terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Ressurreição de Cristo - A Nossa Ressurreição na Morte (parte I)

por Leonardo Boff

A Ressurreição de Cristo
A Nossa Ressurreição na Morte
(parte I)

Leonardo Boff (*)


Cancão à Morte

Eu espero a Morte como se espera o Bem-Amado.
Não sei quando virá,
nem como virá.
Mas eu espero.
E não há medo nesta expectativa.
Há somente ânsia e curiosidade
porque a Morte é bela.
Porque a Morte é uma porta
que se abre para lugares desconhecidos,
mas imaginados.
Como o amor,
nos leva para um outro mundo.
Como o amor,
começa para nós outra vida
diferente da nossa.
Eu espero a Morte como se espera o Bem-Amado.
Porque eu sei que um dia ela virá
e me receberá
em seus braços amigos.
Seus lábios frios tocarão a minha fronte,
e sob a sua carícia
eu adormecerei o sono da eternidade.
Como nos braços do Bem-Amado.
E esse sono será
um ressurgimento.
Porque a Morte é a Ressurreição,
a Libertação,
a Comunicação total
com o Amor total.


Maria Helena da Silveira (1922-1970)
Poesia inédita escrita em 1944,
aos 22 anos de idade.


O homem é essencialmente homo viator: está em busca de si mesmo. Quer realizar-se em todas as suas dimensões. Não só na alma. Mas no homem todo, unidade radical corpo-alma. O pensar utópico é uma constante em todas as culturas. O homem quer superar todas as alienações que o estigmatizam como a dor, a frustração, o ódio, o pecado e a morte. O princípio-esperança é uma estrutura existencial do ser-homem. «Quem me livrará deste corpo de morte» (Rom 7-24)? Todos os homens sonham com a situação descrita pelo Apocalipse, onde a morte não existirá mais, nem mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isto já passou» (21,4). O homem de hoje se coloca mais que em outras épocas perguntas radicais acerca de seu futuro. Está em busca do homem novo que ele crê vislumbrar no horizonte das possibilidades oferecidas pela manipulação genética. A pergunta que mais o preocupa não é tanto: quem é o homem? mas, que será dele? Que o espera? Nietszche sonhou com o Super-homem, com um corpo de César e uma alma de Cristo, um santo de uma espécie nunca dantes existente, capaz de dominar com suma responsabílidade o mundo por ele mesmo criado. A ânsia de realização pessoal e cósmica do homem é sempre frustrada pela morte. Ela é uma barreira para todas as utopias. Que resposta dá o cristianismo a semelhante questionamento? Frei Leonardo Boff, nascido em 1938, fez seus estudos filosófico-teológicos em Curitiba e Petrópolis. Especializou-se em Teologia Sistemática nas Universidades de Munique, Oxford e Würzburg. É o coordenador responsável pelas publicações teológicas da Editora Vozes, Redator das revistas Concilium e REB, autor de obras como A Igreja como Sacramento no horizonte da experiência do mundo, Paderborn 1971, O Evangelho do Cristo Cósmico, Vozes 1971 e Jesus Cristo Libertador, Vozes 1972. Em 1974 era Professor no Instituto Filosófico-Teológico Franciscano de Petrópolis e do CEFEPAL da mesma cidade.


I -- Em Busca do Homem Novo


MAIS que em outros tempos, nossa época se caracteriza pela preocupação do futuro e, nas penumbras dele, vislumbrar o homem de amanhã. Todos são nisso unânimes: o homem de hoje é alguém que deve ser superado. O verdadeiro homem é ainda um projeto. Ele não nasceu. Está latente dentro dos dinamismos da evolução. Essa busca do homem novo talvez seja um desses anseios que jamais fizeram progresso na história da humanidade. É uma constante permanente de cada cultura, seja na sua expressão mítica no pensamento selvagem, seja na sua formulação dentro do horizonte das utopias científicas do pensamento objetivo da modernidade. (1)

1. O homem novo no pensamento selvagem


O pensamento mesopotâmico produziu a epopéia de Gilgamés(2), interessante por nela se relatar também a criação do mundo e o dilúvio, à semelhança dos relatos bíblicos. Angustiado pelo drama da morte Gilgamés busca a árvore da vida que restitui a jovialidade ao homem velho e mortal. Quer juntar-se a Uta-Napis-

1 Cf. o livro que recolhe enorme material acerca do tema: Mühlmann, W., Chiliasmus und Nativismus. Studien zur Psychologie, Soziologie und historischen Kasuistik der Umsturzbewegungen, Berlin 21964; Bloch, E., Das Prinzip Hoffnuwg, 2 vol. Frankfurt 1959.

2 Cf. Heidel, A., The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels, Chicago 1954; Contenau, G., Le déluge babylonien, Paris 21952, 192-200.


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htim, herói do dilúvio, que os deuses imortalizaram, colocando-o numa ilha maravilhosa. A ele Gilgamés suplica o segredo da vida eterna. Em sua caminhada impossível, o deus Sol (Shamash) ironicamente o apostrofa: «Para onde corres, Gilgamés? A vida que procuras jamais a irás encontrar»!(3) A divina ninfa Siduri também o adverte: «Quando os deuses criaram a humanidade, deram-lhe como destino a morte. Eles retiveram a vida eterna em suas mãos. Gilgamés, enche o ventre, goza a vida de dia e de noite. Alegra-te com o pouco que tens em tuas mãos».(4) Gilgamés não se deixa dissuadir. Chega à ilha maravilhosa do homem imortal. Ganha a árvore da vida. E regressa. No retorno a serpente bafeja com seu hálito a árvore da vida e lha rouba. O herói desiludido morre como todos e vai ao «país onde não há retorno, onde a comida se constitui de pó e barro e os reis são despojados de suas coroas».(5) O homem permanecerá sempre o mesmo, sob o signo férreo da morte. Sonhará com a imortalidade e novidade de vida. Mas não passa de um sonho.

A civilização egípcia foi por excelência uma civilização centrada sobre o tema da morte e da imortalidade.(6) Professa-se nela um otimismo que transcende, no seu conjunto, à mensagem dos livros mais antigos do Velho Testamento: ao homem bom é prometida vida próspera e nova num outro mundo, no convívio com os deuses Osiris, Horos, Ré e Atum. O embalsamamento dos cadáveres era uma réplica do que acontecia no além: a personalidade consciente (ba) permanece na imortalidade unida ao corpo (jet) e ao seu princípio animador, de origem divina (ka)

O judaísmo bíblico criou o relato do paraíso que é uma profecia do futuro, projetada no passado. (7) Aí se pinta o homem e seu mundo como serão amanhã:

3 Tábula X, em Heidel, op. cit., 69.
4 Tábula X, em Heidel, op. cit., 70.
5 Tábula VII, col. 4, em Heidel, op. cit., 60-61; 99-101.
6 Cf. Croato, S., A esperança de imortalidade nas grandes cosmovisões do Oriente em Concilium 60 (1970) 1220 -1230, esp. 1224-1227.
7 Mesters, C., Paraíso terrestre: saudade ou esperança? Vozes, Petrópolis 1971, 47-48.


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o homem matinal, na limpidez de sua relação harmoniosa com o mundo e com Deus, onde não haverá mais a dominação do marido sobre a mulher, nem as dores do parto, nem a seca, nem o trabalho escravo, nem a ameaça dos animais, nem a religião do medo, nem a morte. A pátria do homem será o jardim de Deus (Ez 31,7-9.16.18; 36,35 -- textos que influenciaram na elaboração de Gênesis 2-3), numa situação de paz total entre o homem e a natureza e os homens consigo mesmos e com Deus (Jer. 24,7; 32,39; 31,34). Tudo será novo e paradisíaco (Is. 66,22; 65,17; cf. Is 11,9 -- textos que também influenciaram na elaboração de Gên 2-3). O homem que Deus quis está sendo ainda plasmado em Suas mãos e pelas mãos dos próprios homens na história. Mas um dia ele nascerá, totalmente, imagem e semelhança do Criador (Gên 1,26). Essa é a grande esperança do Antigo Testamento.

Os nossos tupi-guaranis e apapocuva-guaranis criaram a utopia da «terra sem mal» (yuý maraeý) e da «pátria da imortalidade». Pesquisas históricas e antropológicas recentes(8) mostraram que esses índios viviam em constante mobilidade: da costa de Pernambuco, de repente, se deslocavam para o interior das selvas até às nascentes do Madeira; do interior da selva amazônica outro grupo se punha em marcha até atingir o Peru; dos limites com o Paraguai outro grupo se movia até à costa atlântica e assim por diante. Por muito tempo essas migrações permaneceram misteriosas e inexplicáveís aos antropólogos. O estudo de seus mitos, contudo, veio revelar um dado esclarecedor: o mito da «pátria da imortalidade» punha em marcha toda a tribo. O pajé profetizava: a «terra sem mal» irá aparecer no mar. E para lá rumavam esperançosos. Com danças, ritos e jejuns

8 Cf. Schaden, E., O mito do paraíso na cultura e na vida Guarani, em: Aspectos fundamentais da cultura Guarani (Univ. S. Paulo, Faculdade de Fil. Ciências e Letras, Boletim n. 188), S. Paulo 1954, cap. X; Métraux, A., Migrations historiques des Tupi-Guarani. em Jr. de Ia Soe. des Américanistes, N.S. 19 (1927) 1-45; Linding, W. H., Wanderungen der Tupí-Guarani und Eschatologie der Apapocuva-Guarani, em Mühlmann, W. E., Chiliasmus und Nativismus, Berlin, 1964, 19-40.

