para que coincidam a revolução de um povo e a emancipação de uma classe especial da sociedade burguesa, para que uma classe valha por toda a sociedade, é necessário, pelo contrário, que todos os defeitos da sociedade se condensem numa classe, que uma determinada classe resuma em si a repulsa geral, que seja a incorporação do obstáculo geral; é necessário, para isto, que uma determinada esfera social seja considerada como crime notório de toda a sociedade, de tal modo que a emancipação desta esfera surja como autoemancipação geral. Para que um estado seja par excellenee o estado de libertação, é necessário que outro seja o estado de sujeição por antonomásia. O significado negativo geral da nobreza e do clero franceses condicionou a significação positiva geral da classe inicialmente delimitadora e contraposta, da burguesia.

Todavia, todas as classes especiais da Alemanha carecem de conseqüência, rigor, arrojo e intransigência capazes de convertê-las no representante negativo da sociedade. Além do mais, todas carecem da grandeza de espírito que pudesse identificar uma delas, ainda que momentaneamente, com o espírito do povo; todas carecem da genialidade que infunde o entusiasmo do poder político ao poder material, da intrepidez revolucionária que lança o desafio ao inimigo: Nada SOU e tudo deveria ser. Esse modesto egoísmo que faz valer e permite que outros também façam valer suas próprias limitações é o fundo básico da moral e da honradez de indivíduos e classes na Alemanha. Por isto, a relação existente entre as diversas esferas da sociedade alemã não é dramática, mas épica. Cada uma delas começa a sentir e a fazer chegar às outras suas pretensões, não ao se ver oprimida, mas quando as circunstâncias do momento, sem intervenção sua, criam uma base social sobre a qual, por sua vez, possa exercer pressão. Até mesmo o amor próprio moral da classe média alemã repousa sobre a consciência de ser o representante geral da mediocridade filistéia de todas as demais classes. Portanto, não são apenas os reis alemães que ascendem ao trono mal à propos [Inoportunamente], mas todas as esferas da sociedade burguesa, que sofrem sua derrota antes de terem festejado a vitória, que desenvolvem seus próprios limites antes de terem ultrapassado os limites que se opõem a estes, que fazem valer sua pusilanimidade antes de fazer valer sua arrogância, de tal modo que até mesmo a oportunidade de desempenhar um grande papel desaparece antes de existir e que cada classe, tão logo começa a lutar com aquela que lhe está acima, vê-se envolvida na luta com aquela que lhe está abaixo. Daí porque os príncipes estão em luta contra a burguesia, os burocratas contra a nobreza e os burgueses contra todos eles, enquanto o proletário começa a lutar contra o burguês. A classe média nem sequer se atreve a conceber o pensamento da emancipação de seu ponto de vista, já que o desenvolvimento das condições sociais, do mesmo modo que o progresso da teoria política, se encarregam de revelar este mesmo ponto de vista como algo antiquado ou, pelo menos, problemático.

Na França, basta que alguém seja alguma coisa para querer ser todas as coisas. Na Alemanha, ninguém pode ser nada se não quiser renunciar a tudo. Na França, a emancipação parcial é o fundamento da emancipação universal. Na Alemanha, a emancipação universal é a conditio sine que non de toda emancipação parcial. Enquanto na França é a realidade da emancipação gradual que tem de engendrar a liberdade total, na Alemanha, ao contrário, é justamente a sua impossibilidade. Na França, toda classe é um político idealista que se sente como representante das necessidades sociais em geral, ao invés de sentir-se como representante de uma classe especial. Por isto, o papel emancipador passa por turnos, em movimento dramático, entre as distintas classes do povo francês até atingir, finalmente, a classe que já não realiza a liberdade social sob a hipótese de certas condições que se encontram à margem do homem e que, não obstante, foram criadas pela sociedade humana, mas que organiza todas as condições de existência a partir da hipótese da liberdade social. Pelo contrário, na Alemanha, onde a vida prática tão pouco tem de espiritual assim como a vida espiritual de prático, nenhuma classe da sociedade burguesa sente a necessidade nem a capacidade de emancipação geral até ver-se obrigada a isto por sua situação imediata, pela necessidade material, pelas suas próprias cadeias.

Onde reside, pois, a possibilidade positiva da emancipação alemã?

Resposta: na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de. todos os estados; de uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as conseqüências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado.

O proletariado só começa a surgir na Alemanha, mediante o movimento industrial que desponta, pois o que forma o proletariado não é a pobreza que nasce naturalmente, mas a pobreza que se produz artificialmente; não é a massa humana oprimida mecanicamente pelo peso da sociedade, mas aquela que brota da aguda dissolução desta e, em especial, da dissolução da classe média, ainda que gradualmente, como se compreende, venham a incorporar-se também a suas fileiras a pobreza natural e os servos cristãos-germânicos da gleba

Ao proclamar a dissolução da ordem universal anterior, o proletariado nada mais faz do que proclamar o segredo de sua própria existência, já que ele é a dissolução de fato desta ordem universal. Ao reclamar a negação da propriedade privada, o proletariado não faz outra coisa senão erigir a princípio de sociedade aquilo que a sociedade erigiu em princípio seu, o que já se personifica nele, sem intervenção de sua parte, como resultado negativo da sociedade. O proletariado está amparado, então, em relação ao mundo que nasce, da mesma razão que assiste o rei alemão em relação ao mundo existente, ao denominar o povo seu povo, como ao cavalo seu cavalo. Ao declarar o povo sua propriedade privada, o rei se limita a expressar que o proprietário privado é o rei.

Assim como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais. Com a mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular, se efetuará a emancipação dos alemães como homens.

Resumindo e concluindo:

A única emancipação praticamente possível da Alemanha é a emancipação do ponto de vista da teoria, que declara o homem essência suprema do homem. Na Alemanha, a emancipação da Idade Média só é possível como emancipação paralela das superações parciais da Idade Média. Na Alemanha, não se pode derrubar nenhum tipo de servidão sem derrubar todo tipo de servidão em geral. A meticulosa Alemanha não pode revolucionar sem revolucionar seu próprio fundamento. A emancipação do alemão é a e emancipação do homem. O cérebro desta emancipação é a filosofia; seu coração, o proletariado. A filosofia não pode se realizar sem a extinção do proletariado nem o proletariado pode ser abolido sem a realização da filosofia.

Quando se cumprirem todas as condições interiores, o canto do galo gaulês anunciará o dia da ressurreição da Alemanha.

Karl Marx, 1843


Biblioteca virtual revolucionária

LA CREATIVIDAD, LA POLITICA Y EL DRAGON DEL MOVIMIENTO



Existen, en primer lugar, los acontecimientos de estos últimos meses de marzo, abril y mayo de 1977, no sólo con los entusiasmos y los planteamientos políticos de estudio e investigación teórica que han derivado de ellos, sino también con la revelación, si había necesidad aún, de un intenso potencial represivo presente en la Sociedad históricamente instituida; por consiguiente, han sido estos acontecimientos los que han hecho surgir la necesidad y la urgencia (no sólo entre los estudiantes y en el seno del proletariado juvenil) de poner a punto y/o reconsiderar toda una serie de prácticas y de planteamientos alternativos. Me refiero, a aquellas prácticas que se sitúan con toda su fuerza de ruptura frente al "recinto" de las Instituciones literarias y artísticas y circulan directamente en la compleja historia de la transformación de la existencia y de la Lucha de clases en contra del trabajo asalariado. La Escritura, la Creatividad, La Comunicación, nuevas prácticas artísticas transgresoras pueden salir de la separación en la que el Arte vive -tal y como la Tradición más o menos avanzada y progresista la concibe- y hacerse subversión, instrumentos de ruptura de los códigos históricamente existentes, y puesta a punto de algo Totalmente Diferente en tanto que simulacro de lo Diverso, a través de la institución de nuevas formas de expresión, comunicación y significado.

Incluso esta Exposición-Documentación-Acción teatral se insiere en una similar perspectiva de discurso. Giuseppe Pedrini y el Colectivo del Dragón, mediante todo el conjunto de instrunientos-fotografías-diapositivas-artículos de periódicos-citas dadaístas y futuristas y diferentes instancias teóricas creadas por el "teatro viviente", se apropian de una manera simbólica de un barrio, toman las calles, los lugares, introduciendo flujos de revuelta, de fiesta y de nuevos signos, y recobran la Vida cotidiana y viviente -Reconquistémonos la Vida, ha sido uno de los eslogans del Movimiento de 1977-, haciéndola emerger de nuevo de la dura costra de las costumbres en las que el poder la ha enclaustrado. Se trata de momentos de unión, reciprocidad y comunicación colectiva que se plantean como alternativos/transgresivos de todo un sistema de valores y de signos, valores y signos que el Orden y las Policías de siempre los quieren mantener sólidos e indiscutibles.

El Dragón es el Movimiento. Y los movimientos del Dragón son los modelos, "formas simbólicas" que surgen de toda una serie de categorías, de problemas de las maneras de ser que caracterizan las actitudes de los jóvenes en revuelta contra el Gran Sistema Uniforme del Poder. Y contra el Gran Sistema, productor de marginación y explotación, la posibilidad de la realización de la creatividad y del deseo, de un proyecto de vida de una manera nueva y alternativa con el espacio de la vida cotidiana, de una cultura expansiva y extendida como práctica común en los "espacios subversivos" y, para decirlo con Giuliano Scabia, en el "espacio de los enfrentamientos". Pero asimismo la transversalidad como enunciado deseante, la escritura transversal que circula, produce, transforma y libera las energías de la crítica, un nuevo y surreal impacto con la vida cotidiana, una distinta intensidad de la vida. Contra la represión en tanto que continuación de la política en el momento en que ésta se ha convertido en inservible para mantener la ordenada reglamentación de la vida cotidiana se trata -como han dicho algunos compañeros- y la necesidad es radical y política, de infringir el orden social, el orden de la cotidianedad, el orden precedente de las ansias y las conquistas, el orden sucesivo de un proceso de liberación que en la actualidad es quizá ya imprevisiblemente "guerra de secesión entre los distintos sectores sociales de la sociedad entera". La necesidad de la transgresión como desestructuración global nace, pues, de la conciencia que el Poder es disciplina y el Orden es una red productiva de opresión. Escribía un estudiante: "La docilidad difundida produce de retorno, también en las figuras que surgen en el actual movimiento, tácticas de contraposición frontal y/o separada cuando la red de poder se basa, por el contrario, sobre el exorcismo de los posibles puntos de subversión". Y aún más: "El pacto de conservación -tu ORDEN PRIVADO- en el que cada día te sometes -para salvaguardar momentos de tregua- dentro de la guerra que se ha desencadenado desde hace algún tiempo para impedir que tus actos -y los de tus compañeros- sean definitivos -irreversibles. Este frágil equilibrio ha fracasado violentamente". Tal extremismo teórico como practica de la transgresión permanente se refleja asimismo en esta experiencia del Dragón en cuanto -si se nos permite afirmarlo- "obra de arte total". Actitudes, pinturas, músicas, acciones, todo ello en tanto que comportamientos sígniocos alternativos.

Atravesar la realidad y ser atravesados por la realidad, la cotidianidad y el sentido común, apropiándose de nuevo de los espacios, los acontecimientos y el fluir de la vida, implicando a los incrédulos al margen de los miedos y las angustias en las que el Poder erige su propio dominio y celebra sus fiestas. Paranoia capitalista y esquizofrenia revolucionaria. No se trata de esquizofrenia en tanto que estrategia, sino como táctica para "rehacerse" la vida. Escisiones. Esquizoacción. Colores sobre los rostros y la vida como un viaje, como revelación permanente de momentos, visiones, re-descubrimientos, creatividad y prácticas dionisíacas. Super-realidad. Super-acción los cuerpos-máquinas deseantes, lúcidos, de los compañeros por nuevas formas de comprensión, erotismo, revuelta de transgresión, y rêverie, precisamente para, como decía Nietzsche (y con él Lenin y Breton aunque con otras palabras), "continuar soñando sabiendo soñar". El Dragón es el movimiento y los movimientos del Dragón son los movimientos simulacrizados de una reconquista de la vida todavía por realizar. La existencia está más allá. Y mientras tanto la Fiesta, la Acción de "guerrilla" en tanto que modelo para la Revolución Total de la Sociedad y de la Vida.

