terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Quem é Jesus?


por Willian Barclay



Em uma das mais famosas passagens do Novo Testamento, Jesus perguntou aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que sou eu?» Depois que eles responderam o que os outros diziam, ele desafiou-os com a questão: «Mas vós, quem dizeis que eu sou?» (Marcos 8:27-29; Mateus 16:14-15; Lucas 9:18-20). Assim como os discípulos, também estamos, a um só tempo, perguntando e tentando responder: «Quem é Jesus?»

O Novo Testamento, nunca responde esta questão. Nele, há uma grande profusão de títulos para Jesus -- Filho de Deus, Filho do Homem, Salvador, Senhor e muitos outros -- mas em nenhum momento é encontrada uma tentativa de definir, claramente, quem é Jesus. No Século XX nós temos uma verdadeira obsessão por definições e há ocasiões em que essa mania nos leva a tentar definição até do indefinível. A razão pela qual o Novo Testamento jamais define Jesus, é que seus autores não estão escrevendo teologia: eles estão transmitindo experiências. Entretanto, em pleno Século XX, já é tempo de orientarmos as nossas mentes no sentido de realizarmos tal tarefa. Mas antes de nos dedicarmos à meta principal, seria bom ocupar nossa atenção com alguns aspectos acessórios.

Primeiro, consideremos o impacto de toda a doutrina da Trindade. Quando pensamos no assunto, é necessário repetir o que acabamos de dizer: que os escritores do Novo Testamento não tiveram qualquer pretensão de escrever teologia, mas tão somente de transmitir experiência. A doutrina da Trindade não é alguma coisa que pode ser colocada em uma biblioteca e depois esquecida; é a descrição da experiência humana no que se refere a Deus.

Nós costumamos falar de três pessoas na trindade, embora esse modo de nos expressarmos possa ser inadequado e levar a confusões. Uma pessoa, para nós, é um indivíduo; persona - em Latim significa «máscara». No teatro latino havia um número reduzido de atores que encarnavam diferentes papéis. Cada um deles se caracterizava por um tipo de máscara, que permitia à platéia saber que personagem estava representando. Assim, era fácil reconhecer, pela máscara, o herói, o vilão ou a heroína. Se dizemos que Deus é três pessoas na Trindade, também podemos dizer que a doutrina da Trindade mostra a ação de Deus em três funções -- três personagens de seu ser. Em outras palavras, Deus segundo três papéis, em três formas de atuar no grande drama cósmico. Deus, o Pai, é Deus o autor e criador do mundo, Deus em criação. Deus, o Filho, é Deus o Salvador e redentor do homem. Deus em redenção. Deus o Espírito Santo é Deus falando e guiando o homem, Deus em revelação voltada para a mente e o coração do homem. Jesus se ajusta dentro desse esquema, no Divino Drama.

O segundo ponto que precisamos notar é que, nos Evangelhos, há algo que se poderia chamar de uma crescente reverência para com Jesus. Quanto mais dístante, cronologicamente, dos dias de Jesus, mais reverentes os Evangelhos se tornam, em seu tratamento para com Ele. No episódio ocorrido em Cesaréia de Filipe, vemos como Jesus explicou aos discípulos, que precisava ir a Jerusalém e ali morrer. A narrativa bíblica nos mostra um Pedro revoltado contra tal idéia, agarrando Jesus pelos ombros e pretendendo impedí-lo de fazer tal coisa (Marcos 8:32). Uma pessoa não pode agarrar Deus pelos ombros; se alguém pôde agarrar Jesus pelos ombros é porque estava tentando impedí-lo de fazer coisas que nós fazemos. Seria impossível imaginar alguém agarrando pelos ombros o Jesus retratado no Evangelho Segundo João.

Isto é muito bem caracterizado na forma pela qual os Evangelhos falam da linhagem de Jesus, aprofundando-se no tempo. Em Marcos, Jesus chega à cena completamente maduro. Nada, praticamente, nos é dado a conhecer sobre ele, até que se submete ao batismo, por João. Em Mateus, a narrativa se ocupa não somente do nascimento de Jesus, mas também de sua ascendência, até Davi e Abraão. Em Lucas, também, encontramos o nascimento e a linhagem de Jesus. Esta, entretanto, traçada até Adão. Em João, não é descrito o nascimento de Jesus, mas sua vida é comentada desde o princípio dos tempos, na eternidade. Obviamente, à proporção que o tempo foi passando, Jesus tornou-se cada vez menos e menos humano.

Isto significa que, com referência a Jesus, corremos perigo de perder de vista a sua condição de ser humano. O Novo Testamento não apresenta qualquer dificuldade em falar do crescimento de Jesus. «E Jesus crescia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens» (Lucas 2:5). Não há qualquer constrangimento nos comentários sobre o crescimento e a aprendizagem de Jesus ou mesmo sobre seu gradual aperfeiçoamento. No Sermão de Pedro, o primeiro sermão da Igreja Cristã, Jesus é descrito como «um homem aprovado por Deus diante de vós» (Atos 2:22).