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criam tornar leve o corpo e ir ao encontro, nas nuvens, da pátria da imortalidade. Desiludidos regressavam para as selvas e lá aguardavam no coração da terra o emergir da utopia, com a destruição deste velho mundo.

A expressão é selvagem. A linguagem é mítica. Mas ambas revelam o mesmo princípio-esperança que dilacera o coração do homem, como o sentimos nós hoje dentro de outro horizonte de experiência.

2. O homem novo no pensamento científico


O homem de hoje não aguarda do céu o surgir do homem novo. Ele tenta críá-lo com os meios que as ciências e a manipulação biológica lhe fornecem. Nos nossos dias o experimento humanidade está em processo: as manipulações para se lograr um controle da natalidade, a imunização contra doenças genéticas, os transplantes de órgãos e tecidos, a inseminação artificial, que nos EUA chega à ordem de 25.000 por ano(9), a criação de embriões in vitro como os célebres experimentos dos Professores Daniele Petruci de Bologna e de Landrum Shettles da Univ. de Colúmbia, a manipulação sobre o cérebro humano e melhoramento genético através de mutações cromossomáticas, dão prova da extensão da pesquisa. Será que tudo isso se processa à revelia dos princípios éticos e de uma correta interpretação do homem e de sua posição no mundo? Essa pergunta se tornará ainda mais angustiante se ouvirmos as prognoses hiperentusiásticas de não poucos biólogos e geneticistas. Herman J. MüIler, prêmio Nobel de Medicina, fala de bancos de sêmen humano, descritos com seu pedigree exato em catálogos a serem fornecidos às mães potenciais.(10) Rostand prevê o tempo em que crianças humanas receberão

9 Veja-se o meu artigo A manipulação biológica do homem, em Vozes 65 (1971) 631-641 com a bibliografia aí citada especialmente os 5 vols. do Overhage, P., A caminho da pós-humanidade, Vozes, Petrópolis 1971; para o caso citado veja: Time, abril 19, 1971, 28.
10 Cf. Kaufmann, R., Die Menschenmacher, Hamburgo 1964, 17s.


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uma dose padrão de ADN que lhes transmita as qualidades físicas e intelectuais mais desejáveis. I. B. S. Haldane, biólogo inglês, prognostica a criação de homens para viagens espaciais, homens que não possuem pernas, que não precisam se alimentar muito e que podem suportar altíssimas velocidades. «Para corpos celestes com grande gravitação, como por exemplo Júpiter, poderiam ser de vantagem homens de pernas curtas ou de quatro pernas». Th. Löbsack pensa que «nada, teoricamente, nos poderá impedir de criar homens que vivam no fundo dos oceanos ou tais que possam emigar para outros planetas e fazer deles sua nova pátria». Nathan Line e Mandred Clynes do Roekland-State-Hospitals de Nova York sugerem a produção de seres metade-máquinas-metade-homens, mais adaptados às viagens espaciais. Atwood vê a possibilidade de criar uma síntese de qualidades vegetais e animais no homem. Com isso nasceriam seres «com grande cérebro para poder dedicar-se à filosofia, e ao mesmo tempo com um campo fotosintético, nas costas, o que dispensaria a necessidade de alimentar-se». Ele vê ainda outras possibilidades: «Em lugar de um sistema complexo fotosintético poderíamos implantar no conjunto haplóide de cromossomos humanos uma série-ADN com a informação para a enzima-celulose. Neste caso, os indivíduos estariam em condições de alimentar-se de papel ou de serragem, porque possuiriam a enzima-celulose para digerir celulose como já o conseguem vacas e térmitas com o auxílio de microrganismos».(11) Desta forma e com a total manipulação genética poder-se-ia criar o verdadeiro super-homem, totalmente liberto de qualquer tara ou defeito físico, um corpo de César com alma de Cristo, com capacidade extraordinária de doação, amor, simpatia, equilíbrio, retidão e sensibilidade para os valores éticos e com uma profunda experiência religiosa. Como transparece nessas visões, que certa-

11 Exemplos tirados de Overhage, P., A caminho da pós-humanidade. Experimento Humanidade, 1, op. cit., 85-89 e de Hasenfuz, J., Biologische Atombombe. Der manipulierte Mensch, em Deutsche Tagespost n. 152 (1966) 18.

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mente muito têm de utópico e até de ingênuo, o homem se encontra diante de um terrível paradoxo, como o notou muito bem o grande biólogo Dobzhansky: «É o sucesso impressionante da evolução não só biológica, mas também cultural de nossa espécie que faz espalhar perigos e talvez até os germens da aniquilação própria». (12) Impressionante é o testemunho do grande biólogo francês Jean Rostand em seu livro Inquietudes d'un biologiste: «Os três verbos: ser, procriar, morrer não têm mais o mesmo conteúdo, depois dos últimos desenvolvimentos da ciência que nos trazem muitas vantagens, mas também muitas ameaças diretas. As próprias vantagens nos criam escrúpulos terríveis: as descobertas, entusiásticas para o biólogo, são, muitas vezes, desconcertantes para os moralistas». (13)

Diante de tais experimentos se esvaziam os conceitos clássicos de moral. Parece que é impraticável uma plena coibição do experimento-humanidade. Ela está se processando irresistivelmente. Urge criar uma visão religiosa e ética no homem que o capacite a orientar para uma maior humanização o tremendo instrumentário manipulador de que dispõe. A automanipulação para uma maior libertação físico-psíquico-pessoal da espécie humana não é em si ilegítima. Antes pelo contrário, parece-nos que emerge da própria tarefa imposta por Deus ao homem de subjugar e dominar a natureza. O homem, imagem e semelhança de Deus, foi criado para poder, na liberdade, cujas dimensões hoje atingem até o mundo genético, criar-se a si mesmo, primeiro diante de Deus com sua decisão e automanipulação para o bem ou para o mal, depois diante de seu próprio mundo hominizado, na fase psicossocial da evolução, e, por fim, diante dos próprios condicionamentos biológicos. Em seu persuasivo livro Come, Let Us Play God (Vamos, brinquemos de Deus, 1969) (14) o biofisico Leroy Augenstein afirma que talvez agora, pela primeira vez, o homem de fato pode

12 Overhage, P., op. cit., 34.
13 Appolonio, U., O homem no ano 2000, Vozes, Petrópolis 1971, 25.
14 Time, abril 19. 1971, 38.


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assumir o papel a ele confiado por Deus diante do mundo e de seu destino. Isso não significa hybris humana e rebeldia contra o Criador. Mas tomada de consciência radical daquilo que biblicamente se diz: o homem é imagem e semelhança de Deus, isto significa: ele é representante e lugar-tenente de Deus no mundo, o órgão pelo qual Deus continua a agir atuar na totalidade da criação. Essa perspectiva nos sugere a medida e o critério ético para a automanipulação biológica do homem, coisa que transcende o alcance deste trabalho.

3. O homem novo na experiência cristã


Como repercute no cristianismo a busca do homen novo? Ele faz diante disso uma afirmação inaudita: o homem novo, o homem das esperanças dos séculos, já emergiu na história, levando-a assim à sua meta. Ele se chama Jesus de Nazaré, o Cristo ressuscitado. Nele os anseios de plenitude, de potência total do ser e de reconciliação global com Deus, com os outros com o mundo se tornaram realidade concreta. O homo absconditus se revelou plenamente e saiu completamente de sua latência. Surgiu um sol que não tramonta mais. Por isso ele está em nosso meio. Os olhos fenomenais não o vêem, mas os olhos da fé o enxergam plenificando toda a realidade. Em razão disso o cristianismo se apresenta como a religião da jovialidade divina e humana. Se não se apresenta como a religião do Super-homem, quer ser contudo a religião do Homem-Deus. O futuro que anuncia aos homem não é um futuro manipulável biologicamente, como se a manipulação pudesse fazer o homem extrapolar de si mesmo e atingir o mistério de Deus, mas é o próprio futuro de Jesus Cristo. Ele é o primeiro dos homens, que atingiu a meta, como total transfiguração da existência humana, liberta da morte, das limitações e

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estreitezas de nosso-ser-no-mundo. A utopia de imortalidade e de novidade de vida se traduziu em topia e realidade no seio do mundo. Por isso, por mais que um cristão participe da admiração pelas conquistas biológicas e possa alegrar-se pelos possíveis resultados humanizadores alcançáveis por elas, jamais confunde isso com aquilo que Deus nos prometeu com a ressurreição de Jesus, o novo Adão.

Com isso não se quer insinuar que o processo de evolução ascendente seja teologicamente irrelevante. Ele representa de alguma forma, germinalmente, a plenitude final, que já vai se manifestando ambiguamente e fermentando dentro do tempo. A ciência, a técnica e a manipulação biológica visando a criação de um homem melhor podem assumir até uma missão profética: fazer esse mundo mais semelhante com aquele no final do processo evolutivo.