Cambiar la Vida: Presencia Armada como Transformación y las imágenes poético-artísticas y las acciones de comportamiento, por un lado, como aceleradores del Tiempo objetivo y, por el otro, como instrumentos desintegradores de los valores muertos de la Tradición y del Poder. En el vientre del Dragón se esconde el "secreto" de nuestra Resurrección materialista.



ALFREDO DE PAZ

Bolonia, 1 mayo 1977

Perspectivas da transformação consciente da vida quotidiana




Guy Debord

Esta exposição foi apresentada em 17 de maio de 1961 em fita magnética diante do Grupo de Investigações sobre a vida quotidiana, reunido por H. Lefebrve no Centre d'études sociologiques del C.N.R.S.. Foi publicado no número 6 de Internacionale Situationiste (agosto-1961). Tradução para o espanhol de Eduardo de Subrats - publicada no caderno descatalogado Textos situacionistas sobre arte e urbanismo (anagrama, 1973) e na internet pelo Archivo Situacionista Hispano. Traduzido do espanhol.

Estudar a vida quotidiana seria uma empresa perfeitamente ridícula e, alem disso, condenada desde o princípio a perder de vista seu próprio objeto, se não propuser explicitamente o estudo da vida quotidiana para transformá-la.

A própria conferência, a exposição de determinadas considerações intelectuais diante de um auditório, como forma extremamente banal de relações humanas em um setor bastante amplo da sociedade, também se insere na crítica da vida quotidiana.

Os sociólogos, por exemplo, tendem a se separar da vida quotidiana e lançar paras as esferas chamadas superiores tudo que lhes acontece a cada instante. É o hábito, começando pelo de manejar certos conceitos profissionais - produzidos pela divisão do trabalho - que sob todas as suas formas mascara assim a realidade por trás das condições privilegiadas.

Por conseguinte, é oportuno mostrar que se deslocamos ligeiramente as fórmulas correntes descobrimos aqui mesmo a vida quotidiana. É claro que a difusão destas palavras mediante um toca-fitas não pretende precisamente ilustrar a integração das técnicas a esta vida quotidiana marginal ao mudo técnico, mas de aproveitar a ocasião mais simples para romper com as aparências de pseudocolaboração, de diálogo fictício, que se instituem entre o conferente "de corpo presente" e sues espectadores. Esta ligeira ruptura com um conforto pode servir para decidir na estrutura da crítica da vida quotidiana (crítica que de outro modo resultaria completamente abstrata) esta mesma conferência, como tanta outras disposições do emprego do tempo e das coisas, que a força de considerá-las "normais" já não se discernem; e que, fundamentalmente, nos condicionam. A propósito de um detalhe semelhante, como a propósito do conjunto mesmo da vida quotidiana, a modificação constitui sempre a condição necessária e suficiente para fazer aparecer experimentalmente o objeto de nosso estudo, cuja ausência o converteria em algo duvidoso; o objeto ao qual se não trata apenas de estudar, mas de modificar

Acabo de dizer que a realidade de um conjunto observável que se designaria pelo termo "vida quotidiana" corre o risco de ser hipotético para muitas pessoas. Com efeito, desde que se constituiu este grupo de investigação, o traço mais destacável não é evidentemente que ainda não haja descoberto nada, mas que desde o primeiro momento se tenha estabelecido a questão da própria existência da vida quotidiana; e não tenha deixado de aprofundar-se de sessão em sessão. A maioria das intervenções que até agora se puderam escutar nesta discussão procediam de pessoas nada convencidas de que a vida quotidiana exista, pois não a encontraram em nenhum lugar. Um grupo de investigação sobre a vida quotidiana, animado com semelhante espírito, é comparável em todos os seus aspectos a um grupo que partisse em busca do abominável homem das neves e cuja investigação poderia desembocar perfeitamente na conclusão de que na realidade não se tratava mais que de uma bufonada folclórica.

Entretanto, todo mundo está de acordo em que determinados gestos repetidos cada dia, como abrir as portas ou encher os vasos, são plenamente reais; mas estes gestos se encontram em um nível tão trivial da realidade que com razão se põe em dúvida seu possível interesse para justificar uma nova especialização da investigação sociológica. E certo número de sociólogos parecem pouco inclinados a imaginar outros aspectos da vida quotidiana a partir da definição proposta por Henri Lefebvre, isto é, "o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas". Aqui descobrimos que a maioria dos sociólogos - e já sabemos a satisfação que sentem em suas atividades especializadas, justamente, e o quanto de ordinário lhe consagram uma fé cega - a maioria dos sociólogos, digo, reconhecem atividades especializadas por doquier, e a vida quotidiana em nenhum lugar. A vida quotidiana se encontra sempre em outra parte, entre os outros, e em todo caso, entre as classes não-sociólogas da população. Alguém disse aqui que os trabalhadores constituíam um interessante objeto de estudo, por se tratarem de cobaias provavelmente inoculadas com esse vírus da vida quotidiana, pois não tendo acesso às atividades especializadas, tampouco podem viver outra coisa que a vida quotidiana. Esta maneira de pegar o povo em busca de um longínquo primitivismo do quotidiano, e sobretudo, esta complacência declarada e sem rodeios, esta ingênua arrogância de participar de uma cultura cuja categórica decadência, sua incapacidade radical de compreender o mundo que a produz ninguém pode ocultar, tudo isto não deixa de ser surpreendente.

Existe uma vontade manifesta de abrigar-se por baixo de uma formação do pensamento baseada na separação de domínios parcelares artificiais, a fim de recusar o conceito inútil, vulgar e nojento da "vida quotidiana". Semelhante conceito encobre um resíduo da realidade catalogada e classificada com o qual alguns não desejam enfrentar, pois constitui, ao mesmo tempo, o ponto de vista da totalidade e implicaria a necessidade de um juízo global, de uma política. Dir-se-ia que certos intelectuais se vangloriam assim de uma ilusória participação pessoal no setor dominante da sociedade, através da possessão de uma ou mais especializações culturais; isso os situa em primeiro plano, para se dar conta do ato seguido de que o conjunto desta cultura dominante está sensivelmente apoiado. Mas qualquer que seja o juízo que se pronuncie sobre a coerência dessa cultura ou sobre o interesse de seus aspectos, a alienação que ela impôs aos intelectuais em questão consiste em fazê-los crer, desde o céu dos sociólogos, que estes se encontram completamente fora dessa vida quotidiana de qualquer povo, ou situados num lugar por demais elevado na escala dos poderes humanos, como se estes mesmos não fossem igualmente pobres.

Não há dúvida de que as atividades especializadas têm uma existência; em uma época dada adquirem inclusive um uso geral que deve reconhecer-se sempre de uma forma desmistificada. A vida quotidiana não o é totalmente. Certamente, existe uma osmose entre esta e as atividades especializadas, e até o extremo que, desde determinado ponto de vista, nunca nos encontramos fora da vida quotidiana. Mas se se recorre à fácil imagem de uma representação espacial das atividades, a vida quotidiana deve se situar, além do mais, no centro de tudo. Cada projeto em parte e cada realização adquirem de novo nesta sua nova significação. A vida quotidiana é a medida de todas as coisas: do cumprimento ou melhor do descumprimento das relações humanas, do uso do tempo vivido, da busca da arte, da política revolucionária.

Não basta recordar que o tipo de velha imagem de Epinal científica do observador desinteressado é falaz em todos os casos. Deve-se sublinhar que a observação desinteressada ainda é menos factível aqui que em qualquer outro lugar. E a dificuldade inclusive de reconhecer um terreno da vida quotidiana não reside unicamente em que este constituiria o ponto de convergência de uma sociologia empírica e de uma elaboração conceitual, mas também no fato de que esse mesmo momento suporia a atualização de toda renovação revolucionária da cultura e da política.

A vida quotidiana não criticada implica neste momento a prolongação das formas atuais, profundamente degradadas, da cultura e da política, formas cuja crise extremamente avançada, sobretudo nos países modernos, se traduz em uma despolitização e em um neo-analfabetismo generalizado. Pelo contrário, a crítica radical, atuando sobre a vida quotidiana dada pode levar a uma superação da cultura e da política no sentido tradicional, isto é em um nível superior de intervenção na vida.

Não obstante, se dirá: Como podem existir pessoas que desprezam tão completa e imediatamente esta vida quotidiana, que para mim constitui a única vida real, mesmo quando essas pessoas não tem, apesar de tudo, nenhum interesse direto em fazê-lo? E por quê, se muitas dessas não são nada hostis a qualquer renovação do movimento revolucionário?

Creio que isso é devido ao fato de que a vida quotidiana está organizada dentro dos limites de uma pobreza escandalosa. E, sobretudo, porque essa pobreza da vida quotidiana não tem nada de acidental: é uma pobreza imposta em cada instante pela força e a violência de uma sociedade dividida em classes; uma pobreza historicamente organizada de acordo com as necessidades históricas da exploração. O uso da vida quotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido está condenado pelo reino da carência de tempo livre; e carência dos possíveis usos deste tempo livre.

Assim como a história de nossa época é a história da acumulação da industrialização, também o atraso da vida quotidiana, sua tendência ao imobilismo, são os produtos das leis e interesses que presidiram essa industrialização. Efetivamente, a vida quotidiana apresenta, até nossos dias, uma resistência ao histórico. Isso põe em questão, em primeiro lugar, ao histórico mesmo, enquanto herança e projeto de uma sociedade exploradora.

A pobreza extrema da organização consciente, da criatividade das pessoas na vida quotidiana, traduz a necessidade fundamental da inconsciência e da mistificação em uma sociedade exploradora, em uma sociedade de alienação.

Neste ponto, Henri Lefebvre aplicou extensamente o conceito de desenvolvimento desigual para caracterizar a vida quotidiana, desatada mas não desgarrada da historicidade, como um setor atrasado. Creio que inclusive pode-se qualificar este nível da vida quotidiana como setor colonizado. À escala da economia mundial se comprovou que o subdesenvolvimento e a colonização são dois fatores em mútua interação. Pois bem, tudo nos faz pensar que no nível da formação econômico-social, da praxis, vem a acontecer o mesmo.

A vida quotidiana, mistificada por todos os meios e controlada policialmente, é uma espécie de reserva para os bons selvagens que, sem sabê-lo, fazem marchar a sociedade moderna no compasso do rápido crescimento dos poderes técnicos e da expansão forçada de seu mercado. A história - isto é, a transformação do real - não se pode utilizar atualmente na vida quotidiana toda vez que o homem da vida quotidiana é o produto de uma história sobre a qual não tem nenhum controle. Evidentemente, é ele mesmo que faz esta história, mas não livremente.

A sociedade moderna está constituída por fragmentos especializados, mais ou menos intransmissíveis, e a vida quotidiana, de onde se corre o risco de estabelecer todas as questões de uma maneira unitária, é por isso mesmo o domínio da ignorância.

Através de sua produção industrial, esta sociedade usurpou todo sentido dos gestos do trabalho. E não existe nenhum modelo de conduta humana que conservou uma verdadeira atualidade no quotidiano.

Esta sociedade tende a atomizar as pessoas convertendo-as em consumidores isolados, e a impedir toda comunicação. A vida quotidiana se converte em vida privada, domínio da separação e do espetáculo.

Desse modo, a vida quotidiana se torna também a esfera da demissão dos especialistas. É daí, por exemplo, que alguns dos poucos indivíduos capazes de compreender a mais recente imagem científica do universo, se converte num estúpido e pondera amplamente as teorias artísticas de Alain Robbe-Grillet, ou melhor, manda petições ao presidente da república com a pretensão de desviar sua política. É a esfera do desarme, do reconhecimento da incapacidade de viver.

Por conseguinte, o subdesenvolvimento da vida quotidiana não pode se caracterizar somente a respeito a sua relativa incapacidade de integrar algumas técnicas. Este traço é um produto importante, mas ainda parcial, do conjunto da alienação quotidiana que se poderia definir como a incapacidade de inventar um técnica de libertação do quotidiano.

