segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

São Paulo e o Evangelho de Jesus. (Um Estudo da Base da Ética Cristã)

Por Charles E. Raven

(Título orginal em inglês:
St Paul and the Gospel of Jesus
A Study of the Basis of Christian Ethics)





palavras escritas pelo Dr F. H. Chase, Bispo de Ely, na Bíblia que me deu de presente em minha Ordenação para o Sacerdócio, em sua Cateadral em 18 de dezembro de 1910



Neste livro o Dr Raven responde duas perguntas cruciais. Qual a mensagem de Jesus em sua essência permanente? Esta mensagem foi corrompida por Paulo - ou (como Dr Raven acredita) foi conduzida por Paulo que pela sua própria experiência deu uma nova e magnífica amplitude às implicações revolucionárias de Jesus para a vida do mundo, implicações novamente urgentes pela crise espiritual da humanidade no século XX? Este livro resume toda a vida e pensamento de um dos melhores autores e pregadores da Inglaterra moderna. Dr Raven foi Regius Professor de Divindade, em Cambridge, de 1932 a 1950, e serviu como vice-chanceler da Universidade. Ele também foi capelão da Coroa desde 1919, e membro da Academia britânica. Especializando nas relações entre ciência e religião, ele nunca teve medo de desafiar a ortodoxia convencional. Neste livro ele é peculiarmente corajoso em resgatar as origens do modo cristão de vida.

Versão eletrônica e tradução: Railton de Sousa Guedes.


ÍNDICE
Prefácio à Edição Brasileira

Prefácio

Introdução

I - A Crise na Teologia e na Ética 13

A Ética de Jesus

II - O Caminho da Vida Abundante 21

III - O Caminho da Vida Perdida e Recuperada 35

O Desenvolvimento da Ética em Paulo

IV - O Primeiro Impacto de Jesus 49

V - A Descoberta em Corinto 71

VI - O Tratado de Roma 83

VII - A Expansão do Pensamento de Paulo 99

VIII - A Plenitude de Cristo 115

IX - Paulo na Igreja Primitiva 137



Epílogo

X - A Vinda da Maioridade 145

Abaixo CAPA da edição inglesa original



A ilustração mostra Paulo convertendo Romanos - painel de bronze na porta principal da Basílica de São Paulo, Roma, reproduzida com permissão dos Padres Beneditinos do Monastério de São Paulo, Roma.

PREFÁCIO À EDIÇÃO ELETRÔNICA BRASILEIRA(1)



Foi em meados da década de 70 quando eu ainda morava em uma república de estudantes no bairro da Liberdade, que meu querido vizinho, pai, irmão, conselheiro e grande amigo Christopher Parker do Salvation Army me presenteou um exemplar de ST Paul and The Gospel of Jesus, livro que desde então guardo comigo com muito carinho.

Resolvi iniciar esta tradução para o português por dois principais motivos: Primeiro por este livro ser, a meu ver, um dos melhores e mais corajosos estudos acerca da base da ética cristã. Segundo por poder vir a ser uma preciosa ferramenta ao atual movimento internacional que dá seus primeiros passos em direção ao retorno àquele modo cristão de vida, inaugurado, ensinado e vivido pessoalmente por Jesus e pelos primeiros Apóstolos, e que, salvo raríssimas excessões, durou até o século III AD, quando a Igreja lenta, gradual e desgraçadamente iniciou o abandono de sua principal prática, o ágape, e de sua principal base, o primeiro amor, a pedra de esquina, o Espírito deixado pelo seu fundador, cedendo à sedução de três velhas, ardilosas e perigosas instituições do judaísmo, muitas vezes hostilizadas pelos profetas e definitivamente abolidas pelo próprio Jesus Cristo: a sinagoga (templos ou edifícios de igrejas), o rabinato (clero) e o que mantém a ambos, o dízimo. (1)

Nesta empreitada procurei estar atento a que o processo de transposição das palavras e frases do inglês para o português não afetasse seriamente o pensamento do Dr. Raven. E nesse mesmo espírito e sempre visando uma melhor compreensão dos leitores, não exitei parafrasear, a começar pelo próprio título. Quanto às passagens bíblicas, na maioria das vezes adotei a Bíblia Viva. De qualquer forma, aqueles que quizerem beber direto da fonte poderão consultar a versão eletrônica em inglês, também gratuitamente disponível na rede.

São Miguel Paulista, 5 de junho de 2003,

Railton Sousa Guedes

(1) Nesse sentido, há sinceros, embora tímidos, esforços sendo implementados em algumas igrejas tradicionais, como podemos ver aqui.



PREFÁCIO (2)

Este livro é o resultado de um processo por muito tempo bem familiar ao seu autor. Em vários momentos aborda grandes temas incluindo registros de muitos séculos e envolvendo uma extensa gama de assuntos. A partir de uma grande quantidade de material elaborei um esboço focalizando aquilo que achei mais interessante. No verão de 1959, minhas dissertações sobre ética cristã na Universidade St Augustine, Canterbury, resultaram em um ensaio geral sobre os problemas éticos que a Igreja enfrenta em nossos dias. As conferências foram provocantes e agitadas. Onde demonstrei que nosso real problema não está nas controvérsias em torno de grandes assuntos raciais, sociais e sexuais, mas na incorporação do núcleo da fé, aquela comunidade santificada na qual não há judeu nem grego, escravo nem livre, macho nem fêmea; estamos confusos e desencaminhados, e isto porque pensamos e agimos em termos de dogmas e instituições, tradições e práticas que são irrelevantes para nossa situação e muito freqüentemente obstrutivas para nossas intenções. Vivemos na era nuclear mas com os mesmos velhos sistemas econômicos, políticos e religiosos que Jesus rejeitou desde o começo de seu ministério.