Se a visão cristã do futuro do homem é assim otimista, não é menos concreta. Ela deixa aberta a possibilidade de que o homem com sua manipulação venha a cometer um erro irreversível. Assim como espiritualmente ele pôde se manipular de forma desastrosa para o ulterior desenrolar da história (pelo assim chamado pecado original), semelhantemente pode ele inaugurar um processo desumanizador e involutivo que reduza porções da humanidade a um estado de rebanho adaptado à arbitrariedade da ideologia e das forças reinantes. (15) Por isso impõe-se sempre uma reserva crítica e desconfiança em relação aos prognósticos sobre o futuro do homem novo. O cristão sabe que a capacidade do mal no homem não se reduz a uma questão de fígado ou de manipulação do genes. Ela se enraíza na própria estrutura espiritual do homem, pervadindo todas as dimensões de seu ser. E não está no poder do homem saltar sobre sua própria sombra. Mas é «muito consolador poder observar que os representantes da pesquisa científico-natural séria

15 Cf. Rahner, K., Experiment Mensch, em Schriften zur Theologie VIII, Einsiedeln 1967, 260-285, esp. 281-284; Id, Zum Problem der genetischen Manipulation, op. cit., 286-321.

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se restringem em geral a prognósticos a curto prazo, e os formulam com muita prudência... Propostas eugenéticas que se referem ao futuro distante do homem se encontram fora do campo da ciência».(16) Ademais o cristão por sua fé e esperança sabe que mesmo para o homem desastrosamente manipulado há um caminho pelo qual atinge seu futuro absoluto, prometido por Deus: a morte. A morte não significa somente o termo de um processo biológico, como o veremos pormenorizadamente mais adiante. Mas principalmente significa um acabar de nascer e o modo pelo qual o homem atinge a sua total plenitude através de uma derradeira decisão. A história, para o cristão, por mais manipulada que venha tornar-se a ponto de o homem mesmo absurdamente poder pôr termo a ela, irá irreversivelmente desembocar em Deus, seja para a salvação ou seja para a total perdição. Olhando para o Cristo ressuscitado o cristão contudo confessa-se um profeta do sentido e um inimigo figadal de todo o absurdo. A história pode ser profundamente transformada e o homem degenerar para um suicídio coletivo, mas em Jesus ela atingiu sua meta e realizou já seu ponto Ômega. Esse dado faz com que ele possa esperar contra toda a esperança.

O mito grego da esperança ganha agora um sentido certo: não será uma deusa enganadora dos homens mas a verdadeira posse do almejado. Segundo o mito dizia-se que Zeus, querendo confundir os homens, enviou-lhes a deusa Pandora. Ela trazia uma caixa cheia de presentes. Curiosa, Pandora abre a caixa. E lá se foram todos os presentes, tragados como por encanto. Aos homens restou apenas a esperança de que um dia eles voltassem. E os sábios gregos se perguntavam: é a esperança boa ou má? Uns diziam: é boa porque é a única deusa que permaneceu entre os homens, ao passo que todas as demais divindades se refugiaram no Olimpo. É ela que nos faz sonhar com mundos maravilhosos e nos enche de sentido os

(16) overhage. P., Experimento-Humanidade, op. cit, 56.

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dias de angústia. Outros retrucavam: a esperança é tão enganadora como Pandora. Ilude a vida com suas fantasias.

Para o cristianismo, por causa do irromper do homem novo em Jesus Cristo, a esperança tornou-se seu apanágio e sua mensagem. O homem não permanece como um eterno Prometeu. O coração anseia porque entrevê a utopia como uma possível realidade no horizonte de Deus. E ela se realizou em Jesus de Nazaré. Em função disso podia Dostoievski, ao regressar da casa dos mortos da Sibéria, confiante e esperançoso, formular seu credo: «creio que não existe nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais viril e de mais perfeito do que o Cristo. E eu o digo a mim mesmo, com um amor cioso, que não existe e não pode existir. Mais do que isto: se alguém me provar que o Cristo está fora da verdade e que esta não se acha nele, prefiro ficar com o Cristo a ficar com a verdade». (17)

Legitimar a emergência do homem novo e definitivo para a nossa esperança não é hoje uma tarefa fácil. Nem mesmo para os próprios cristãos.

Por isso nosso trabalho, num primeiro momento, irá referir e discutir a atual problemática em torno da ressurreição de Jesus.

Em seguida, procederemos a uma análise sucinta mas essencial dos textos que testemunham as aparições do Senhor ressuscitado e do sepulcro vazio. Veremos as dimensões antropológicas que tal evento introduziu dentro das coordenadas de nossa compreensão da existência humana.

Por fim nos perguntaremos pelo nosso próprio futuro. À semelhança de Cristo estamos destinados à ressurreição quando tivermos, na morte, atingido a meta de nossa existência.

17 Correspondence I, Calmann-Levy, Paris 1961, 157.

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II -- A Emergência do Homem Novo, Jesus Ressuscitado, no Crivo da Teologia Crítica

DESDE o tempo dos apóstolos até os dias de hoje a fé na Ressurreição é questionada. A certeza que a Igreja possui é uma certeza de fé. Uma constante se nota nos relatos acerca da Ressurreição: o sepulcro vazio e as aparições não são de natureza tal que excluam a dúvida.(1) No final de seu evangelho Mateus deixa pairar no ar a frasezinha: «alguns porém duvidaram» (28,17b). Contudo, com a resposta que se dá à fé na Ressurreição resolve-se também a pergunta pelo ser ou não ser do Cristianismo. Se a Ressurreição não se verificou somos «falsas testemunhas de Deus», «vã é a nossa fé» e «somos os mais miseráveis de todos os homens» (lCor 15,14-19). Porque em vez de nos filiarmos ao grupo dos que dizem «comamos e bebamos porque amanhã morreremos» (1Cor 15,32) fugimos da realidade num mito de sobrevivência e ressurreição e iludimos outros com tais idéias. Nos últimos anos desencadeou-se uma grande discussão tanto na teologia protestante quanto na católica acerca do significado da profissão de fé «Deus o ressuscitou (Jesus) dos mortos» (At 3,15; 4,10). Assumiram-se posições radicais, provocando fortes reações dentro das comunidades.(2) A Comissão Romana dos

1 Cf. Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesus in der Botschaft der Evangelisten (Stuttgarter Bibelstudien 26), Stuttgart 2 1968, 91.
2 Vejam-se as informações em Dietzfelbinger, W., Movimentos de restauração na Igreja protestante alemã, em Concilium 51 (1970) 89-97.


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Congressos sobre a Teologia do Vaticano II organizou um simpósio internacional sobre esse tema, realizado em Roma de 31 de março a 6 de abril de 1970.(3) Um ponto deve ser salvaguardado, mesmo entre os mais radicais, e que foi esquecido no calor das disputas: não se trata de estabelecer se Cristo ressuscitou ou não. Ninguém dos implicados no debate duvida da fé na presença do Senhor vivo no meio de nós. Todos recitam o mesmo credo. A pergunta que se coloca é: O que significa para nós hoje a afirmação da fé antiga: «Cristo ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34)? Como se deverá interpretar semelhante frase para que tenhamos o mesmo impacto e retenhamos o mesmo conteúdo que a Igreja primitiva? É nesse horizonte que se situam os debates e que se coloca também nossa exposição. Referiremos o estado da questão no seio das teologias protestante(4) e católica.(5) Tomaremos uma posição crítica frente a cada uma das posições. No final ensaiaremos deslindar uma reflexão de ordem sistemática, onde se realçará particularmente o significado da Ressurreição para o nosso hoje e agora da fé.

3 Cf, L'Osservatore Romano de 2,4,8,9,12 de abril de 1970. Veja-se um resumo das principais conferências em Rosa, G., Il cristiano di oggi dí fronte alia risurrezione di Cristo, em La Civiltà Cattolica 121 (1970) 365-377.
4 Da parte protestante fizeram um estudo de visão de conjunto Geyer, H. G., Die Auferstehung Jesu Christi. Ein Überblick üter die Diskussion in der gegenwätigen Theologie, em Me Bedeutung der Auferstehungsbotschaft jür den Glauben an Jesus Christus por W. Marxsen, U. Wilkens, G. Delling e H G Geyer. GütersIoh 7 1968, 91-117; Diskussion um Kreuz und Auferstehung. Zur gegenwärtigen n Auseinandersetzung in Theologie und Gemeinde, publicado Por e. Klappert. WuPDertal 11968, onde estão reunidos os melhores estudos protestantes desde Bultmann, Barth, Bornkamm, von Campenhausen, Pannenberg e outros, esp. 9-52, 298-300.
5 Da parte católica destacam-se Ebert, H., Pie Krise des Osterglaubens. Zur Diskussion über die Auferstehung Jesu, em HochIand 60 (1968) 305-331, - relatório anônimo em Herderkorrespondez 22 (1968) 322-328 e Léon-Dufour X no Bulletín d'exégèse du N.T. em Recherches de Sciences Religieuses 57 (1969) 583-622. Da imensa bibliografia que existe sobre o tema ressaltamos epenas alguns títulos mais significativos: Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, Göttingen 2 1962; Kremer, J., Pie Osterbotschaft der vier Evangelien, Stuttgart 1968: Id., Das älteste Zeugnis von der Auferstehung Christi, Stuttgart 2 1967; Vários (Grelot, Delorme, Léon-Dufour) La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, Cerf, Paris 1969; Benoit, P., Passion Résurrection du Seigneur (Lire Ia Bible 6), Cerf, Paris 1966; Mussner, Auferstehung Jesu, München 1969; Lehmann, K., Auferweckt am dritten nach der Schrift, Freiburg-Basel-Wien 1968; Ponthot, J., Les traditions evangéliques sur Ia Résurrection du Christ. Perspectives théologiques et problèmes d'historicité, em Lumen Vitae 20 (1965) 649-673 e 21 (1966) 99-118; G., La Résurrection signe du monde nouveau, Cerf, Paris 1970; y mundo (vários autores) em Teologia y Vida 11 (1970) 75-99; Léon-Dufour, X., Présence de Jésus ressuscité em Études, abril 1970. 593-614; Schilier, H., Über die Auferstehung Jesu Christi, Einsiedeln 1968, todo o número 60 (1970) da revista Concilium e outros tantos estudos que serão citados oportunamente.