E de fato, existem muitas técnicas que modificam mais ou menos nitidamente certos aspectos da vida quotidiana: as artes domésticas, como já se disse aqui, mas também o telefone, a televisão, a gravação musical em discos, as viagens aéreas populares, etc. Estes elementos intervêm anarquicamente, ao acaso, sem que ninguém preveja nem suas conexões nem suas conseqüências. Mas não há dúvida de que, em seu conjunto, este movimento, que introduz certas técnicas no interior da vida quotidiana, e marcado em última instância pela racionalidade do capitalismo moderno burocratizado, adquire mais precisamente o sentido de uma limitação da independência e da criatividade das pessoas. Assim, as novas cidades de nossos dias demostram claramente a tendência totalitária que caracteriza a organização da vida pelo capitalismo moderno: nelas os indivíduos isolados (isolados geralmente na estrutura da célula familiar) contemplam como se reduz sua vida à pura trivialidade do repetitivo, diante da absorção obrigatória de um espetáculo igualmente repetitivo.

Devemos acreditar, por conseguinte, que a censura que as pessoas exercem sobre as questões relativas a sua própria vida quotidiana se explica pela consciência de sua insustentável miséria, e ao mesmo tempo, pela sensação, talvez inconfessa, mas inevitavelmente experimentada qualquer dia, de que todas as possibilidades verdadeiras, todos os desejos bloqueados pelo funcionamento da vida social, residiam precisamente nela, e de nenhum modo nas atividades ou distrações especializadas. Isto é, o conhecimento da riqueza profunda, da energia abandonada na vida quotidiana como miséria e como prisão; portanto, em um mesmo movimento nos leva a negar o problema.

Nestas condições, mascarar a questão política que estabelece a miséria da vida quotidiana significa mascarar a profundeza das reivindicações da riqueza possível desta vida; reivindicações que não levariam a nada menos que a reinventar a revolução. Se admitirá que elucidar uma política a este nível não é de modo algum contraditório com o fato de militar no Partido Socialista Unificado, por exemplo, ou de ler L’Humanité inocentemente.

Efetivamente, tudo depende do nível em que se coloca o seguinte problema: como se vive? Como alguém se satisfaz ou não se satisfaz? E isso sem se deixar influenciar nem por um único instante pelos diversos anúncios que pretendem nos persuadir de que se pode ser feliz graças à existência de Deus, do dentifrício Colgate ou do C.N.R.S.

Considero que o termo "crítica da vida quotidiana" também poderia ou deveria ser entendido com a seguinte inversão: a crítica que a vida quotidiana exercerá soberanamente a tudo o que lhes é exterior.

O problema do emprego dos meios técnicos, tanto na vida quotidiana como fora dela, não é nada mais que um problema político (e entre todos os meios técnicos utilizáveis, só se pôs em prática aqueles que foram autenticamente selecionados conforme o objetivo de conservar o domínio de uma classe). Quando se considera a hipótese de um futuro, tal como se admite na literatura de ficção científica, onde as aventuras interestrelares coexistiriam com um vida quotidiana conservada nesta terra sob a mesma indigência material e o mesmo moralismo arcaico, subentende-se com isso, exatamente, que continuaria existindo uma classe de dirigentes especializados mantendo a seu serviço as massas proletárias das fábricas e oficinas; e que as aventuras interestrelares não seriam nada mais que a empresa escolhida por estes dirigentes, a melhor maneira que teriam encontrado para desenvolver sua economia irracional, a consumação da atividade especializada.

Nos perguntam: a vida privada está privada de que? Muito simples: da vida, a vida está cruelmente ausente. A gente está privada de comunicação até os limites do possível; e de realização de si mesmo. Deveria-se dizer: privada de fazer pessoalmente sua própria história. As hipóteses que pretendem responder positivamente à questão sobre a natureza da privação não poderiam ser enunciadas, por conseguinte, senão sob a forma de projetos de enriquecimento; projeto de outro estilo de vida; em fim, de um estilo... Ou melhor, se se considera que a vida quotidiana se encontra nos limites entre o setor dominado e o setor não-dominado da vida, ou seja, no lugar do aleatório, será preciso chegar a substituir o gueto atual por alguns limites constantemente móveis; trabalhar permanentemente na organização de novas possibilidades.

A questão da intensidade do vivido se coloca atualmente, a propósito por exemplo do uso dos estupefacientes, nos termos em que a sociedade da alienação é capaz de colocar qualquer questão: nos termos do falso reconhecimento de um projeto falsificado, em termos de fixação e de petrificação. Também convêm recalcar até que ponto a imagem do amor elaborada e difundida nesta sociedade se assemelha com a droga. Nela, a paixão é reconhecida em primeiro como recusa de todas as demais paixões, mas só para trabalhá-la posteriormente, até que por fim já não se reencontre nada mais que nas compensações do espetáculo reinante. La Rochefaucauld escreveu: "O que freqüentemente nos impede de abandonar um único vício é que temos vários". Eis aqui uma constatação muito positiva se, descartando seus pressupostos moralistas, a colocamos sobre seus pés, como base descartando suas pressuposições das capacidades humanas.

Todos esses problemas estão na ordem do dia em uma época claramente dominada pela aparição do projeto - cujo porta-voz é a classe trabalhadora - de abolir toda a sociedade de classes e começar a história humana; e dominada, como colorário, pela encarniçada resistência a este projeto, pelos extravios e os fracassos deste projeto que se sucederam até nossos dias.

A crise atual da vida quotidiana se inscreve nas novas formas de crises do capitalismo, formas que seguem despercebidas por quem se obstina em calcular em função do vencimento clássico das próximas crises cíclicas da economia.

A desaparição de todos os antigos valores de todas as referências da comunicação anterior no capitalismo desenvolvido, e a impossibilidade de substituí-los por outros, quaisquer que sejam, sem conseguir previamente o domínio racional, tanto na vida quotidiana como em qualquer outro lugar, das novas forças industriais que cada vez mais escapam mais a nosso controle; estes fatos não só engendram a insatisfação quase oficial de nossa época, insatisfação particularmente aguda na juventude, mas ainda mais no movimento de autonegação da arte. A atividade artística sempre foi a única que prestou contas dos problemas clandestinos da vida quotidiana, mas de uma maneira oculta, deformada, parcialmente ilusória. Diante de nossos olhos existe já o testemunho de uma destruição de toda expressão artística: é arte moderna.

Se consideramos em toda sua extensão a crise da sociedade contemporânea, não parece que o tempo de ócio pode ser considerado ainda como uma negação do quotidiano. Se admitiu aqui a necessidade de "estudar o tempo perdido". Mas vejamos o movimento recente dessa idéia de tempo perdido. Para o capitalismo clássico, o tempo perdido é o tempo exterior à produção, à acumulação e à economia. A moral laica que se ensina nas escolas da burguesia implantou essa norma de vida. Entretanto por um ardil inesperado, o capitalismo moderno necessita acrescentar o consumo, "elevar o nível de vida" (se se quer lembrar que esta expressão carece rigorosamente de sentido). E dado que, ao mesmo tempo, as condições de produção, parcelarizada e cronometrada até um grau extremo, chegaram a ser completamente insustentáveis, a moral que já abriu passagem na publicidade, na propaganda e em as formas do espetáculo dominante, admite francamente que o tempo perdido é o tempo de trabalho, que já unicamente se justifica pelos diversos graus de lucro que procura, o qual permite comprar o repouso, o consumo, o tempo de ócio - ou seja, uma passividade quotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo.

Se agora consideramos a facticidade das necessidades de consumo que altera de pés a cabeça e estimula incessantemente a indústria moderna - se se conhece o vazio do ócio e a impossibilidade do repouso -, podemos colocar a questão em termos mais realistas: Que não seria o tempo perdido? Dito de outro modo: O desenvolvimento da sociedade da abundância deveria desembocar na abundância de quê?

Evidentemente, isto pode servir como pedra de toque para muitos pontos de vistas. Por exemplo, num dos periódicos que dão mostra da inconsistência teórica dessas pessoas as quais se chama intelectuais de esquerda - me refiro ao France Observatour -, se anuncia algo assim como "O automóvel utilitário no assalto do socialismo", para encabeçar um artigo em que se diz que nestes tempos, os russos já perseguem individualmente um consumo privado de bens no estilo americano, começando naturalmente, pelos automóveis; quando lemos coisas deste estilo não podemos evitar a reflexão de que não é necessário ter assimilado depois de Hegel, toda a obra de Marx para advertir pelo menos que um socialismo que retrocede diante da invasão do mercado por automóveis utilitários não é de modo algum o socialismo pelo qual o movimento dos trabalhadores luta. Desse modo, a oposição contra a burocracia dirigente da Rússia não deve partir de uma análise qualquer de sua tática ou de seu dogmatismo, mas do princípio de que o sentido da vida dos indivíduos não tenha mudado realmente. E isto não é a obscura fatalidade da vida quotidiana destinada a permanecer sendo reacionária. É uma fatalidade imposta desde o exterior da vida quotidiana pela esfera reacionária dos dirigentes especializados, qualquer que seja a etiqueta sob a qual a planificam a miséria em todos os seus aspectos.

Por isso a despolitização atual de muitos dos antigos militantes da esquerda, seu abandono de uma certa alienação para cair nos braços de outra, a da vida privada, não tem o sentido de um retorno à privação como um refúgio contra as "responsabilidades da historicidade", mas sim o de um alheamento do setor político especializado, e por conseguinte sempre manipulado por outros; e a única responsabilidade que se assume verdadeiramente com isso é a de abandonar todas as responsabilidades a chefes incontrolados; é aí onde se burlou e se escamoteou o projeto comunista. Não se pode opor em bloco a vida privada à vida pública sem se perguntar: o que é vida privada? O que é vida pública? (pois a vida privada carrega os fatores de sua própria negação e superação, assim como a ação revolucionária coletiva pôde alimentar os fatores de sua degeneração). Mas do mesmo modo seria um erro fazer o balanço de uma alienação dos indivíduos na política revolucionária, quando do que se tratava era da alienação da política revolucionária. Dialetizar o problema da alienação, assinalar as possibilidades de alienação que constantemente aparecem no seio da mesma luta contra a alienação, tudo isso constitui uma tarefa legítima, mas devemos sublinhar ao mesmo tempo que semelhante tarefa deve ser levada a cabo no nível mais elevado da investigação (por exemplo, na filosofia da alienação em seu conjunto), e não no plano do estalinismo, cuja explicação, desgraçadamente, é mais grosseira.

Em nenhum lugar se superou ainda a civilização capitalista, apesar de que continua engendrando por força seus inimigos. A próxima ascensão do movimento revolucionário, radicalizado pela experiência das derrotas precedentes, deverá enriquecer seu programa reivindicativo até o nível dos poderes práticos da sociedade moderna, poderes que a partir do presente constituem virtualmente o nível dos poderes práticos da sociedade moderna, poderes que a partir do presente constituem virtualmente a base material que faltava às correntes do socialismo chamadas utópicas; esta próxima tentativa de contestação total do capitalismo saberá inventar e propor um uso distinto da vida quotidiana, e se apoiará imediatamente nas novas práticas quotidianas, em novos tipos de relações humanas (sem ignorar já que toda conservação no seio da organização revolucionária mesma das relações dominantes na sociedade existente conduz inevitavelmente à restauração, com diversas variantes, desta mesma sociedade).

Assim como antigamente a burguesia, em sua fase ascendente, teve que liquidar implacavelmente tudo que estava além da vida terrena (o céu, a eternidade), assim também o proletariado revolucionário - que jamais pode reconhecer um passado ou um modelo, a menos que deixe de existir como tal - deverá renunciar a tudo que exceda à vida quotidiana, Ou melhor , a tudo que pretende axcedê-la: o espetáculo, o gesto ou a frase "históricos", a "grandeza" dos dirigentes, o mistério das especializações, a "imortalidade" da arte e sua importância exterior à vida. O que quer dizer: renunciar a todos os subprodutos da eternidade que sobreviveram como armas do mundo dos dirigentes.