Mais tarde, nas Epístolas Pastorais, Jesus acaba por ser chamado o «único mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem» (I Timóteo 2:5). Em outras palavras, o Novo Testamento nunca procura esvaziar, em Jesus, sua condição humana. Contudo, com o passar do tempo, isto vai acontecendo, mais e mais. Por exemplo, quando a primeira carta de João foi escrita, ele pôde dizer que é uma heresia não confessar que Jesus veio em carne (I João 4:1-4) e no tempo quando a heresia Gnóstica estava começando a florescer, eram muito freqüentes as afirmações como a de que ele não deixava pegadas no chão por onde pisava, que seus olhos nunca piscavam na forma pela qual as pessoas normalmente piscam, que, quando alguém se encostava contra ele, não havia matéria na qual se encostar e mais, que Jesus nunca teria sido visto comendo. É muito mais fácil perder de vista a condição humana de Jesus, do que perder a consciência de sua divindade -- mas o Novo Testamento, ele próprio, nunca se esquece de que Jesus era um homem entre homens.

Quando examinamos o Novo Testamento em sua maneira de encarar Jesus através de todas as diferenças e divergências, três coisas são sempre ditas a seu respeito : Jesus foi, Jesus é, Jesus será. Vamos nos deter, por alguns instantes, nestas três expressões.

Primeiro que tudo, Jesus foi. Houve um tempo quando os mais radicais dos teólogos mantinham a afirmação de que nunca houve um Jesus histórico e de que o Jesus de que se falava não passava de um mito. É impossível conservar-se alguém adepto desse ponto de vista, uma vez que há muito boas evidências extraídas de antigos escritores, atestatórios da existência de Jesus. Citemos a maior dessas evidências. Trata-se da narrativa de Josephus, ao escrever Antigüidade Judaica, por volta do ano 95 A.D. Tratava-se de um profundo conhecedor da cultura e história dos Judeus e, portanto, um grande homem em seu campo. Em sua Antigüidade, Josephus escreveu:

«Por esta mesma época viveu Jesus, um sábio homem, se é que se poderia chamá-lo de homem. Porque ele foi alguém que realizou feitos muito surpreendentes e era um mestre dos que aceitavam a sua verdade alegremente. Atraiu muitos judeus e muitos gregos. Era o Messias. Quando Pilatos, depois de ouvir as acusações a Jesus, partidas de alguns dos mais poderosos homens da época, condenou-o à morte na cruz, aqueles que se encontravam entre os seus primeiros seguidores, não desistiram de sua afeição por ele. No terceiro dia, depois de sua morte, ele apareceu aos seus discípulos restaurado à vida, porque os profetas de Deus tinham, profetizado estas e muitas outras maravilhas a respeito dele. A comunidade dos Cristãos, assim chamada em sua homenagem, até os dias de hoje ainda não desapareceu».(1)


Com exceção das palavras em itálico, Não há qualquer razão para duvidar que Josephus tenha realmente escrito isto. Ele próprio não chamava Jesus de Messias ou expressava sua crença pessoal na ressurreição. Em um volume posterior da mesma obra (20.9.1) há outra referência a Jesus. Josephus descreve Tiago como «irmão de Jesus, chamado o Messias»(2). Não há qualquer razão para duvidar que Josephus tenha escrito isto também. Assim, podemos afirmar que lá pelo ano 95 A.D. havia excelente evidência para a existência de Jesus.

Josephus era, é claro, um judeu. Mas há evidências equivalentes, encontradas em escritores romanos. Em primeiro lugar, existe a evidência dos Anais de Tácitus, escritos entre os anos 115 e 117 A.D. Ele descreve o grande incêndio de Roma, ocorrido no ano 64 A.D. O autor conta como o povo estava perfeitamente certo de que Nero, ele próprio, fora o responsável pelo incêndio, na intenção de poder vir a promover a reconstrução da cidade. Desesperado por encontrar alguém sobre cujos ombros transferir a culpa pela catástrofe, tentou imputá-la aos cristãos. Tácitus escreve:

«Conseqüentemente, para se livrar da culpa, Nero transfere e inflinge as mais terríveis torturas a uma classe odiada por suas ações tidas como detestáveis, chamada de Cristãos, pela população. Cristo, em quem o nome teve origem, sofreu a punição extrema durante o reinado de Tibério, das mãos de um de seus procuradores -- Pôncio Pilatos -- e a mais detestável superstição, reprimida a princípio, novamente rompeu, não somente na Judéia, a primeira fonte do mal, mas mesmo em Roma.»(3)