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I. INTERPRETAÇÕES DA FÉ NA RESSURREIÇÃO NA TEOLOGIA PROTESTANTE

Entre as várias posições dentro da teologia protestante como a de K. Barth, G. Ebling, H. Braun e U. Wilckens queremos relevar especialmente três: a de R. Bultmann, de W. Marxsen, e a de W. Pannenberg.

1. R. BuItmann: Ressurreição não é um fato histórico mas expressão do significado da cruz

Os Apóstolos viram na cruz de Cristo não a morte de um amaldiçoado (Dt 21,23; cf. Gál 3,13), mas perceberam nesse fato histórico um significado transcendente e salvífico: «o juízo libertador de Deus sobre o mundo, o juízo de Deus que vence a morte».(6) Esse significado não é visto no fato bruto da cruz. Por isso ele não é histórico, no sentido de poder ser detectado pelo historiador ao analisar o fato com seu método histórico-crítico. Mas ele pode ser crido. Ora «dizer Ressurreição é exprimir o significado da cruz».(7) Falar em Ressurreição não é dizer que aconteceu historicamente algo em Jesus. Mas é dizer que aconteceu historicamente algo nos Apóstolos: a fé de que a morte de Cristo é vida para o homem.(8) Fé na Ressurreicão é a forma como se exprime a fé no significado salvífico da morte de Cristo. Nesse sentido a Ressurreição não é um fato histórico que qualquer um pode verificar. O que o historiador pode averiguar é que houve homens que creram e pregaram a Ressurreição. Só na fé a Ressurreição é um fato. A fé cristã, como fé, não se interessa pela reconstrução histórica de como surgiu a fé na Ressurreição. A ela interessa o significado existencial da morte de Cristo, como

6 Neues Testament und Mythologie, em Kerygma und Mythos 1, 4 1960, 44; veja urna valoração crítica por parte da exegese católica em Kremer, J., Das älteste Zeugnis von der Auferstehung Christi, op. cit., 98-114.
7 ld. ibid.
8 ld. ibid.


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salvação para nós.(9) E isso ela o sabe pela palavra da pregação. «Fé nessa palavra é, na verdade, fé na Ressurreição».(10) A palavra pertence também ao fato escatológico e conseqüentemente possui um caráter salvífico. Por isso pode-se dizer: «na, pregação o Ressuscitado está presente».(11) Na pregação Cristo ressuscita.(12) «As lendas do sepulcro vazio» e «os relatos da Ressurreição acerca das demonstrações da corporalidade do Ressuscitado são sem dúvida construções posteriores, das quais Paulo nada sabe».(13)

Tomada de posição


Para entender a posição de BuItmann convém saber o Sitz im Leben de toda a sua teologia e do programa da desmitização por ele inaugurado. Ele se situa entre os liberais do método histórico-crítico aplicado à Bíblia no século XIX e os apologetas. Aos liberais concede que não podemos reconstruir os fatos da vida de Jesus. Nem superar as contradições existentes nos textos acerca da Ressurreição. Contudo a fé não fica com isso abalada. Ela não se baseia na ciência histórica. Frente a eles BuItmann mantém firmemente a fé cristã. Frente aos apologetas argumenta Bultmann que a Ressurreição não é um fato como qualquer outro da história, verificável por quem quiser. Só a alguns foi dado ver o Senhor. Por isso a Ressurreição não pode ser considerada como uma «prova», face aos não crentes, da verdade da fé cristã. Nesse sentido específico devemos conceder razão a Bultmann: a Ressurreição não é um fato histórico mas estórico (kein historisches Ereignis, sondern ein geschichtliches).(14) Só é atingível pela fé. Esclarecendo: se dissermos --

9 Id.. 47, Das Verhältnis der urchristlichen Christusbotschaft zum historischen Jesus, Heldelberg 1962, 27;
10 Kerygma und Mythos, op. eit, 46.
11 Theologie des Neuen Testamentes, 5 1965, 305.
11 Theologie des Neuen Testamentes. op. cit., 305.
12 Marxsen, W., 11 Die Auferstehung Jesu aIs historisches und alo theologisches Problem, em Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft, op. cit., 13.
13 Kerygma und Mythos, op. eit, 44; Theologie des Neuen Testamentes, 48.
14 Cf. o livro de Greshake, G., Historie wird Geschichte. Bedeutung und Sinn der Unterscheidung von Historie und Geschichte in der Theologie R. Bultmanns, Essen 1963.


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a Ressurreição não é um fato histórico -- e com isso pensarmos que nada aconteceu depois da morte de Jesus, então interpretamos mal a Bultmann. Se pensarmos que aconteceu sim, mas isso é só acessível pela fé (estórico) e escapa ao historiador (histórico), então temos compreendido sua tese fundamental. Bultmann não quer perder muito tempo em discutir a base histórica das aparições e dos relatos do sepulcro vazio, Ele quer concentrar-se no cerne essencial, que muitíssimas vezes, devido às discussões sem fim, se perde totalmente. Este é: a Ressurreição é uma mensagem de vida para a existência humana. A morte foi vencida definitivamente pela cruz e por isso entrou um grande sentido em nossa vida. Para exprimir essa novidade BuItmann utiliza categorias não objetivistas e objetivantes da filosofia clássica mas a terminologia do existencialismo heideggeriano, mais apta para exprimir situações existenciais. Para compreender essa mensagem precisamos vivê-Ia pela fé. Assim como a existência verdadeira reside no processo mesmo de viver, da mesma forma o compreender a mensagem de fé se realiza na realização mesma da fé.(15) Para isso pouco vale saber se o sepulcro vazio é uma lenda ou não ou qual é o cerne histórico das aparições do Senhor. Importante é viver a fé na Ressurreição. Seria pena se o homem de hoje, pouco afeito a milagres e à admissão de intervenções freqüentes de Deus no mundo, viesse por causa disso a não aceitar essa chance oferecida por Deus de vida nova e cheia de esperança salvadora.(16) Contudo devemos, à luz de lCor 15,38, o mais antigo testemunho escrito da Ressurreição (entre 54 e 57), perguntar a Bultmann se a ligação da Ressurreição com a história é assim tão irrelevante como ele pensa. A Ressurreição não é um mito do qual se poderia dizer que «nunca aconteceu e contudo é». Embora não seja um fato his-

15) BuItmann, R., Moderne Bibelauslegung und Existenzphilosophie, em Jesus Christus und die Mythologie, Hamburgo 3 1967, 50-68; veja-se também Hasenhüttl, Der Glaubensvollzug. Eine Begegnung mit R. Bultmann aus katholischem Glaubensverständnis, Essen 1963.
11 Bultmann, R., Die christliche Botschaft und die moderne Weltanschauung, em Jesus Christus und die Mythologie, op. cit., 37-49.


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tórico comum, está ligada à história de Jesus. Aquele que morreu e foi sepultado é que agora ressuscitou (cf. lCor 15,3-4; At 2,23-24), como atestam várias testemunhas, «das quais muitos ainda vivem, e alguns morreram» (1Cor 15,6). Isso não é uma prova da Ressurreição mas um argumento em favor da credibilidade da pregação apostólica acerca da Ressurreição. Nesse sentido as aparições e os relatos sobre o sepulcro vazio ganham relevância teológica: não visam constituir uma demonstração para o que não crê, mas um convite, fundamentado e cheio de razoabilidade para a fé. Bultmann quer destruir todas as bases e esteios racionais da fé, para purificá-la e fazê-la cada vez mais ela mesma. Isso é um postulado de seu sistema teológico, radicalização do princípio luterano da sola-fides, sem fundamento bíblico.(17) Semelhante fideísmo está a um passo do ateísmo dogmático. Como se há de distinguir fé de ideologia? Como se há de legitimar (não se trata de provar nem de demonstrar) nossa esperança a quem nos pede as razões dela (1Pdr 3,15) ?