A revolução na vida quotidiana, na medida em que destrói sua atual resistência ao histórico (e a todo tipo de mudança), criará as condições que farão possível "a dominaçãos do presente sobre o passado", e nas quais a criatividade venderá a repetição. Deve-se esperar, portanto, que o lado da vida quotidiana expresso pelos conceitos da ambigüidade - mal-entendido, compromisso ou abuso - perca amplamente sua importância em proveito de seus contrários, a eleição consciente ou o risco.

A atual critica artística da linguagem, contemporânea desta metalinguagem das máquinas que não é outra coisa que a linguagem burocratizada da burocracia no poder, será superada então por formas superiores de comunicação. A noção presente de texto social decifrável deverá dar origem a novos procedimentos de escrita de tal texto social, seguindo a direção das investigações atuais de meus companheiros situacionistas sobre o urbanismo unitário e sobre o esboço de um comportamento experimental. A produção central de um trabalho industrial completamente transformado será a criação de novas configuração da vida quotidiana, a criação livre dos acontecimentos.

A crítica e a recriação perpétuas da totalidade da vida quotidiana, antes de que seja efetuada de uma forma natural por todos os homens, deve ser empreendida sob as condições da opressão total, e com o objetivo de arruinar tal opressão.

Entretanto, não é um movimento cultural de vanguarda quem pode cumprir semelhante programa, por maior que seja suas simpatias revolucionárias. E tampouco pode realizá-lo um partido revolucionário de molde tradicional, por muito que conceda um lugar primordial à crítica da cultura (entendendo este termo como o conjunto de instrumentos artísticos ou conceituais mediante os quais uma sociedade se explica a si mesma, estabelecendo objetivos para a vida). Uma e outra, esta cultura e esta política, já estão esgotadas, por isso não é de se estranhar que a maior parte das pessoas se sintam indiferentes a elas. A transformação revolucionária da vida quotidiana não está reservada a um futuro vago: o desenvolvimento do capitalismo e seus insustentáveis imperativos nos estabelece imediatamente, na medida em que sua alternativa não é outra senão a perpetuação da escravidão moderna; e esta transformação assinalará o fim de toda expressão artística unilateral e armazenada sob a forma de mercadoria, ao mesmo tempo que o fim de toda política especializada.

Esta será a tarefa de uma nova organização revolucionária; tarefa que começará a partir de sua própria formação.

Guy Debord, 1961


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Cornelius Castoriadis


Texto publicado em Socialisme ou Barbarie, nº 17 (julho de 1955). O texto era precedido da seguinte indicação: "Este texto inicia uma discussão sobre os problemas programáticos que terá prosseguimento nos próximos números de Socialisme ou Barbarie".

Da critica da burocracia à idéia da autonomia do proletariado

As idéias expostas neste texto serão talvez mais facilmente compreendidas se retraçarmos o caminho que nos conduziu a elas. Na verdade, partimos de certas posições nas quais se situa necessariamente um militante operário ou um marxista numa determinada etapa de seu desenvolvimento, portanto, de posições que foram partilhadas, num momento ou noutro, por todos aqueles aos quais nos dirigimos; e se as concepções aqui apresentadas possuem algum valor, seu desenvolvimento não pode ser obra do acaso ou de características pessoais, mas deve encarnar uma lógica objetiva em funcionamento. Descrever este desenvolvimento só pode pois aumentar a clareza e facilitar o controle do resultado final.[1]

Como muitos outros militantes de vanguarda, começamos por constatar que as grandes organizações "operárias" não possuem mais uma política marxista revolucionária ou não representam mais os interesses dos proletários. O marxista chega a esta conclusão confrontando a ação dessas organizações ("socialistas" reformistas ou "comunistas" estalinistas) com a sua própria teoria. Vê os partidos ditos "socialistas" participarem de governos burgueses, exercerem ativamente a repressão de greves ou de movimentos dos povos das colônias, serem campeões da defesa da pátria capitalista, e até esquecerem a referência a um regime socialista. Vê os partidos "comunistas" estalinistas aplicarem ora esta mesma política oportunista de colaboração com a burguesia, ora uma política "extremista", um aventureirismo violento sem relação com uma estratégia revolucionária conseqüente. O trabalhador consciente faz as mesmas constatações ao nível de sua experiência de classe; vê os socialistas envidarem seus esforços para moderar as reivindicações de sua classe e para tornar impossível qualquer ação eficaz visando a satisfazê-los, para substituir a greve por conversações com o patronato e o Estado; vê os estalinistas ora proibirem rigorosamente as greves (como de 1945 a 1947) e tentarem reduzi-las mesmo pela violência[2] ou fazê-las abortar insidiosamente,[3] ora quererem impor brutal- mente a greve aos operários que não desejam fazê-la, pois percebem que ela é alheia a seus interesses (como em 1951-1952, com as greves "antiamericanas"). Fora da fábrica, o trabalhador vê também os socialistas e os comunistas participarem de governos capitalistas, sem que disto resulte alguma modificação em sua condição; e ele os vê se associarem, tanto em 1936 quanto em 1945, quando sua classe quer agir e o regime está em situação desesperadora, para interromper o movimento e salvar este regime, proclamando que é preciso saber encerrar uma greve", que é preciso "produzir primeiro e reivindicar depois".

Tanto o marxista quanto o operário consciente, constatando essa oposição radical entre a atitude das organizações tradicionais e uma política marxista revolucionária que exprima os interesses históricos e imediatos do proletariado, poderão então pensar que estas organizações "se enganam" ou que elas "traem". Mas, na medida em que refletem, ou ficam sabendo, ou constatam que reformistas e estalinistas se comportam do mesmo modo dia após dia, que se comportaram assim sempre e em toda a parte, outrora, agora, aqui e em outros lugares, eles vêem que não tem sentido falar de "traição" e de "erros". Poder-se-ia falar de "erros" se esses partidos procurassem atingir os objetivos da revolução proletária com meios inadequados; mas estes meios, aplicados de modo coerente e sistemático há dezenas de anos, demonstram simplesmente que os objetivos dessas organizações não são os nossos, e que essas mesmas organizações expressam interesses diferentes daqueles do proletariado. A partir do momento em que se compreendeu isto, não tem sentido dizer que elas "traem". Se um comerciante, para me vender sua mercadoria, me conta histórias e tenta me persuadir que é do meu interesse comprá-la, posso dizer que ele me engana, mas não que ele me trai. Do mesmo modo, o partido socialista ou estalinista, ao tentar persuadir o proletariado de que representam os seus interesses, enganam-no, mas não o traem; eles traíram o proletariado de uma vez por todas, há muito tempo, e, depois disto, não são traidores da classe operária, mas servidores conseqüentes e fiéis de outros interesses, os quais é preciso determinar.

Aliás, esta política não aparece simplesmente constante em seus meios e em seus resultados. Ela está encarnada na camada dirigente dessas organizações ou sindicatos; o militante percebe rapidamente e às suas próprias custas que esta camada é inamovível, que ela sobrevive a todas as derrotas e que se perpetua por cooptação. Quer o regime interno da organização seja "democrático" como nos reformistas, quer seja ditatorial, como nos estalinistas, a massa dos militantes não pode absolutamente influir em sua orientação, que é determinada sem apelação por uma burocracia cuja estabilidade nunca é questionada; pois mesmo quando o núcleo dirigente chega a ser substituído, ele o é em proveito de um outro não menos burocrático.

Nesse momento, o marxista e o operário consciente esbarram quase fatalmente com o trotskismo.[4] O trotskismo oferece, com efeito, uma critica permanente, passo após passo, da política reformista e estalinista há um quarto de século, mostrando que as derrotas do movimento operário - Alemanha 1923, China 1925-1927, Inglaterra 1926, Alemanha 1933, Áustria 1934, França 1936, Espanha 1936-38, França e Itália 1945-47 etc. - se devem à política das organizações tradicionais, e que esta política esteve em constante ruptura com o marxismo. Ao mesmo tempo, o trotskismo[5] oferece uma explicação da política desses partidos a partir de uma análise sociológica. Em relação ao reformismo, retoma a interpretação dada por Lenin: o reformismo dos socialistas exprime os interesses de uma aristocracia operária (que os lucros excedentes do imperialismo permitem corromper através de salários mais elevados) e de uma burocracia sindical e política. Em relação ao estalinismo, sua política está a serviço da burocracia russa, desta camada parasitária e privilegiada que usurpou o poder no primeiro Estado operário, graças ao caráter atrasado do país e ao recuo da revolução mundial depois de1923.

Havíamos começado nosso trabalho de critica a partir do problema da burocracia estalinista, no seio mesmo do trotskismo. Por que foi exatamente sobre este problema, não há necessidade de longas explicações. Enquanto o problema do reformismo parecia resolvido pela história, como reformismo tornando-se cada vez mais um defensor aberto do capitalismo,[6] sobre o problema do estalinismo - que é o problema contemporâneo por excelência e que na prática tem um peso muito maior que o primeiro - a história de nossa época desmentia constantemente a concepção trotskista e as perspectivas que dela decorriam. Para Trotsky, a política estalinista se explicava pelos interesses da burocracia russa, produto da degenerescência da revolução de Outubro. Esta burocracia não tinha nenhuma "realidade própria", historicamente falando; ela era apenas um "acidente", produto do equilíbrio constantemente rompido entre as duas forças fundamentais da sociedade moderna, o capitalismo e o proletariado. Na Rússia, ela se apoiava mesmo nas "conquistas de Outubro", que haviam dado bases socialistas à economia do país (nacionalização, planificação, monopólio do comércio exterior etc.) e na manutenção do capitalismo no resto do mundo; pois a restauração da propriedade privada na Rússia significaria a derrubada da burocracia em proveito de um retorno dos capitalistas, enquanto que a extensão mundial da revolução acabaria com este isolamento da Rússia - do qual a burocracia era o resultado, ao mesmo tempo econômico e político - e determinaria uma nova explosão revolucionária do proletariado russo, que expulsaria os usurpadores. Daí o caráter necessariamente empírico da política estalinista, obrigada a bordejar entre os dois adversários, e dando-se como objetivo a manutenção utópica do status quo; obrigada a sabotar todo movimento proletário desde que este colocasse em perigo o regime capitalista, e obrigada também a compensar em excesso esta sabotagem através de uma violência extrema a cada vez que a reação, encorajada pela desmoralização do proletariado, tentasse instaurar uma ditadura e preparar uma cruzada capitalista contra "os restos das conquistas de Outubro". Assim, os partidos estalinistas estavam condenados a uma alternância de aventureirismo "extremista" e de oportunismo.

Mas nem esses partidos nem a burocracia russa podiam permanecer assim indefinidamente suspensos no ar; na ausência de uma revolução, dizia Trotsky, os partidos estalinistas assimilar-se- iam cada vez mais aos partidos reformistas e comprometidos com a ordem burguesa, enquanto a burocracia russa seria derrubada, com ou sem intervenção militar estrangeira, em proveito de uma restauração do capitalismo.

Trotsky havia associado este prognóstico ao desfecho da Segunda Guerra Mundial, que, como se sabe, o desmentiu fragorosamente. Os dirigentes trotskistas se deram o ridículo de afirmar que sua realização era uma questão de tempo. Mas, para nós, o que se tornou imediatamente manifesto - já durante a guerra - é que não se tratava, e não poderia se tratar de uma questão de prazo, mas do sentido da evolução histórica, e que toda a construção de Trotsky era mitológica em seus fundamentos.