Aí está, portanto, um historiador romano testemunhando sobre a existência de Jesus. Uma outra fonte romana é encontrada nas Cartas de Plínio, governador de Bitínia, durante o reino de Trajano, por volta do ano 110 A.D. Plínio era amigo muito pessoal de Trajano e nunca hesitava em consultá-lo diretamente sobre todos os seus problemas. Essa correspondência tão interessante ainda existe. Em uma dessas cartas ele consulta Trajano sobre as dificuldades que vinha encontrando, com os cristãos. Deveria ele executá-los, ou não? Deveria ser aceita a palavra de informantes ou era necessário que as evidências fossem de primeira mão? Plínio era um homem honesto e um bom caráter. Na correspondência, ele conta quais as informações que havia obtido, a respeito dos cristãos:

«Eles têm cultivado o hábito de se reunirem em certos dias fixos, antes do amanhecer, quando cantam versos alternados de hinos a Cristo e a Deus, unindo-se uns aos outros em votos de não cometerem qualquer ato de maldade, jamais praticando a fraude, roubo ou adultério, nem faltando à palavra empenhada ou negando a confiança que tenha merecido, depois do que é seu costume separarem, voltando a se reunirem para a partilha do alimento, mas de natureza comum e de qualidade inocente». (4)


Aqui, mais uma vez, de fontes romanas, nós temos uma testemunha não preconceituosa a respeito da história de Jesus. Seja advinda de origens judaicas, ou de historiadores romanos, a existência histórica de Jesus não deixa margem à menor dúvida. Jesus foi.

Em segundo lugar, Jesus é. O acontecimento básico para a cristandade é que Jesus se levantou da morte. Tem sido dito que, nos Atos dos Apóstolos, a ressurreição é a estrela no firmamento da Igreja Primitiva. Ninguém jamais pregou um sermão registrado em Atos sem concluir por referir-se à ressurreição de Cristo -- Jesus não é o personagem morto de um livro, mas uma presença viva, que pode ser encontrada e experimentada. Tem sido dito que «nenhum apóstolo jamais se relembrou de Jesus». Jesus não é uma memória; é uma presença. John Drinkwater escreveu em seu poema:


Shakespeare é poeira e não voltará
a fazer perguntas, de sua tumba em Avan,
Sócrates e Shelley guardam
seus sonos ático e italiano ...
Eles não vêem. Mas, ó cristãos, que
se atropelam em Holborn e na Quinta Avenida,
podem vocês, a despeito da morte, não encontrar
um viajante de Nazaré? (5)


Hoje, o cristão não ouve ou enxerga uma espécie visão de Jesus; ao contrário, em qualquer crise ou decisão que tenha que tomar, o seguidor de Cristo tem sempre a consciência de não estar enfrentando a vida sozinho.

A suprema, prova da ressurreição, é a existência da Igreja Cristã. Ao final da vida de Jesus, todos os discípulos abandonaram-no e fugiram. A idéia que nos foi legada retrata um grupo de homens apavorados, tremendo de terror, atrás de portas trancadas a chave. Sete semanas depois, aqueles mesmos homens são mostrados como, havendo adquirido tal coragem, que eram vistos enfrentando as autoridades judaicas, nas piores situações. Todo efeito deve ter uma causa. Alguma coisa deve ter transformado os covardes em heróis -- e essa alguma coisa foi a convicção daqueles homens de que, de alguma forma, aquele Jesus a quem eles amaram estava ainda entre eles.

Uma coisa ainda tem que ser dita, sobre a ressurreição. O mais notável em torno desse acontecimento é o fato, muito significativo, de não haver Jesus aparecido, a não ser para aqueles que o amaram. Se fosse escrita uma novela sobre a morte e a ressurreição de Jesus, a coisa mais natural seria colocá-lo em confronto com Pilatos, Ananias e o resto deles, dizendo: «estou de volta. O que vocês vão fazer agora?» Mas não foi o que ele fez. Ele voltou para Maria Madalena, afogada em lágrimas de amor sentido; ele voltou para os dois da estrada de Emaús, que estavam falando de suas esperanças, que haviam morrido; ele voltou para Pedro, um homem tomado de vergonha e amor. Se se pode colocar as coisas desta maneira, há um elemento subjetivo na ressurreição. Jesus está vivo mas aparece somente para aqueles que o amam. Se não temos uma experiência de sua presença, pode muito bem ser porque não temos experiência do seu amor.



(1) Josephus, Antiguidade dos Judeus, 18.3.

(2) Ibid. 20.9.1.

(3) Tacitus, Os Anais, 15.44.

(4) Plínio (o Moço), Cartas ao Imperador Trajano, ano 96

(5) John Drinkwater, «To and For About the City», Obras Primas em Versos Religiosos, editor James Dalton Morrison (New York: Harper and Brothers, 1984, pág. 260.

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