2. W. Marxsen: A Ressurreição não é um fato histórico mas uma interpretação das aparições condicionada pelo horizonte apocalíptico


Bultmann bagatelizava o valor da pergunta pelo fato histórico. W. Marxsen, embora seja mais radical ainda que Bultmann, interessa-se por ela.(18) Sabemos, diz ele, como surgiu a convicção do fato da Ressurreição. Não se trata da constatação de um fato real, mas de uma interpretação condicionada pela cosmovisão apocalíptica da época. Pertencia a ela a esperança na

17 Cf. Scheid, E., Das Heilsgeschehen, Tod und Auferstehung im Lichte Entmythologisierung BuItmanns, Rom 1954, 41ss.
18 Marxsen é professor de teologia bíblica e exegese do NT na faculdade protestante de Münster. Seu escrito principal acerca do tema é Auferstehung Jesu aIs historisches und aIs theologisches Problem, em Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft für den Glauben an Jesus Christus, op. 9-40 ou ainda por Gerd Mohn, Gütersloh 1967; ver ainda Das NT Buch der Kirche, GütersIoh 1966, 96-100.


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ressurreição dos mortos. As aparições reais que os Apóstolos tiveram (essas possuem caráter histórico e agiram como um impacto -- Widerfahrnis -- sobre os Apóstolos) foram interpretadas dentro das categorias de ressurreição. Para o historiador nada se disse ainda sobre se a Ressurreição aconteceu ou não. (19) Ele constata historicamente que alguns assim interpretaram as aparições que tiveram. Essa interpretacão -- Jesus ressuscitou -- não é obrigatória para nós hoje. Porque não somos obrigados a assumir a cosmovisão, da época, passada e mítica. O próprio NT mostra como há uma outra possibilidade de interpretar as aparições, não como Ressurreição de Jesus, mas como missão de viver e de pregar a causa de Cristo adiante.(20) Paulo em lCor 9,1 fundamenta seu apostolado no fato de ter visto o Senhor. Portanto as aparições que de fato aconteceram após a morte de Jesus levaram os Apóstolos a refletir em duas direcões: uma funcional, voltada para o futuro: a missão. «A causa de Jesus vai adiante» (21), pela pregação «Jesus nos atinge hoje». (22) Outra voltada para o passado, pessoal: Jesus ressuscitou dos mortos. Essa afirmação está condicionada pela antropologia judaica, segundo a qual não há vida humana sem corpo. Por isso a insistência maciça de alguns textos em Lucas e João em afirmar a corporalidade do Ressuscitado. Se um grego tivesse refletido sobre as aparições do Senhor, ele diria, consoante sua antropologia, para a qual o corpo é um cárcere e um mal: «Jesus deixou realmente seu corpo». Ele teria afirmado a vida de Cristo sem precisar de falar em Ressurreição do corpo. (23) Isso não é um fato mas uma interpretação que deve hoje ser traduzida em nossa fé. Ressurreição é um modo de falar e não algo que aconteceu. O conteúdo de verdade desta expressão, que deve ser man-

19 Id., 19. ld,
20 Id., 20.
21 Id., 30: "Die Sache Jesu geht weiter"; cf. Schubert, K, em Kairos 11 (1969) 145-149.
22 ld. ibid.
23 ld., 33.


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tido por nós, reside nisso: pela Igreja e pelo Evangelho a causa de Cristo segue adiante e nos atinge a nós como atingiu outrora os discípulos de Cristo. «Se isso me atinge então eu sei: Ele vive. Exprimindo-o numa terminologia mais antiga (sabendo dos limites e condicionamentos daquela terminologia) posso eu hoje professar: Ele vive, Ele não permaneceu na morte. Ele ressuscitou».(24)

Tomada de posição

Essa interpretação de Marxsen tem muito de sedutor e desencadeou uma discussão sem precedentes. Sua preocupação é pastoral: a fé na Ressurreição, diz ele, deve ser uma fé que compreende o que professa; deve falar à existência concreta e deixar de ser uma informação neutra.(25) Marxsen viu claramente onde reside o problema: nas aparições que agiram como um impacto sobre os apóstolos. Ninguém viu a Ressurreição. Existem testemunhas que afirmam a Ressurreição por causa de vivências que tiveram (aparições) após a morte de Jesus. É legítima a interpretação destas vivências como: Jesus ressuscitou? Ou é algo que se legitima só dentro das categorias apocalípticas do tempo dos apóstolos, de sorte que nós hoje deveríamos traduzir essa mensagem para outras coordenadas de compreensão? Para responder a isso devemos ponderar dois elementos. Primeiro: o conceito que o NT tem de Ressurreição não corresponde exatamente ao das esperanças apocalípticas de Ressurreição do judaísmo tardio.(26) Os saduceus negavam-na; os fariseus criam antes numa revivificação, isto é, numa volta às condições de vida deste velho éon. Em Mc 12,23 Cristo mesmo corrige semelhantes represen-

24 Id, 39.
25 ld, 11.38.
26 Cf. Grelot, P., La résurrection de Jésus et son arrière-plan biblique et juif, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit, 17-54, esp. 39ss; Schubert, K, Die Entwicklung der Auferstehungslehre von der nachexilischen bis zur frührabbinischen Zeit, em Biblische Zeitschrift (1962) 177-214; Id, Interpretament Auferstchung, em Wort und Wahrheit (1968) 78-80.


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tações. Ressurreição para o NT é a passagem do mundo presente ao mundo futuro, da história à metahistória, transfiguração e atualização radical e total das possibilidades do mundo presente. Numa palavra: Ressurreição é a realização do Reino de Deus para a condição humana. Ressurreição de Cristo não é a volta de um cadáver à vida biológica, mas a transfiguração de um estraçalhado na cruz. Mais: um amaldiçoado por Deus (Dt 21,23; Gá1 3,13) é «elevado», feito «sentar-se à direita de Deus» e «entronizado como Filho de Deus em poder» (cf. Rom 1,4; At 13, 33). Os apóstolos foram surpreendidos e dominados por tal impacto que estava fora de suas possibilidades de representação. Sem isso jamais teriam pregado o Crucificado como sendo o Senhor. Sem «essa alguma coisa» que aconteceu em Jesus não se explica o fato de a Ressurreição de Jesus sempre vir ligada, na pregação, com a morte e o sepultamento. Bem dizia Dahl, referindo-se a Bultmann, o que vale muito mais para Marxsen: «Os acontecimentos da páscoa não foram previstos pelos discípulos. Foram fatos que se realizaram, antes algo que deve ser interpretado (interpretandum) que uma interpretação do significado de Jesus e de sua morte». (27) E aqui abordamos um segundo elemento em que se deve refletir: precisavam os apóstolos fazer uma interpretação para este fato ser decifrado? As aparições narradas no NT não são algo de totalmente indeterminado e de vago que exigisse reflexão e interpretação para serem decifradas. Antes pelo contrário. Usa-se o termo que é considerado por bons exegetas como técnico na temática de revelação: óphte (aoristo medial ou passivo de oráo) significando: «ele deixou-se ver, ele apareceu». (28) Com isso se acentua a iniciativa vinda de fora e que agiu como um impacto sobre os apóstolos. Os apóstolos

27 DahI, N. D., Eschatologie und Geschichte im Lichte der Qumrantexte, em Zeit und Geschichte, Tübingen 1964, 14; Kremer, J, Das älteste Zeugnis, op. cit., 128.
28 Cf. Michaelis, W., em ThWNT V,315ss esp. 359; Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, op. cit., 186-232 esp. 186-189. Cf. o próprio Marxsen, W., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 20.


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tiveram encontros com o Senhor vivendo agora sob outra forma. O encontro pessoal é muito mais rico que um simples ver (óphte) : é comunhão de pessoas, um estar-aí frente a frente em mútua presença, é um diálogo de tu-a-tu, dentro do «esprit de finesse» da recíproca imediatez e não do «esprit de géométrie», que pede provas e averiguações científicas. Todo encontro humano rompe os esquemas pré-fabricados. Situa-se num outro painel de referências, onde vale a comunicação pessoal, a amizade, o amor, a gentileza e recíproca abertura numa simbiose de dar e receber. Isto fez os apóstolos afirmarem: «Jesus ressuscitou verdadeiramente» (Lc 24,34) e não tanto as representações e esperanças de uma ressurreição dos mortos, implicadas no horizonte apocaliptico em que se moviam.(29) Se quisermos admitir que a Ressurreição seja uma interpretação, então só com condição de dizermos: é uma metáfora que de fato e de forma adequada exprime o encontro pessoal dos apóstolos com Jesus vivo. Não é pois uma expressão que pode ser sem mais mudada por outra, como «a causa de Jesus é levada adiante» ou «Ele hoje nos vem ainda ao encontro». Os textos do NT deixam claro que pela Ressurreição aconteceu algo em Jesus e que isso provocou a fé nos apóstolos e não vice-versa.