A burocracia russa passou pela prova crucial da guerra mostrando tanta resistência quanto qualquer outra classe dominante. Se o regime russo comportava contradições, apresentava também uma estabilidade não menor que a do regime americano ou alemão. Os partidos estalinistas não passaram para o lado da ordem burguesa, mas continuaram a seguir fielmente (com exceção, é claro, das deserções individuais como existem em todos os partidos) a política russa: partidários da defesa nacional nos países aliados à URSS, adversários desta defesa nos países inimigos da URSS (aí compreendidas as viradas sucessivas do PC francês em 1939, 1941 e 1947). Enfim, fato mais importante e mais extraordinário, a burocracia estalinista estendia seu poder a outros países: quer impondo seu poder em favor da presença do Exército russo, como na maior parte dos países satélites da Europa Central e dos Bálcãs, quer dominando inteiramente um movimento confuso de massas, como na Iugoslávia (ou, mais tarde, como na China e no Vietnã, ela instaurava nesses países regimes tão análogos em todos os aspectos ao regime russo (levando em conta, evidentemente, as condições locais), os quais, com toda certeza, era ridículo qualificar de Estados operários degenerados. [7]

Nesse momento, era-se pois obrigado a procurar o que dava essa estabilidade e essas possibilidades de expansão à burocracia estalinista, tanto na Rússia quanto em outros países. Para fazê-lo, foi necessário retomar a análise do regime econômico e social da Rússia. Uma vez abandonada a tática trotskista, era fácil ver, utilizando categorias marxistas fundamentais, que a sociedade russa é uma sociedade dividida em classes, entre as quais as duas fundamentais são a burocracia e o proletariado. A burocracia exerce o papel de classe dominante e exploradora no pleno sentido do termo. Não se trata apenas do fato de ela ser uma classe privilegiada, cujo consumo improdutivo absorve uma parte do produto social comparável (provavelmente superior) ao que absorve o consumo improdutivo da burguesia nos países de capitalismo privado. E ela que comanda soberanamente a utilização do produto social total, primeiramente determinando a sua repartição em salários e mais-valia (ao mesmo tempo em que tenta impor aos operários os salários mais baixos possíveis e extrair deles a maior quantidade de trabalho possível), em seguida determinando a repartição desta mais-valia entre seu próprio consumo improdutivo e novos investimentos, e, enfim, determinando a repartição destes investimentos entre os diversos setores da produção.

Mas a burocracia só pode comandar a utilização do produto social porque ela comanda também a produção. E porque ela gere a produção ao nível da fábrica que pode constantemente obrigar os trabalhadores a produzir mais pelo mesmo salário; é porque gere a produção ao nível da sociedade que pode decidir pela fabricação de canhões e de sedas em vez de moradias ou tecidos de algodão. Constata-se pois que a essência, o fundamento da dominação da burocracia sobre a sociedade russa é o fato de que ela domina no interior das relações de produção; ao mesmo tempo, constata-se que esta mesma função foi sempre a base da dominação de uma classe sobre a sociedade. Dito de outra maneira, a essência efetiva das relações de classe na produção é sempre a divisão antagônica dos participantes da produção em duas categorias fixas e estáveis, dirigentes e executantes. O resto diz respeito aos mecanismos sociológicos e jurídicos que garantem a estabilidade da classe dirigente; tais são propriedade feudal da terra, a propriedade privada capitalista ou esta estranha forma de propriedade privada, impessoal, do capitalismo atual; tais são, na Rússia, a ditadura totalitária do organismo que exprime os interesses gerais da burocracia, o partido "comunista", e o fato de que o recrutamento dos membros da classe dominante se faz por uma cooptação que se estende à escala da sociedade global. [8]

Disto resulta que a nacionalização dos meios de produção e a planificação não resolvem absolutamente o problema do caráter de classe da economia, não significa de forma alguma a supressão da exploração; elas certamente provocam a supressão das antigas classes dominantes, mas não respondem ao problema fundamental: quem dirigirá agora a produção, e como o fará? Se uma nova categoria de indivíduos assume essa direção, a "antiga confusão", da qual falava Marx, reaparecerá rapidamente; pois esta classe utilizará sua posição para criar privilégios para si mesma e para aumentar e consolidar estes privilégios; reforçará seu monopólio das funções de direção, tendendo a tornar sua dominação mais total e mais difícil de ser colocada em causa; ela se inclinará a assegurar a transmissão destes privilégios a seus descendentes etc.

Com relação à argumentação de Trotsky, para quem a burocracia não é classe dominante porque os privilégios burocráticos não são transmissíveis hereditariamente, basta lembrar: 1º) que a transmissão hereditária não é absolutamente um elemento necessário da categoria classe dominante; 2º) que, de fato, o caráter hereditário de membro da burocracia (não certamente de tal situação burocrática particular) é evidente; basta uma medida como a não-gratuidade do ensino secundário (estabelecida em 1936), para instaurar um mecanismo sociológico inexorável que assegura que somente os filhos de burocratas poderio ingressar na carreira burocrática. Além de tudo isto, o fato de que a burocracia queira tentar (através de bolsas de estudo ou de seleção por "mérito absoluto") atrair para si os talentos que nascem no seio do proletariado ou do campesinato, não somente não contradiz mas sobretudo confirma o seu caráter de classe exploradora; mecanismos análogos existiram desde sempre nos países capitalistas e sua função social é de revigorar através de sangue novo a classe dominante, de melhorar em parte as irracionalidades que resultam do caráter hereditário das funções dirigentes e de mutilar as classes exploradas corrompendo os seus elementos mais bem dotados.

É fácil perceber que não se trata aqui de um problema particular da Rússia ou dos anos 1920. Pois o problema se põe para o conjunto da sociedade moderna, independentemente mesmo da revolução proletária; ele é apenas uma outra expressão do processo de concentração das forças produtivas. O que é que cria, efetiva- mente, a possibilidade objetiva de uma degenerescência burocrática da revolução? E o movimento inexorável da economia moderna, sob a pressão da técnica, em direção a uma concentração cada vez mais elevada do capital e do poder, a incompatibilidade do grau de desenvolvimento atual das forças produtivas com a propriedade privada e o mercado como modo de integração das empresas. Este movimento se traduz por uma gama de transformações estruturais nos países capitalistas ocidentais, a respeito das quais não podemos nos estender aqui. Basta lembrar que elas se encarnam socialmente numa nova burocracia, tanto burocracia econômica quanto burocracia do trabalho. Ora, ao fazer tabula rasa da propriedade privada, do mercado etc., a revolução pode se ela parar ai facilitar a via da concentração burocrática total. Vê-se pois que, longe de ser desprovida de realidade própria, a burocracia personifica a última fase do desenvolvimento do capitalismo.

Em conseqüência, tornava-se evidente que o programa da revolução socialista e o objetivo do proletariado não podiam mais ser simplesmente a supressão da propriedade privada, a nacionalização dos meios de produção e a planificação, mas a gestão operária da economia e do poder. Fazendo um retrospecto da degenerescência da revolução russa, constatávamos que o partido bolchevique tinha como programa no plano econômico não a gestão operária, mas o controle operário. Isto porque o partido, que não pensava que a revolução pudesse ser imediatamente uma revolução socialista, nem mesmo se dava como tarefa a expropriação dos capitalistas, considerava que estes guardariam para si a direção das empresas; nestas condições, o controle operário teria como função ao mesmo tempo impedir os capitalistas de organizar a sabotagem da produção, controlar seus lucros e a disposição do produto das empresas, e constituir uma "escola" de direção para os operários. Mas esta monstruosidade sociológica de um pais onde o proletariado exerce sua ditadura através de sovietes e do partido bolchevique, e onde os capitalistas mantêm a propriedade e a direção das empresas não podia durar; nos lugares onde os capitalistas não fugiram, foram expulsos pelos operários que assumiram ao mesmo tempo a gestão das empresas.

Esta primeira experiência de gestão operária durou pouco; não podemos aqui entrar na análise deste período (muito obscuro e sobre o qual existem poucas informações) da revolução russa [a], nem dos fatores que determinaram a passagem rápida do poder nas fábricas para as mios de uma nova classe dirigente: estado de atraso do país, fraqueza numérica e cultural do proletariado, deterioração do aparelho produtivo, longa guerra civil de uma violência sem precedentes, isolamento internacional da revolução. Há um único fator cuja ação durante este período queremos destacar: a política sistemática do partido bolchevique foi, na prática, contrária à gestão operária e inclinou-se, desde o início, a instaurar um aparelho próprio de direção da produção, responsável unicamente perante o poder central, ou seja, afinal de contas, o Partido. Isto em nome da eficácia e das necessidades imperiosas da guerra civil. Se esta política era a mais eficaz mesmo a curto prazo, resta ainda saber; em todo caso, lançava os fundamentos da burocracia.

Se a direção da economia escapava assim ao proletariado, Lenin pensava que o essencial era que a direção do Estado lhe fosse conservada pelo poder soviético; que, de outro lado, a classe operária, participando da direção da economia pelo controle operário, sindicatos etc. "aprenderia" gradualmente a gerir. Todavia, uma evolução impossível de reconstituir, mas irresistível, tornou rapidamente inamovível a dominação do partido bolchevique nos sovietes. A partir desse momento, o caráter proletário de todo o sistema estava ligado ao caráter proletário do partido bolchevique. Poder-se-ia mostrar facilmente que, nestas condições, o partido, minoria estritamente centralizada e monopolizando o exercício do poder, não poderia nem mais possuir um caráter proletário no sentido forte deste termo, e deveria forçosamente se separar da classe de onde havia saído. Mas não é necessário ir tio longe. Em 1923, "o partido contava 350000 membros: 50000 operários e 300000 funcionários. Não era mais um partido operário, mas um partido de operários que se tornaram funcionários".[9] Reunindo a "elite" do proletariado, o partido havia sido levado a instalar esta elite nos postos de comando da economia e do Estado; nestes postos, ela só devia prestar contas ao partido, ou seja, a ela mesma. O "aprendizado" da gestão pela classe operária significava simplesmente que um certo número de operários, aprendendo as técnicas de direção, saiam de sua posição e passavam para o lado da nova burocracia. Com a existência social dos homens determinando sua consciência, os membros do partido doravante iriam agir não segundo o programa bolchevique, mas em função de sua situação concreta de dirigentes privilegiados da economia e do Estado. A jogada estava feita, a revolução estava morta e, se há algo espantoso, é exatamente a subseqüente lentidão da consolidação da burocracia no poder. [10]

As conclusões que resultam desta breve análise são claras:
o programa da revolução socialista não pode ser outro senão o da gestão operária. Gestão operária do poder, ou seja, poder dos organismos autônomos das massas (sovietes ou Conselhos); gestão operária da economia, ou seja, direção da produção pelos produtores, organizados também em organismos do tipo soviético. O objetivo do proletariado não pode ser simplesmente a nacionalização e a planificação, porque isto significa restituir a dominação da sociedade a uma nova classe de dominadores e exploradores; ele não pode ser realizado com a entrega do poder a um partido, por mais revolucionário ou proletário que este partido possa ser no início, porque tenderá fatalmente a exercer o poder por sua própria conta e servirá de semente para a cristalização de uma nova classe dominante. O problema da divisão da sociedade em classes aparece com efeito em nossa época cada vez mais sob sua forma mais direta e mais nua, desprovida de todas as máscaras jurídicas, como o problema da divisão da sociedade em dirigentes e executantes. A revolução proletária só realiza seu programa histórico na medida em que ele se inclina, desde o início, a suprimir tal divisão, eliminando toda classe dirigente e coletivizando, mais exatamente, socializando, integralmente, as funções de direção. O problema da capacidade histórica do proletariado de realizar a sociedade sem classes não é o da capacidade de derrubar fisicamente os exploradores do poder (o que está fora de dúvida), mas de organizar positivamente uma gestão coletiva, socializada, da produção e do poder. Torna-se desde logo evidente que a realização do socialismo por um partido ou uma burocracia qualquer em nome do proletariado é um absurdo, uma contradição em seus termos, um círculo quadrado, um pássaro submarino; o socialismo não é nada mais do que a atividade gestionária consciente e perpétua das massas. Torna-se igualmente evidente que o socialismo não pode estar "objetivamente" inscrito, mesmo a 50%, numa lei ou numa constituição qualquer, na nacionalização dos meios de produção ou na planificação, nem mesmo numa "lei" que instaure a gestão operária: se a classe operária não puder gerir, nenhuma lei poderá fazer com que ela o possa, e se ela gerir, a "lei" só terá de constatar esta situação de fato.

Assim, da critica da burocracia, chegamos à formulação de uma concepção positiva do conteúdo do socialismo: para abreviar as palavras, "o socialismo sob todos seus aspectos não significa outra coisa senão a gestão operária da sociedade", e "a classe só pode se libertar exercendo seu próprio poder". O proletariado só pode realizar a revolução socialista se o fizer de uma maneira autônoma, ou seja, se encontrar em si mesmo ao mesmo tempo a vontade e a consciência da transformação necessária da sociedade. O socialismo não pode ser nem o resultado fatal do desenvolvimento histórico, nem a violação da história por um partido de super-homens, nem a aplicação de um programa que decorra de uma teoria verdadeira em si mesma - mas o desencadeamento da atividade criadora livre das massas oprimidas, desencadeamento que o desenvolvimento histórico torna possível, e que a ação de um partido baseado nessa teoria pode facilitar enormemente.

A partir dal é indispensável desenvolver as conseqüências desta idéia sob todos os aspectos.



A Idéia da autonomia do proletariado e o marxismo
De imediato, é preciso dizer que esta concepção não tem nada de novo. Seu conteúdo é o mesmo daquele da célebre formulação de Marx segundo a qual "a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores"; este mesmo conteúdo foi expresso por Trotsky quando dizia que "o socialismo, ao contrário do capitalismo, se constrói conscientemente". Seria muito fácil multiplicar citações deste tipo.

O que há de novo é o fato de querer e de poder levar essa idéia totalmente a sério, e extrair dela as implicações ao mesmo tempo teóricas e práticas. Isto não pôde ser feito até hoje, nem por nós, nem pelos grandes fundadores do marxismo. É que, de um lado, faltava a experiência histórica necessária; a análise precedente mostra a importância enorme que a degenerescência da revolução possui para o esclarecimento do problema do poder operário. De outro lado, a teoria e a prática revolucionárias na sociedade de exploração estio sujeitas a uma contradição crucial, resultante do fato de que elas participam desta sociedade que querem abolir e traduzindo-se por infinidade de aspectos.

Apenas um desses aspectos nos interessa aqui. Ser revolucionário significa ao mesmo tempo pensar que somente as massas em luta podem resolver o problema do socialismo e não cruzar os braços por isso; pensar que o conteúdo essencial da revolução será dado pela atividade criadora, original e imprevisível das massas, e agir por si mesmo a partir de uma análise racional do presente e de uma perspectiva que se antecipa ao futuro. [11] Afinal de contas: postular que a revolução significará uma transformação e um alargamento enorme de nossa racionalidade e utilizar esta mesma racionalidade para antecipar o conteúdo desta revolução.

O modo pelo qual esta contradição é relativamente resolvida e relativamente recolocada a cada etapa do movimento operário até a vitória final da revolução não pode nos reter aqui: é todo o problema da dialética concreta do desenvolvimento histórico da ação revolucionária do proletariado e da teoria revolucionária. Basta neste momento constatar que existe uma dificuldade intrínseca ao desenvolvimento de uma teoria e de uma prática revolucionárias na sociedade de exploração e que, na medida em que quiser superar esta dificuldade, o teórico - do mesmo modo aliás que o militante - se arrisca a recair inconscientemente no universo do pensamento burguês, mais geralmente no universo deste tipo de pensamento que procede de uma sociedade alienada e que dominou a humanidade durante milênios. É assim que, diante dos problemas postos pela nova situação histórica, o teórico será sempre levado a "reduzir o desconhecido ao conhecido", pois é nisto que consiste a atividade teórica corrente. Assim, ele pode ou não ver que se trata de um novo tipo de problema, ou, mesmo se vê, aplicar ao problema os tipos de solução herdadas. Todavia, os fatores cuja importância revolucionária o teórico acaba de reconhecer ou mesmo de descobrir, a técnica moderna e a atividade do proletariado, tendem não somente a criar novos tipos de solução mas a destruir os próprios termos nos quais os problemas se colocavam anteriormente. As soluções de tipo tradicional que o teórico dará a partir daí não seriam simplesmente inadequadas; na medida em que foram adotadas - o que implica que o proletariado permaneça ele mesmo sob o jugo das idéias recebidas - serio objetivamente o instrumento da manutenção do proletariado no quadro da exploração, se bem que talvez sob uma outra forma.

Marx estava bem consciente do problema: sua recusa do socialismo "utópico" e sua frase "uma iniciativa prática vale mais do que uma dúzia de programas" traduziam precisamente sua desconfiança em relação às soluções "livrescas", sempre afastadas pelo desenvolvimento vivo da história. Todavia, permanece no marxismo uma parte importante (que foi crescendo para os marxistas das gerações seguintes) de herança ideológica burguesa ou "tradicional". Nesta medida, existe uma ambigüidade no marxismo teórico, ambigüidade que teve um papel histórico importante; por seu intermédio, a influência da sociedade de exploração pôde exercer-se de dentro para fora sobre o movimento proletário. O caso analisado acima oferece um exemplo dramático da aplicação, na Rússia, de soluções eficazes tradicionais ao problema da direção da produção; as soluções tradicionais foram eficazes no sentido de que trouxeram de volta o estado de coisas tradicional e conduziram à restauração da exploração sob novas formas. Mais adiante encontraremos outros casos importantes de sobrevivência de idéias burguesas no marxismo. E importante no entanto discutir desde já um exemplo no qual aparecerá claramente o que queremos dizer.

Como será remunerado o trabalho numa economia socialista? Sabe-se que Marx, na "Critica do programa de Gotha", ao distinguir esta forma de organização da sociedade após a revolução ("fase inferior do comunismo) do próprio comunismo (no qual reinaria o princípio segundo o qual "de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades"), falou do "direito burguês" que prevaleceria durante esta fase, entendendo por isto uma remuneração igual pela mesma qualidade e quantidade de trabalho - o que pode significar uma remuneração desigual para os diferentes indivíduos. [12]

Como se justifica este principio? Parte-se das categorias fundamentais da economia socialista: a saber, que, de um lado, a economia é ainda uma economia de penúria, onde, conseqüentemente, é essencial que o esforço de produção dos membros da sociedade seja elevado ao máximo; de outro lado, os homens ainda estio dominados pela mentalidade "egoísta" herdada da sociedade precedente, e mantida precisamente por esta penúria. Há, pois, necessidade de um esforço produtivo o maior possível, ao mesmo tempo em que há a necessidade de lutar contra a tendência ainda "natural" de se furtar ao trabalho neste estágio. Dir-se-á, pois, que é necessário, se se quiser evitar a desordem e a fome, proporcionar a remuneração do trabalho à qualidade e à quantidade do trabalho executado, medidas por exemplo pelo número de peças fabricadas, as horas de presença etc., o que conduz naturalmente a uma remuneração nula por um trabalho nulo e resolve de uma vez o problema da obrigação de trabalhar. Chega-se, em suma, a uma espécie de "salário por rendimento",[13] e, segundo formos mais ou menos astuciosos, conciliaremos mais ou menos bem esta conclusão com a critica severa desta forma de salário no quadro do capitalismo.

Ao fazer isto, teremos esquecido pura e simplesmente que o problema não pode mais ser colocado nestes termos: tanto a técnica moderna quanto as formas de associação de trabalhadores decorrentes do socialismo o tornam ultrapassado. Quer se trate do trabalho numa linha de montagem ou da fabricação de peças em máquinas "individuais", o ritmo de trabalho do operário é ditado pelo ritmo de trabalho do conjunto ao qual ele pertence - automática e "fisicamente" no caso do trabalho na linha de montagem, indireta e socialmente" no caso da fabricação de peças numa máquina, mas sempre de um modo que lhe é imposto. Conseqüentemente, o problema do rendimento individual não existe mais.[14]Existe sim o problema do ritmo. de trabalho de um determinado conjunto de operários - que é no final das contas o conjunto de uma fábrica - e este ritmo só pode ser determinado por este mesmo conjunto de operários. O problema da remuneração torna-se, portanto, um problema de gestão, pois, uma vez estabelecido um salário geral, o teto de remuneração concreto (relação salário-rendimento) será estabelecido através da determinação do ritmo de trabalho; esta, por sua vez, nos conduz ao centro do problema da gestão como problema que diz respeito, de uma maneira concreta, à totalidade dos produtores (que, de um modo ou de outro, teria de definir que tal ritmo de produção numa linha de montagem de determinada natureza equivale, como dispêndio de trabalho, a tal ritmo de produção em uma linha de montagem de outra natureza, tanto em relação às diversas seções de uma mesma fábrica quanto em relação ás diversas fábricas etc.). lembremos, se for preciso, que isto não significa absolutamente que o problema se torna necessariamente mais fácil de ser solucionado, mas talvez mesmo o contrário; mas ele é enfim colocado corretamente. Erros em sua solução poderiam ser fecundos para o desenvolvimento do socialismo, pois a eliminação sucessiva destes erros poderiam permitir chegar â solução; ao passo que enquanto se colocar o problema sob a forma do "salário pelo rendimento" ou do "direito burguês", permaneceremos de imediato no âmbito de uma sociedade de exploração.

É certo que o problema sob sua forma tradicional poderá subsistir em setores "atrasados", o que não significa que será necessário lhe dar uma solução "atrasada". Mas qualquer que seja a solução neste caso, o que queremos dizer é que o desenvolvimento histórico tende a modificar ao mesmo tempo a forma e o conteúdo do problema.

Mas é importante analisar o mecanismo do erro. Diante de um problema legado pela época burguesa, raciocina-se como burguês. Primeiramente, quando se coloca uma regra universal e abstrata - única forma de solução dos problemas numa sociedade alienada - esquecendo que "a lei é como um homem ignorante e grosseiro" que repete sempre a mesma coisa,[15] e que uma solução socialista não pode ser socialista se não for uma solução concreta que implique a participação permanente do conjunto organizado dos trabalhadores à sua determinação; esquecendo ainda que uma sociedade alienada é obrigada a recorrer a regras universais abstratas porque, de outro modo, não poderia ser estável e porque é incapaz de levar em consideração os casos concretos em si mesmos, pois não possui instituições nem a ática necessária para isto, enquanto uma sociedade socialista, que cria precisamente os órgão que podem levar em conta todos os casos concretos, só pode ter como lei a atividade determinante perpétua destes órgão.

Raciocina-se ainda como burguês quando se aceita a idéia burguesa (que reflete justamente a situação na sociedade burguesa) do interesse individual como motivo supremo da atividade humana. E assim que, para a mentalidade burguesa dos "neo-socialistas" ingleses, o homem na sociedade socialista continua a ser, antes de qualquer outra coisa, um homem econômico, e a sociedade deveria pois ser regulamentada a partir desta idéia. Transpondo assim, ao mesmo tempo, os problemas do capitalismo e o comportamento do burguês para a nova sociedade, eles estão preocupados essencialmente com o problema dos incentivos (ganhos que incitam a trabalhar) e esquecem que já na sociedade capitalista o que faz o operário trabalhar não são os incentivos, mas o controle do seu trabalho pelos outros homens e pelas próprias máquinas. A idéia do homem econômico foi criada pela sociedade burguesa à sua própria imagem; mais exatamente à imagem do burguês, e não certamente à imagem do operário. Os trabalhadores só agem como homens econômicos onde são obrigados a fazê-lo, ou seja, face aos burgueses (que recebem assim o troco de sua moeda), mas não certamente entre eles mesmos (como se pode ver durante as greves e também em suas atitudes com suas famílias; de outro modo, há muito tempo não haveria mais operários). Seria correto dizer que eles agem assim em relação ao que lhes "pertence" (família, classe etc.), pois dizemos precisamente que eles agirão assim em relação a tudo, quando tudo lhes "pertencer". Seria ainda um mal-entendido pretender que a família está ai, visível, enquanto o "tudo" é uma abstração - pois o tudo do qual falamos é concreto, começa com os outros operários da seção, da fábrica etc.



A gestão operária da produção
Uma sociedade sem exploração só é concebível, como vimos, se a gestão da produção não estiver mais localizada numa categoria social, ou seja, se a divisão estrutural da sociedade em dirigentes e executantes for abolida. Vimos igualmente que a solução do problema colocado desta forma só pode ser dada pelo próprio proletariado. Não é somente que nenhuma solução teria valor, não poderia nem mesmo ser realizada simplesmente, se não fosse reinventada pelas massas de uma maneira autônoma; nem que o problema esteja colocado numa escala que torna a cooperação ativa de milhões de indivíduos indispensável à sua solução. Mas sim que, por sua própria natureza, a solução do problema da gestão operária não cabe numa fórmula, ou, como já dissemos, que a única lei verdadeira que a sociedade socialista conhece é a atividade determinante perpétua dos organismos gestionários das massas.