3. W. Pannenberg: A Ressurreição é realmente uma interpretação das aparições, porém insubstituível, atingindo o fato histórico

R. Bultmann se desinteressava pelo fato histórico da Ressurreição. W. Marxsen vê interesse nele como uma interpretação condicionada pela atmosfera cultural da época mas se desinteressa pelo seu valor permanente, porque pode ser intercambiada por outra interpretacão. W. Pannenberg, professor de Teologia sistemá-

19 Nisso insistiu fortemente Schubert no Simpósio Internacional em Roma: cf. Rosa, G., Il cristiano di oggi di fronte ala risurrezione di Cristo, em Civiltà Cattolica 121 (1970) 369.

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tica protestante em Munique e chefe de um grupo de teólogos que se afastaram da problemática buItmaniana e propugnam por uma concepção da revelação como história, interessa-se exatamente pela interpretação das aparições como fator insubstituível também para nós hoje, atingindo o fato histórico-Ressurreição de Jesus.(30) Após a crucificação os Apóstolos foram surpreendidos por Jesus, ressuscitado dentre os mortos, comunicando-se com eles através de aparições. Para exprimir essa nova realidade, sem analogias dentro da história (a Ressurreição de Jesus é outra coisa que a revivificação do jovem de Naim (Lc 7,11-17), da filha de Jairo (Mc 5,35-43 par) ou de Lázaro (Jo 11) (31), os Apóstolos lançaram mão das metáforas do mundo apocalíptico. Uma delas era a da Ressurreição dos mortos, como um acordar do sono e um levantar-se. Semelhantemente acontecerá no final do mundo. Evidentemente a linguagem é simbólica: a realidade pensada e seu modo são toto caelo diversos. Os homens do velho mundo não podem fazer representações adequadas de como serão os homens no mundo novo. O NT assumiu a metáfora Ressurreição mas pensa bem outra coisa que uma simples revivificação de um cadáver, no sentido de um levantar-se e de um andar por aqui e por ali de um morto. Ressurreição é nova vida (cf. lCor 15,35-56): uma transformação radical da existência corporal para uma existência pneumática, totalmente determinada e repleta por Deus (lCor 15,38-42.50-53). Ao usarem a metáfora quiseram exprimir tal realidade absolutamente nova: Jesus vive uma existência corporal totalmente diversa da do velho éon. Isso é visto como o romper do mundo novo: Cristo é o primeiro entre muitos irmãos (Rom 8,29), as primícias dos que morreram e agora ressurgem (lCor 15,20; Col 1,18; cf. At 1,15; 3,15), aquele por quem todos somos vivificados (lCor 15,22). (32) Esse fa-

30 Grundzüge der Christologie, GütersIoh 3 1969, 47-112; Id., Dogmatische Erwägungen zur Auferstehung, em Kerygma und Dogma fase. 2 (1968) 105-109.
31 Grundzüge, op. cit., 69-85.

32 Id., 71-73.

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to só pode ser expresso na linguagem da expectativa escatológica, simbólica e insuficiente, porque tomada das categorias do velho mundo, porém insubstituível.(33) Sem ela perdemos a realidade pensada e testemunhaia pelos textos do NT. Se ela é de tal natureza que só pode ser expressa pela linguagem simbólica e anunciada por aparições então as aparições e as expressões simbólicas garantem o caráter histórico do fato-Ressurreição de Jesus. O historiador constatando as aparições atinge também o fato-Ressurreição manifestado nelas. Se as aparições possuem carãter histórico (o que não é posto em dúvida por W. Marxsen ao menos para o núcleo central) também o possui a Resrurreição. Caso contrário jamais poderíamos dizer que a Ressurreição aconteceu dentro de um determinado momento de nossa história.(34)
Tomada de posição

A posição de Pannenberg é familiar aos ouvidos católicos. Concede que a fé na Ressurreição é uma interpretação das aparições. Contudo uma interpretação imediata que atinge a realidade nova e a expressa de forma adequada à sua natureza (novo mundo, novo homem: 2Cor 5,17), isto é, simbolicamente. Como podemos falar senão simbolicamente do novo céu e da nova terra? Pannenberg insiste com razão na Ressurreição como fato histórico no sentido de que ela realmente se verificou dentro da história, embora o acesso seja indireto por via das aparições. Talvez Pannenherg (para evitar equívocos) se devesse exprimir como E. Dhanis o fez na relação conclusiva do Simpósio internacional em Roma sobre a problemática da Ressurreição distinguindo entre um fato diretamente histórico de outro indiretamente histórico. Aquele é atingível em si mesmo mediante os métodos

33 Id., 95.
34 Id., 96; cf. também Moltmann, J., Auferstehung und Jesu Christi, em Theologie der Hoffnung, München 1966, 125-209, na mesma linha que Pannenberg.


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próprios da pesquisa histórica; este, o indiretamemente histórico, só é atingível mediante a reflexão sobre fatos históricos. (35) A Ressurreição não é um fato diretamente histórico. Ninguém a viu. Contudo é um fato indiretamente histórico porque os Apóstolos, refletindo do sobre o sepulcro vazio, encontrando-se com Jesus vivo em aparições, puderam convencer-se e dizer «Deus o ressuscitou dos mortos» (At 3,15; 4,10). A Ressurreição não é uma revivificação de um cadáver mas é a entronização da realidade corporal de Jesus transfigurada na glória de Deus. Isso funda um fato de outro gênero que os fatos históricos comuns. Essa novidade de vida humana deixou contudo sinais e traços entre os homens, o sepulcro vazio, as aparições que refletidos e interpretados nos dão a certeza moral -- que é a certeza própria da história -- de que a história de Jesus não acabou na cruz mas na Ressurreição. A Ressurreição é o ponto de partida da cristologia. A partir dela os Apóstolos e os autores do NT começaram a se perguntar: Quem é esse Jesus de Nazaré que Deus ressuscitou dos mortos? E sob essa nova luz foram relendo e descodificando a história de Jesus kata sárka (segundo a carne), isto é, começaram a fazer e a escrever a cristologia. Nesse horizonte escreve também Pannenberg sua grandiosa cristologia, em grande consonância com a cristologia católica. (36)

II. INTERPRETAÇÕES DA FÉ NA RESSURREIÇÃO NA TEOLOGIA CATÓLICA

As discussões exegético-sistemáticas no campo protestante não deixaram de influenciar a teologia católica especialmente a exegese. No presente momento, graças à opinião de W. Marxsen, desencadeou-se também

35 Rosa, G., Il cristiano di oggi, op. cit.. 370-371.
36 Cf. Schnackenburg, R., Christologie des Neuen Testamentes, em Mysterium Salutis III/1, EinsiedeIn-Zürich.KõIn 1970, 230-247: «A Ressurreição como ponto de partida e principio da Cristologia».


no lado católico uma série de reações, tomando posicão ou mesmo assumindo traços das soluções apresentadas. No que se refere à exegese, pode-se, sem exagero, dizer que os autores católicos não ficam em nada atrás de seus colegas protestantes, quer no espírito crítico, quer na utilização dos mais recentes métodos exegéticos (história morfo-crítica, das tradições, das várias redações etc.) e mesmo na ousadia e liberdade de sacarem conclusões das análises feitas. A título de sistematização dividiremos as tendências como seguem: (37)

1. Tendência tradicional: a Ressurreição é indiferenciadamente um fato histórico

Essa posição era assumida em toda sua linha por quase todos os manuais de teologia dogmática e de teologia fundamental. A Ressurreição era considerada a prova principal da divindade e veracidade do Cristianismo. Recentemente foi ainda proposta por E. Gutwenger. (38) Segundo esse autor a Ressurreição é um fato histórico sem mais, baseado na realidade das aparições. A convicção da Igreja primitiva, diz Gutwenger, mostra «que o Jesus redivivo se manifesta como um vivo entre vivos, de sorte que quem o via parecia ver um homem em sua vida diária».(39) De forma um pouco mais diferenciada mas fundamentalmente idêntica esta posição é defendida também por W. BuIst no recente dicionário Sacramentum Mundi.(40) A obra de F. X. DurrwelI, A Ressurreição de Jesus, ministério de salvação(41), representa da parte católica

37 Cf. bibliografia citada já na nota 5.
38 Zur Geschichtlichkeit der Auferstehung Jesu, em ZKTh 88 (1966) 257-- vejam-se também as críticas movidas por Gaechter, P., Die Engelerscheinungen in den Auferstehungsberichten. Untersuchung einer Legende, em ZKTh 89 (1967) 191-202.
39 Id. 279.
40 Saclamentum Mundi I, Freiburg-Basel-Wien 1967, 413-416 e antes ainda no 1957, 1035-1038.
41 Herder, S. Paulo 1970, traduzido da oitava edição francesa. Em linha semelhante parece estar a obra de J. Comblin, A Ressurreição, Herder, S. Paulo 1965; Cf. ainda artigos mais antigos como Jansens, A., De valore soteriologico resurrectionis Christi, em EThL (1932) 225-233; Grotty, N., The Redemptive Role of Christ's Resurrection, em The Thomist (1962) 54-106. Excelentes perspectivas sistemáticas oferece Klappert, B., ao livro coletivo Diskussion um Kreuz und Auferstehung: Aspekte des Auferstehungogeschehew, op. cit, 10-52.