As considerações que se seguem não visam pois "resolver" teoricamente o problema da gestão operária - o que seria ainda uma vez uma contradição nos termos - mas esclarecer os dados do problema. Visamos somente dissipar mal-entendidos e preconceitos largamente difundidos, mostrando como o problema da gestão não se coloca, e como ele se coloca.

Se julgamos que a tarefa essencial da revolução é uma tarefa negativa, a abolição da propriedade privada - que pode, efetivamente, ser realizada por decreto -, podemos pensar a revolução como que centrada sobre a "tomada do poder", logo, como um momento (que pode durar alguns dias e ser, a rigor, seguido de alguns meses ou anos de guerra civil) no qual os operários, tomando o poder, expropriam de direito e de fato os proprietários das fábricas. E, neste caso, seremos levados efetivamente a dar uma importância capital à "tomada do poder" e a um organismo construído exclusivamente para este fim.

De fato, é assim que se passam as coisas durante a revolução burguesa. A sociedade nova está toda preparada no seio da antiga; as manufaturas concentram patrões e operários, as taxas que os camponeses pagam aos proprietários das terras são destituídas de qualquer função econômica, assim como os proprietários são destituídos de toda função social. Nesta sociedade, na verdade burguesa, subsiste apenas uma casca de feudalismo. Uma Bastilha derrubada, algumas cabeças cortadas, uma noite de agosto, eleitos (entre os quais muitos advogados) redigindo Constituições, leis e decretos - e pronto. Faz-se a revolução, fecha-se um período histórico e abre-se um outro. E verdade que pode acontecer uma guerra civil: a redação dos novos códigos levará alguns anos, a estrutura da administração assim como a do exército sofrerão transformações importantes. Mas o essencial da revolução está feito antes da revolução.

É que, na verdade, a revolução burguesa é apenas pura negação no que se refere ao domínio econômico. Ela se baseia sobre o que já existe, limita-se a levar à legalidade um estado de fato, suprimindo uma superestrutura já irreal em si mesma. Suas limitadas construções afetam apenas esta superestrutura; a base econômica cuida de si mesma. Quer antes quer após a revolução burguesa, Q capitalismo se propaga pela própria força de suas leis pelo campo da produção mercantil que encontra diante de si.

Não existe nenhuma relação entre este processo e o processo da revolução socialista. Esta não é uma simples negação de certos aspectos da ordem que a precedeu; ela é essencialmente positiva.

Deve construir seu regime - não construir fábricas, mas construir novas relações de produção, das quais o desenvolvimento do capitalismo fornece apenas pressuposições. Perceberemos melhor isto relendo a passagem na qual Marx descreve a "Tendência histórica da acumulação capitalista". Pedimos desculpas por citarmos um grande trecho desta passagem:

"... Desde que o modo de produção capitalista se basta a si mesmo, tomam uma nova forma a socialização progressiva do trabalho e a transformação consecutiva da terra e dos outros meios de produção em meios de produção comuns, porque são socialmente explorados, e, em seguida, a expropriação dos proprietários privados. Esta expropriação se faz através do jogo das leis imanentes da própria produção capitalista pela centralização do capital. Cada capitalista elimina muitos outros. Junto com esta centralização, ou expropriação de muitos capitalistas por alguns deles, se desenvolvem a forma cooperativa do processo de trabalho numa escala cada vez maior, a aplicação racional da ciência à técnica, a exploração sistemática do solo, a transformação dos meios particulares do trabalho em meios que s6 podem ser utilizados em comum, a economia de todos os meios de produção pela sua utilização como meios de produção de um trabalho social combinado, a entrada de todos os povos na rede do mercado mundial e, conseqüentemente, o caráter internacional do regime capitalista. Na medida em que diminui o número dos grandes capitalistas, que abarcam e monopolizam todas as vantagens deste processo de transformação, vê-se aumentar a miséria, a opressão, a escravidão, a degenerescência, a exploração, mas igualmente a revolta da classe operária que cresce sem cessar e que foi preparada, unida e organizada pelo próprio mecanismo de produção capitalista. O monopólio do capital torna-se o entrave do modo de produção que se desenvolveu com ele e por ele. A centralização dos meios de produção e a socialização do trabalho chegam a um ponto no qual elas não cabem mais no invólucro capitalista, e o fazem explodir. Soou a última hora da propriedade capitalista privada. Os expropriadores serão por sua vez expropriados."[16]

O que é que existe, pois, da nova sociedade, no momento em que "o invólucro capitalista explode"? Na verdade, todas as premissas: uma sociedade quase inteiramente formada por proletários, a "aplicação racional da ciência na indústria", e também, dado o grau de concentração das empresas suposto nesta passagem, a separação da propriedade das funções efetivas de direção da produção. Mas onde estão as relações de produção socialistas já realizadas no seio dessa sociedade, assim como as relações de produção burguesas existiam já na sociedade feudal?

Pois é evidente que estas novas relações não podem ser simplesmente as mesmas realizadas na "socialização do processo do trabalho", a cooperação de milhares de indivíduos no seio das grandes unidades industriais; estas são relações de produção típicas do capitalismo altamente desenvolvido.

A “socialização do processo de trabalho" tal como ela se dá na economia capitalista é a premissa do socialismo enquanto suprime a anarquia, o isolamento, a dispersão etc. Mas não é absolutamente uma "prefiguração" ou um "embrião" de socialismo enquanto é socialização antagônica, ou seja, enquanto reproduz e aprofunda a divisão entre a massa de executantes e uma classe de dirigentes. Ao mesmo tempo em que os produtores estão submetidos a uma disciplina coletiva, que as condições de produção são unificadas entre setores e localidades, que as tarefas produtivas se tornam permutáveis, observa-se no outro pólo não somente um número decrescente de capitalistas com uma função cada vez mais parasitária, mas também a constituição de um aparelho separado de direção da produção. Ora, as relações de produção socialistas são aquelas que excluem a existência separada de uma categoria fixa e estável de dirigentes da produção. Vê-se, pois, que o ponto de partida de sua realização só pode ser a destruição do poder da burguesia ou da burocracia. A transformação capitalista da sociedade termina com a revolução burguesa, a transformação socialista começa com a revolução proletária.

A evolução moderna suprimiu por si mesma alguns aspectos do problema da gestão considerados outrora como determinantes. De um lado, o trabalho de direção tornou-se um trabalho assalariado, como já o indicava Engels; de outro lado, ele se tornou também um trabalho coletivo de execução.[17] As "tarefas" de organização do trabalho que antigamente cabiam ao patrão assessorado por alguns engenheiros, são agora executadas por escritórios que agrupam centenas ou milhares de pessoas, que são elas mesmas executantes assalariadas e avulsas. O outro grupo de tarefas tradicionais de direção, em suma, a integração da empresa no conjunto da economia e, em particular, o "estudo" ou o "faro" do mercado (natureza, qualidade, preço de fabricação demandada, modificações na escala de produção etc.), já havia sido transformado em sua natureza com os monopólios; ele se transformou também em sua forma de execução, porque o essencial é agora executado por um aparelho coletivo de prospeção do mercado, de estudo dos gostos dos consumidores, de venda do produto etc. Isto no caso do capitalismo monopolista. Quando a propriedade privada dá lugar à propriedade estatal, como no capitalismo burocrático (total), um aparelho central de coordenação do funcionamento das empresas toma o lugar do mercado como "regulador" e dos aparelhos próprios de cada empresa; é a burocracia planificadora central, cuja "necessidade" econômica decorreria precisamente, segundo seus defensores, destas funções de coordenação.

É inútil discutir este sofisma. Assinalemos simplesmente de passagem que os advogados da burocracia demonstram, num primeiro momento, que os patrões são dispensáveis, pois pode-se fazer funcionar a economia segundo um plano, e, num segundo momento, que, para funcionar, o plano necessita de patrões de outro tipo. Pois - e é isto que nos interessa - o problema da coordenação da atividade das empresas e dos setores produtivos após a supressão do mercado, ou seja, o problema da planificação, está já virtualmente suprimido pela técnica moderna. O método de Leontief, [18] mesmo em seu estado atual[19] elimina qualquer significação "política" ou econômica" do problema da coordenação dos diversos setores ou das diversas empresas. Pois permite, se o volume de produção desejada de objetos de utilização final estiver fixado, determinar as conseqüências para o conjunto de setores, de regiões e de empresas, sob a forma de objetivos de produção a serem atingidos por tal unidade num tal espaço de tempo. Permite ao mesmo tempo um grande grau de maleabilidade, porque torna possível, se se quiser modificar um plano em processo de execução, tirar as implicações práticas desta modificação. Combinado com outros métodos modernos [20], permite escolher, uma vez fixados os objetivos globais, os métodos ótimos de realização, e ao mesmo tempo definir estes métodos em detalhes para toda a economia. Em poucas palavras, a totalidade da "atividade planificadora" da burocracia russa, por exemplo, poderia desde já ser transferida para uma máquina eletrônica.

O problema só se coloca, pois, nos dois extremos da atividade econômica: no nível mais particular, a saber, traduzir o objetivo de produção de tal fábrica em objetivo de produção para cada grupo de operários das seções desta fábrica, e no nível universal, a saber, fixar os objetivos de produção de bens de utilização final para o conjunto da economia.

Nos dois casos, o problema só existe porque há - e haverá ainda mais numa sociedade socialista - um desenvolvimento técnico (no sentido amplo do termo). Efetivamente, é claro que com uma técnica estável, o tipo de solução (senão as próprias soluções que variarão em seu teor preciso se houver modificação) seria estabelecido de uma vez por todas, quer se trate da repartição de tarefas no interior de uma seção (perfeitamente compatível com a permutabilidade dos produtores nas diferentes funções), quer da determinação de produtos de utilização final. Será a modificação incessante de combinações produtivas e de objetivos finais que criará o terreno no qual deverá se exercer a gestão coletiva.


A alienação na sociedade capitalista
Entendemos por alienação - momento característico de toda sociedade de classe, mas que aparece com dimensão e profundidade muito maiores na sociedade capitalista - o fato de os produtos da atividade do homem adquirirem em relação a ele uma existência social independente, e, ao invés de serem dominados por ele, o dominarem. A alienação é, portanto, aquilo que se opõe à criatividade livre do homem no mundo criado pelo homem; não é um princípio histórico independente, que tenha uma origem própria. E a objetivação da atividade humana, na medida em que escapa de seu autor, sem que seu autor possa escapar dela. Toda alienação é uma objetivação humana, ou seja, possui sua origem na atividade humana (não existem "forças secretas" na história, não existe mais astúcia da razão do que leis econômicas naturais); mas toda objetivação não é necessariamente uma alienação na medida em que pode ser conscientemente retomada, reafirmada ou destruída. Qualquer produto da atividade humana (mesmo uma atitude puramente interior), desde que esteja pronto, "escapa de seu autor" e leva uma existência independente dela. Não podemos fingir que não dissemos tal palavra; mas podemos deixar de ser influenciados por ela. A vida passada de todo indivíduo é sua objetivação naquela ocasião; mas o indivíduo não é necessária e exaustivamente alienado por ela, seu futuro não é definitivamente dominado pelo seu passado. O socialismo será a supressão da alienação quando permitir a retomada perpétua, consciente e sem conflitos violentos, do dado social, quando restaurar a dominação dos homens sobre os produtos de sua própria atividade. A sociedade capitalista é uma sociedade alienada enquanto dominada pelas próprias criações, enquanto suas transformações acontecem independentemente da vontade e da consciência dos homens (inclusive da classe dominante), segundo quase-leis que exprimem estruturas objetivas independentes de seu controle.

Não nos interessa aqui descrever como se produz a alienação sob a forma da alienação da sociedade capitalista - o que implicaria a análise do nascimento do capitalismo e de seu funcionamento -, mas mostrar as manifestações concretas desta alienação nas diversas esferas de atividade social e sua unidade intima.

É apenas na medida em que se apreende o conteúdo do socialismo como autonomia do proletariado, como atividade criadora livre que se determina a si mesma, como gestão operária em todos os domínios, que se pode apreender a essência da alienação do homem na sociedade capitalista. Não é por acaso, com efeito, que burgueses esclarecidos" e burocratas reformistas ou estalinistas querem reduzir os males do capitalismo a males essencialmente econômicos, e, no plano econômico, à exploração sob a forma da distribuição desigual da renda nacional. Na medida em que sua critica do capitalismo se estender a outros domínios, ela tomará ainda como ponto de partida esta distribuição desigual da renda e consistirá essencialmente em variações sobre o tema do poder de corrupção do dinheiro. Se se tratar da família e do problema sexual, falar-se-á da pobreza que leva à prostituição, da mocinha que se vende ao velho rico, dos dramas familiares que resultam da miséria. Se se tratar da cultura, falar-se-á da venalidade, dos obstáculos que os talentos pobres encontrarão, do analfabetismo. E certo que tudo isto é verdadeiro e importante. Mas isto diz respeito apenas à superfície do problema; e aqueles que só falam disto consideram o homem unicamente como consumidor e, pretendendo satisfazê-lo neste nível, tendem a reduzi-lo a suas funções físicas de digestão (direta ou sublimada). Mas não se trata para o homem de pura e simplesmente ingerir, mas de se exprimir e de criar, não somente no domínio econômico, mas na totalidade dos domínios.

O conflito da sociedade de classe não se manifesta simplesmente no domínio da distribuição, como exploração e limitação do consumo; este é apenas um dos aspectos do conflito, e não o mais importante. Seu aspecto fundamental é a limitação e, no final das contas, a tentativa de supressão do papel humano do homem no domínio da produção. E o fato de o homem ser expropriado do comando de sua própria atividade, tanto individual quanto coletivamente. Pela sua submissão à máquina e, através dela, a uma vontade abstrata, estranha e hostil, o homem é privado do verdadeiro conteúdo de sua atividade humana, a transformação consciente do mundo natural; a tendência profunda que o leva a se realizar no objeto é constantemente inibida. A verdadeira significação desta situação não é somente o fato de ser vivida pelos produtores como um sofrimento absoluto, como mutilação permanente; é que ela cria um conflito perpétuo no nível mais profundo da produção, que explode a qualquer ocasião; é também que condiciona um desperdício imenso - diante do qual o desperdício das crises de superprodução é verdadeiramente negligenciável -, pela oposição positiva dos produtores a um sistema que recusam, e ao mesmo tempo pela falta de ganho que resulta da neutralização da inventividade e da criatividade de milhões de indivíduos. Além destes aspectos, é preciso se perguntar em que medida o desenvolvimento ulterior da produção capitalista seria mesmo "tecnicamente" possível se o produtor imediato continuasse a ser mantido no estado fragmentário em que atualmente se encontra.

Mas a alienação na sociedade capitalista não é simplesmente econômica; ela não só se manifesta a respeito da vida material, mas também afeta fundamentalmente a função sexual e a função cultural do homem.

Na verdade, só existe sociedade na medida em que existe organização da produção e da reprodução da vida dos indivíduos e da espécie - portanto, organização das relações econômicas e sexuais - e na medida em que esta organização deixa de ser simplesmente instintiva e se torna consciente - abrangendo, pois, o momento da cultura.

Como dizia Marx, "a abelha, pela estrutura de suas células de cera, causa vergonha a mais de um arquiteto. Mas o que de imediato estabelece uma diferença entre o mais medíocre arquiteto e a abelha mais hábil é que o arquiteto constrói a célula na sua cabeça antes de realizá-la na cera" (Le Capital, trad. Molitor, t. II, p. 4). Técnica e consciência andam evidentemente sempre juntas: um instrumento é uma significação materializada e operante, ou ainda uma mediação entre uma intenção refletida e um objetivo ainda ideal.

O que se diz a respeito da fabricação das células das abelhas neste texto de Marx pode ser dito também a respeito de sua organização social. Assim como a técnica representa uma racionalização das relações entre o homem e o mundo natural, a organização social representa uma racionalização das relações entre os indivíduos de um grupo. Mas a organização da colmeia é uma racionalização não-consciente e a de uma tribo é consciente, o homem primitivo pode descrevê-la e pode negá-la (transgredindo-a). Racionalização neste contexto não significa evidentemente a "nossa" racionalização. Numa determinada etapa e num determinado contexto, tanto a magia quanto o canibalismo representam racionalizações (sem aspas).

Se, portanto, uma organização social for antagônica, ela tenderá a sê-lo tanto no plano produtivo quanto no plano sexual e cultural. E falso pensar que o conflito no domínio da produção "cria" ou "determina" um conflito secundário e derivado em outros planos; as estruturas de dominação se impõem simultaneamente sobre os três domínios, e, fora desta simultaneidade e desta equivalência, são impossíveis e inconcebíveis. A exploração, por exemplo, só pode ser garantida se os produtores forem expropriados da gestão da produção; mas esta expropriação pressupõe por sua vez que os produtores sejam separados das capacidades de gestão portanto, da cultura - e reproduz esta separação em larga escala. Do mesmo modo, uma sociedade na qual as relações inter-humanas fundamentais são relações de dominação pressupõe e ao mesmo tempo acarreta uma organização alienatória das relações sexuais, ou seja, uma organização que cria nos indivíduos inibições fundamentais que tendem a fazê-lo aceitar a autoridade etc. [21]

Evidentemente, existe de fato uma equivalência dialética entre as estruturas sociais e as estruturas "psicológicas" dos indivíduos. Desde os seus primeiros passos na vida, o indivíduo está submetido a uma pressão constante que visa a impor-lhe uma determinada atitude diante do trabalho, do sexo, das idéias, que visa a frustrá-lo dos objetos naturais de seu trabalho e inibi-lo, fazendo-o interiorizar e valorizar esta frustração. A sociedade de classe só existe na medida em que consegue impor esta aceitação num nível importante. É por isto que o conflito nesta sociedade não é puramente exterior, mas transposto para o próprio coração dos indivíduos. Â estrutura social antagônica corresponde uma estrutura antagônica nos indivíduos, e cada uma se reproduz perpetuamente através da outra.

O objetivo destas considerações não é somente destacar o momento de identidade da essência das relações de dominação, que estas se situem na fábrica capitalista, na família patriarcal ou na pedagogia autoritária e na cultura aristocrática. É assinalar que a revolução socialista deverá necessariamente abarcar o conjunto destes domínios, e isto não num futuro imprevisível e "por acréscimo", mas desde o início. É certo que ela deve começar de uma determinada maneira, que não pode ser outra senão a destruição do poder dos exploradores pelo poder das massas armadas e a instauração da gestão operária da produção. Mas a revolução deverá imediatamente se dedicar à reconstrução das outras atividades sociais, sob pena de morte. Tentaremos mostrar isto com o exemplo das relações entre o proletariado no poder e a cultura.

A estrutura antagônica das relações culturais na sociedade atual se exprime também (mas não exclusivamente) pela divisão radical entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, da qual resulta que a imensa maioria da humanidade está totalmente separada da cultura como atividade e participa apenas de uma ínfima parte de seus resultados. De outro lado, a divisão da sociedade em dirigentes e executantes torna-se cada vez mais homóloga à divisão em trabalho manual e intelectual (todos os trabalhos de direção sendo trabalhos intelectuais, e todos os trabalhos manuais sendo trabalhos de execução).[22] A gestão operária, portanto, só é possível se esta última divisão tender desde o início a ser ultrapassada, em particular no que se refere ao trabalho intelectual relativo à produção. Isto implica, por sua vez, a apropriação da cultura pelo proletariado. Não certamente como cultura já pronta, como assimilação de "resultados" da cultura histórica; esta assimilação, para além de um determinado ponto, é ao mesmo tempo impossível de imediato e supérflua (em relação ao que nos interessa aqui). Mas como apropriação da atividade e como recuperação da função cultural, como transformação radical da relação entre as massas dos produtores e o trabalho intelectual. E apenas na medida em que esta transformação se realiza que a gestão operária se tornará irreversível.

Cornelius Castoriadis, julho 1955

Notas:
[1] Na medida em que esta introduçllo retoma brevemente a análise de diversos problemas já tratados nesta revista, permitimo-nos enviar os leitores aos textos correspondentes publicados em Socialisme au Barbarie.
[2] A greve de abril de 1947 na Renault, a primeira grande explosão operária após a guerra na França, só pôde acontecer depois de uma luta física dos operários com os responsáveis estalinistas.
([3] Ver, no número 13 de Socialisme ou Barbarie (pp. 33), a descrição detalhada da maneira pela qual os estalinistas, em agosto de 1953, na Renault, puderam fazer fracassar a greve, sem se opor abertamente a ela.
[4] Ou com outras correntes de essência análoga (bordiguismo, por exemplo).
[5] Para os representantes sérios, que se reduzem mais ou menos ao próprio Leon Trotsky. Os trotskistas atuais, contestados pela realidade como nunca o foi nenhuma corrente ideológica, estio num tal estado de decompo sição política e organizacional que não se pode dizer nada de conciso a esse respeito.
[6] No final das contas, nossa concepção final da burocracia operária leva também a rever a concepção leninista tradicional sobre o reformismo. Mas não podemos nos estender aqui a respeito desta questio.
[7] Ver a "Lettre ouverte aux militants du P.C.I." no numero 1 de Socialisme ou Berbarie (pp.90-1o1). (Atualmente em La société bureaucratique, 1, pp. 185-204.)
[8] Ver "Les rapports de production en Russie", no nº 2 de Socialisme ou Barbarie (pp. 1-66). (Atualmente em LA société bureaucratíque, 1, pp. 2O5-283.)
[a] Ver "Le rôle de I'idéologie boichevique..." em L'éxperience du mouvement ouvrier, 2, pp. 395-416, e o texto de M. Bsinton que ai é citado.
[9] Victor Serge, Destin d'une révolution (Paris, 1937), p. 174.
[10] Ver o editorial do nº 1 de Socialisme ou Barbarie, pp. 27 e seguintes. (Atualmente em La société bureaucratique, 1, pp. 139-184.)
[11] Ver 'La direction prolétarienne" no nº 10 de Socialisme ou Barbane (pp. 10 e seguintes). (Atualmente em L 'expérience du mouvement ouvrier, 1, pp. 145-162.)
[[2] Mostramos, aliás, que esta desigualdade seria extremamente limitada. Ver "Sur la dynamique du capitalisme", nº 13 de Socialisme ou Barbarie (pp. 66-69).
[13] O termo não é, evidentemente, utilizado aqui no sentido técnico preciso que possui atualmente.
[14] Cf. os trechos de Tribune Ouvriére publicados neste número de Sociallsme au Barbarie (nº. 17).
[15] Platão, Le politíque 294 b-c.
[16] Le capitaI, tomo IV (trad. Molitor), pp. 273-274. (Pléiede, 1, p. 1239.).
[17] Ver o artigo de Ph. Guilaume, Machinisme et prolétariat, no nº 7 de Socialisme ou Barbarie (em particular p. 59 e seguintes).
[18] Expusemos alguns conceitos fundamentais deste método no artigo "Sur Ia dynamique du capitalisme", publicado no nº 12 de Socialisme ou Barbarie (p. 17 e seguintes). Ver também Leontief e outros, Studies in the Structure of Amerikan Economy, 1953.
([9] Restrição importante, pois as aplicações práticas deste método quase não foram desenvolvidas até hoje, por razões evidentes.
[20] Ver T. Koopmans, Activity Analysis of Production and AIlocation, 1951.
[21] Ver, sobre a relação profunda entre a estrutura de classe da sociedade e a regulamentação patriarcal das relações sexuais, os trabalhos de W. Reich, The Sexual Revolution (1945), Character Analysis (1948) (trad. La révolution sexueile, Paris, Plon, 1968; Analyse caracténelIe, Paris, PaVot, 1971) e La fonction de l'orgesme (trad. francesa, 1952). Em particular, neste último, a análise da estrutura neurótica do indivíduo fascista (pp. 186-199).
[22] Entre os dois se situa a categoria dos trabalhos intelectuais de execução, cuja importância vai crescendo. Falaremos disto mais adiante.

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