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um Novum no sentido de apresentar uma sistematização impressionante da fé na Ressurreição em suas ligações com a redenção, com a história de Cristo, com a Igreja e seus sacramentos e com a consumação celeste. A preocupação crítica porém é, para as exigências do atual debate, muito exígua. É sintomático que a teologia de S. João ocupa o lugar principal em suas reflexões, o que mostra o caráter preferentemente teológico e menos exegético-crítico de seu trabalho. Frente a Gutwenger devemos ressaltar que Ressurreição não é o mesmo que revivificação. Por isso seu caráter histórico, como irrupção de uma realidade escatológica dentro de nossa história, não pode ser equiparado com outros fatos históricos.

2. Tendência da exegese moderna positiva: a Ressurreição é um fato de fé da Igreja primitiva

A essa tendência filia-se aquele grupo de exegetas que com auxílio dos modernos métodos da exegese chegam a eruir a fé da Igreja primitiva, sem, tematizadamente, perguntar o que é influência do ambiente cultural, o que é histórico e o que é elaboração teológica sobre fatos históricos. O interesse se concentra nos textos tais quais temos, assegurados por séria análise crítico-literária. J. Schmitt(42) é um de seus melhores representantes. Ele constata que para os Apóstolos a Ressurreição era considerada um fato histórico como a vida e a morte de Cristo. Ressurreição é corporal, e é «mais que um fato histórico. É a 'palavra' decisiva do diálogo que Deus conduz com os homens, o argumento principal pelo qual Deus quer convencer os homens de sua fidelidade, de sua 'sabedoria' e de seu 'poder'».(43) Aos olhos dos Apósto-

42 Jésus ressuscité dans Ia prédication apostolique, Paris 1949; ainda o verbete Auferstehung do LThK 1, 1957 1028-1035, finalmente em Sacramentum Mundi I, 405-413.
43 Sacramentum Mundi. op. cit, 408.


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los a Ressurreição é a resposta do Pai à submissão do Filho (cf. Mc 15,34 par), a recompensa por sua obediência até à morte (cf. Flp 2,9). Um pouco nesta linha vai o excelente livro de P. Benoit, Passion et Résurrection du Seigneur.(44) A crítica literária e histórica encontra em seu estudo um terreno privilegiado, ao lado da preocupação de deslindar o horizonte teológico típico de cada evangelista(45) que se mostra no modo como trabalham sobre o material tradicional.

A discussão como hoje é conduzida tem antes de tudo uma preocupação hermenêutica: como haveremos de entender nós hoje o que os Apóstolos entenderam outrora? Como vamos pregar e testemunhar a mesma novidade, expressa dentro de coordenadas que não são mais as nossas? Até que ponto os Apóstolos testemunham uma experiência original? Até que ponto fazem trabalho teológico, apologético, cultual? Os atuais textos têm em seu subsolo todas essas tendências. Daí que uma exegese que se concentra principalmente em eruir a fé do NT é necessária, porém insuficiente, em relação às perguntas que homens de hoje fazem.

3. Tendência da exegese hermenêutica: a Ressurreição é indiretamente um fato histórico anunciado dentro das categorias da época


Há um bom grupo de sérios exegetas católicos que não só se interessam pela fé do NT mas principalmente em ver a gênese desta fé, como deu origem a várias tradições, como foi evoluindo de elementos-cernes para elaborações cada vez mais amplas, terminando no atual estado dos textos.(46) Um elemento é unanimemente afirmado: a Ressurreição não é diretamente um fato histórico, possível de ser detectado

44 Do Cerf, Paris 1966 Veja-se também Sint, J, Die Auferstehung in der Verkündigung der Urgemeinde, em ZKTh 89 (1962) 129-151.
45 id, 5.
46 Cf. bibliografia na nota 5. Os artigos em revistas científicas são múltiplos nos vários idiomas. Segura perspectiva teológico-exegética oferece ainda M. Schmaus, Der Glaube der Kirche, München 1969, 453-486.


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pelo historiador. (47) É um fato que aconteceu em Jesus acessível pela fé baseada nos testemunhos dos que viram Jesus depois de ter sido crucificado. Sua nova vida não cai sob categorias biológicas (onde reina morte) mas pertence já à esfera divina da vida eterna. (48) Por isso o fato-Ressurreição entra na ordem do mistério que rompe as categorias do espaço e do tempo.(49) Seu anúncio só pode ser revelado (50) e se for manifesto dentro da história, e será velado por símbolos e aparições. (51) As categorias para exprimir esse novo modo de existir de Jesus são determinadas pelo ambiente da época: Ele é elevado junto a Deus, está sentado à direita de Deus, é entronizado como Filho de Deus em poder, foi feito Kyrios e Juiz universal atc.(52) É o emprego do esquema apocalíptico da humilhação-elevação do justo na interpretação do sepulcro vazio e das aparições. Os mesmos fatos foram interpretados também dentro das categorias escatológicas de Ressurreição dentre os mortos. O estado atual dos textos contém e combina ambas as interpretações.(53)

Para a apologética tradicional o sepulcro vazio é um elemento importante para a credibilidade da Ressurreição. Uma compreensão mais diferenciada da realidade da Ressurreição levou exegetas católicos a afirmar seu caráter secundário. «Em nenhum dos quatro Evangelhos a descoberta do sepulcro vazio é um argumento convincente em favor da verdade do

47 Trilling, W, Jesus y los problemas de su historicidad, Barcelona 1970, 169; Sehnackenburg, R., Haben wir die Bibel falsch ausgelegt? em Alte Fragen Neue Antworten? Neue Fragen alte Antworten? Würzburg 1967, 119-121; Schierse, F. J., Um die Wirkliehkeit der Auferstchung Jesu, em Stimmen der Zeit 92 (1967) 221-223.
48 Rahner, K, verbete Auferstehung no Sacramentum Mundi I, 420-425: Ratzinger, J, Einführung in das Christentum, München 1968, 249-257.
49 Kessler, H., Fragen um die Auferstehung Jesu, em Bibel una Kirche 22 (1967) 21.
50 Kolping, A., Auferstehung, em Handbuch theologischer Grundbegriffe 1. (publicado por H. Fries), Münehen 1962, 141.
51 Michiels, R., Notre foi dans le Seigneur ressuscité, em Collectanea me Mechliniensia 55 (1970) 227253, esp. 242-245; Léon-Dufour, X, Apparitions e du ressuscité et herméneutique, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit., 153-173.
52 Cf.. Brändle, M., Zum urchristlichen Verständnis der Auferstehung Jesu. Orientierung 6 (1967) 65-71.

Cf. principalmente Seidensticker, P., Die Auferstehung Jêsu in der Botschaft der Evangelisten, Stuttgart 2 53 1968, 38-58; Wilckens, U., Die Überlieferungsgeschichte der Auferstehung Jesu, em Die Bedeutung der Auferstehungebotschaft, op. cit, 41-64.


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anúncio pascal. (54) Ela não causou a fé mas o medo e a fuga (Mc 16,8; Lc 24,5; Mt 27,8). (55) O tema do sepulcro vazio é tão secundário que não deve ser contado como condição para a verdadeira fé na Ressurreição. Segundo M. Brändle «o corpo da existência renovada (de Cristo) não vem do sepulcro mas do céu». (56) Ressurreição, pensa ele, não quer dizer glorificação do corpo terrestre mas autêntica nova criação de Deus. Já a biologia nos diz que de 7 em 7 anos quase todas as células de nosso corpo biológico são renovadas. Com que corpo haveremos de ressuscitar? Não conhecemos o que seja a matéria. Por isso não devemos arriscar fazer declarações dogmáticas sobre assuntos que podem ser a qualquer momento reformulados. A identidade de nosso corpo não se baseia portanto na identidade da matéria, mas na estrutura e em suas leis que regulam os processos da matéria. Essa identidade é conservada pela Ressurreição.(57) Por isso o sepulcro de Cristo não precisa estar vazio. H. Ebert, pensando na linha de Brändle e admitindo que Ressurreição não é sem mais nem menos a transformação de um cadáver depositado na sepultura, conclui: «Se assim fosse o sepulcro vazio não seria para nós hoje um milagre-sinal mas algo de estranho que mais dificulta do que ajuda a fé. Exagerando um pouco, deveríamos então crer não por causa do sepulcro vazio mas apesar dele».(58)

Contudo quer-nos parecer que essa solução se apresenta por demais minimalista. É sintomático que os quatro evangelhos relatem o fato do sepulcro vazio, e insistam na identidade do crucificado com o ressuscitado. Embora a priori pareça nada se opor ao pen-

54 Krem er, J., Die Osterbotschaft der Evangelien, op. cit., 136; Id, Ist Jesus wirklich von den Toten auferstanden? em Stimmen der Zeit 94 (1969) 310-320.
55 Cf. Voegtle, A., Er ist auferstanden, er ist nicht hier, em Bibel und Leben 1966, 69-73.
56 Musste das Grab leer sein? em Orientierung 31 (1967) 108-112, aqui 112.
57 ld. 109.
58 Ebert, H., Die Kríse des OstergIaubens, em HochIand 60 (1968) 305-1. 325; Broer, Das leere Grab. Ein Versuch, em Fest der Auferstchung keute (publicado por Th. Bogler) Ars Liturgica, Maria Laach 1968, 42-51 esp. 48; Schenke, L., Auferstehungsverkündigung und leeres Grab. Eine traditionsgeschichtliche Untersuchung von Mk 16,1-8, Stuttgart 1968, 33ss.


samento de que o corpo glorificado seja outro que o corpo carnal, contudo existem razões suficientes para afirmarmos tal identidade. Primeiro, porque os próprios testemunhos apostólicos o fazem. Segundo, como se haveria de pregar de forma responsável a ressurreição de Jesus dentre os mortos se os habitantes de Jerusalém pudessem constantemente apontar para o cadáver de Jesus? Ademais há uma razão interna de ordem teológica. O corpo de Jesus, embora sárquico (fraco e limitado), não vinha inserido e maculado pelo pecado como vem estigmatizado nosso próprio corpo. Ele exprimia de forma humana e comunicadora a divindade. Nosso corpo é rebelde e não exprime adequadamente nossa interioridade. Em Jesus ele chegava à sintonia de quem superou já todas as alienações. Não era somente o órgão de Deus no mundo. Era Deus mesmo corporalmente presente. Por isso, se já em vida ele exprimia a comunhão e a interioridade divina e humana, quanto mais agora pela ressurreição não fora tal capacidade potencializada ao máximo? Desde o primeiro momento Ele fora carne nova que ia crescendo em idade e graça até lograr a plenitude pela ressurreição. Por aí, parece-nos podermos afirmar, com boas razões teológicas, a identidade pessoal do corpo de Jesus sárquico com o pneumático. Contudo como sempre insistimos e já o fazia Tomás de Aquino: «Ressuscitando, Cristo não retornou à vida comumente conhecida pelos homens. Mas assumiu a vida imortal e conforme com Deus» (Sum. Theol. III, q. 75, a. 2).

Contudo o fato decisivo para a fé na Ressurreição é constituído pelas aparições, interpretadas, como vimos há pouco, dentro de duas categorias de pensar que estavam à disposição dos discípulos: a apocalíptica e a escatológica. A exegese católica, como em J. Kremer, H. Ebert, Ph. Seidensticker, A. George, A. Kehl e outros(59), estudou bem a evolução por que pas-

59 Cf. George, A., Les récits d'apparitions aux Onze à partir de Luc 24, 36-53, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit, 55-74; Kehl M., Eucharistie und Auferstehung. Zur Deutung der Ostererscheinungen beim Mahl, em Geist und Leben 43 (1970) 90-125 esp, 113-125.

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saram as representações: desde as espiritualizantes em Paulo e Mateus, com concretizações crescentes por motivos apologéticos em Lucas e João, até as maciças representações da Ressurreição de Jesus nos apócrifos, especialmente no evangelho apócrifo de S. Pedro, na Epistula Apostolorum e no fragmento 7 do evangelho aos hebreus.(60) Caso à parte dentro da teologia católica ocupa o discípulo de M. Schmaus o teólogo e filósofo leigo H. R. Schlette.(61)

4. H. R. SchIette: a Ressurreição é uma interpretação retroativa sobre a vida de Jesus

O Pano de fundo da interpretação de Schlette é seu conceito de epifania como história. Típico da teologia do AT é não a narração histórico-factual mas a detectação do sentido latente dentro dos fatos. Ver a mão de Deus no coração da história é detectar Sua epifania no mundo. Com a história de Jesus os apóstolos fizeram o mesmo processo. A vida de Jesus foi a máxima epifania de Deus: pregou o amor universal, entendeu-se como serviço para os outros e foi fiel à sua mensagem em nome de Deus, até à morte. Após sua morte os discípulos se reúnem, falam e se lembram dele, comentam suas palavras. «Parecia-lhes a eles impossível pensar que esse Jesus estivesse morto e relegado ao passado como Abraão, Davi e Jeremias; quando falam dele, se reúnem, comem e bebem juntos, assim crêem eles, ele está com eles. Javé, que o enviou, deixa-o agora vivo no meio deles».(62) Pode bem ser -- o que é difícil de constatar historicamente -- que nessa atmosfera se deram sinais e fenômenos, interpretados como a mão de Deus, assegurando entre eles a verdade: «Jesus e sua mensagem não se acabaram».(63) Essa reflexão interpretativa e retrospectiva sobre a

60 Cf os textos recolhidos e publicados por Seidensticker. P., Zeitgenoessische Texte zur Osterbotschaft der Evangelien, Stuttgart 1967, 55-65.
61 Epiphanie ata Geschichte, München 1966, 66-83.
62 Id 70-71.
63 Id., 71.


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vida passada de Jesus, decifrando ali a máxima revelação epifânica de Deus, levou os apóstolos à afirmação: Ele ressuscitou verdadeiramente. Essa interpretação é legítima, pondera Schlette, para aquele que em sua fé consegue ver a epifania de Deus na história de Jesus. Ele não pode mais que afirmar: De fato ele vive, (64)
Tomada de posição

Essa interpretação de Schlette, marcadamente influenciada por W. Marxsen, recebeu forte contestação no campo católico. (65) Sua elaboração não se confronta com os textos do NT que constituem as únicas fontes e pontos de partida para qualquer reflexão acerca da fé pascal. Não cai Schlette na psicologização da escola de Tübingen com Strauss à sua frente? Ele aplica um esquema desenvolvido em confronto com a teologia do AT para um fenômeno novo e sem paralelos na história. Com isso ele força situações e não corresponde à falta de qualquer patos e à despreocupação descritiva das fórmulas mais primitivas acerca da Ressurreição em lCor 15,3-5 e At 25.

III. CONCLUSÃO


A sumária exposição das principais tendências acerca da fé na Ressurreição deixa entrever que a frase Jesus ressuscitou não é simples. Não se trata num primeiro momento de negar ou afirmar a Ressurreição. Trata-se antes de tudo de saber o que se entende por Ressurreição, como as fontes neotestamentárias a interpretam e como a tradição refletiu sobre esses dados. Não é sinal de ortodoxia repetir velhas fórmulas sem o esforço de auscultar o presente e as per-

64 Id., 74-75.
65 Apreciaram a concepção de Schlette: Ratzinger, J., em ThR 63 (1967) 34-36; Voegtle, A., Epiphanie ais Geschichte, em Oberheinisches Pastoralblat jan. 1967, 9-14; Schubert, K., Interpretament Auferstehung, em Wort und Wahrheit 1968, 78-80; apoiou decididamente a Schlette: Brändle, M., Musste das Grab leer sein? op. cit., 108-109.

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guntas que este coloca. Há heresias que se fazem no zelo em manter a tradição intocável. A verdade cristã só permanece viva e não uma coisa museal se for traduzida nas várias linguagens de nosso tempo. Só assim, diz-nos a Gaudium et Spes (n. 44), «a verdade revelada pode ser percebida sempre mais profundamente, melhor entendida e proposta de modo mais adequado». É nesse sentido que tentaremos encaminhar algumas reflexões de ordem sistemática acerca da verdade central de nossa fé. Antes porém, a título de orientação, convém referir, sumariamente, o atual estado da exegese sobre os textos que falam da Ressurreição.

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nota:
(*) Genézio Darci Boff, catarinense de 56 anos, está afastado da Igreja. Seus livros, contrários aos dogmas da Igreja Católica por tratarem de temas polêmicos, lhe renderam o afastamento da Igreja Católica. O ex-frei Leonardo Boff pediu seu próprio desligamento da Ordem dos Franciscanos. Não foi punido e jamais deixou de viver de acordo com sua ideologia.

Boff é contrário à hegemonia da Igreja Católica Apostólica Romana e aposta na teoria do multicatolicismo, como a quebra da "hierarquia da Igreja" e a libertação dos povos. Para o polêmico frei Leonardo Boff, a Igreja não exerce o verdadeiro sentido intimista do cristianismo, por não permitir a reformulação de seus conceitos a partir de experiências populares. Isso seria evidenciado pela abertura às religiões africanas e indígenas, muito discriminadas no atual contexto. A sociedade entende que a umbanda esteja ligada à feitiçaria e seja semelhante à macumba e que igrejas "tribais", como Santo Daime, utilizam práticas não-ortodoxas, como cantilenas indígenas e ingestão de alucinógenos.

O principal ponto de choque entre Boff e a Igreja se resume no celibato clerical. Em várias entrevistas à imprensa nacional, Leonardo Boff admitiu ter sido fiel à castidade. Atualmente casado, Boff se dedica à pregação ecológica. Um de seus livros, o "Ecologia: Grito da Terra, Grito dos Pobres", tenta unir a religião com o ambientalismo, defende dogmas do budismo e ataca os papas que "teriam contribuído" com um genocídio dos índios.

Polêmico, sensato e ao mesmo tempo agressivo, Boff participa da Conferência Continental das Américas, onde está sendo colocada em discussão a Carta da Terra. O evento acontece em Cuiabá e reúne ambientalistas, ecologistas e jornalistas de vários países da América do Sul. Entenda o posicionamento de Leonardo Boff diante da religião e da preservação ambiental.


A Carta da Terra pode ser melhor compreendida no site http://www.cartadaterra.org.br

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