Assim, em vez de lidar com assuntos contemporâneos, preferi, como sempre, me debruçar nos Evangelhos e em Paulo. Este pequeno livro é, portanto, resultado não apenas de recentes estudos mas também de um velho trabalho iniciado desde o verão de 1907 - aquelas longas horas, semanas, domingos, com Headlam, estudando a Carta aos Romanos! - renovado pelas conferencias sobre os Evangelhos Sinópticos em 1910 e continuado a cada momento crítico de minha vida.

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Quando apresentei este livro para publicação inseri notas explicativas dos motivos pelos quais rejeito as tradicionais doutrinas do Segundo Advento, a teoria luterana do Estado, a interpretação Calvinista de predestinação, o ataque barthiniano à teologia natural, a recente negação de todo o progresso neste mundo, e a onda de anti-racionalismo. Tristemente, contra minha vontade, constatei que homens e estudiosos incapazes de compreender o completo significado da ciência moderna estão também impossibilitados de perceber que os conceitos tradicionais da natureza e da criação, do homem e seus afazeres, da liberdade e da autoridade, do passado e do futuro, do espaço e do tempo, tem que ser completamente abandonados; muitos dos aparatos doutrinários e institucionais herdados por nossa religião são incompatíveis com a revolução necessária. Quão superficiais se apresentam esses dualismos tão familiares como matéria e espírito, corpo e alma, indivíduo e comunidade, ruim e bom, maldito e santo. Estou convicto de que experiências subjacentes e passadas interpretadas à luz de nossas tradições são vitais e autênticas. Elas merecem ser tratadas por cada um de nós, cientistas e cristãos, como dados para avaliação da realidade - como dados de importância indispensável. Agora, explicar, sem ser cansativo ou descortês, a necessidade da adoção de uma nova cosmologia àquele que acha impossível abandonar o conjunto de conceitos e teorias estruturadas no modo de pensar pre-darwiniano ou mesmo pre-copérnico, principalmente quando tais pensamentos são honestamente abalizados por uma vasta gama de teólogos e mestres durante toda a vida, isto realmente está além de minhas forças. Àqueles que perguntam por que aceito em grande medida a sucessão histórica do Evangelho de Marcos, a autenticidade das narrativas de Atos, a precisão de Gálatas, ou a deterioração dos padrões apostólicos na tradição católica, eu recomendo meus livros anteriores que abordam estes assuntos, especialmente Jesus and the Gospel of Love e The Gospel and the Church. As referencias à presente crise podem também ser encontradas em Science, Medicine

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and Morals, ou nas minhas conferências de Gifford, Experience and Interpretation.

Fiz citações bíblicas em várias traduções, às vezes de minha própria autoria; eventualmente não hesitei em parafrasear.

C. E. R. - Cambridge - agosto de 1960

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II - A Ética de Jesus

O CAMINHO DA VIDA ABUNDANTE

Responder a questão 'Qual é a ética cristã para a era nuclear?' é principalmente retornar ao Cristo dos Evangelhos e a Paulo. Este é o caso especialmente quando, como no momento, obviamente aceitamos como se fossem cristãos, padrões éticos nos quais se reivindica o emprego de bombas de hidrogênio. Para mim pelo menos nem o Cristo dos Credos e nem mesmo o Cristo dos Sacramentos podem ser tomados como critério - pela óbvia óbvia razão de que o ethos do Novo Testamento, ou seja, a qualidade de vida e o amor por ele revelado, a beleza e a sabedoria de seu modo de vida, não pode nem de longe ser comparado com formalismos e controvérsias dos teólogos nem com o fingimento e o emocionalismo dos clérigos. Tanto a doutrina como a liturgia têm um plano e talvez uma contribuição essencial para fazer religião. Mas uma vez divorciadas do amor de Deus revelado na Bíblia eles ficam legalistas e institucionais, um intelectualismo dogmático ou um cerimonialismo mítico; como insistia aquele genial padre-cientista Teilhard de Chardin, 'se o amor de Deus fosse extinto de dentro das almas dos crentes, o enorme edifício de ritos, hierarquia e doutrinas que compõem a Igreja voltaria imediatamente ao pó de onde saiu'. (1) Assim, ficamos com o Cristo dos Evangelhos, com Marcos e com as fontes primitivas usadas pelo primeiro e terceiro evangelistas.

(1) The Phenomenon of Man, p. 296.

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A peculiaridade deste ponto de partida é a mesma história de qualquer outro fundador de religião que primeiramente cuida das relações pessoais, uma situação concreta que afeta particularmente as pessoas; os procedimentos de Jesus para com estas pessoas, todo tipo de pessoas, seu impacto sobre elas, suas mútuas reações. A despeito do que a Igreja parece freqüentemente dizer, Jesus não é revelado a nós como um divino intruso, apesar das adoráveis histórias sobre anjos e magia sua preocupação ao longo do seu ministério situa-se em coisas comuns e pessoas comuns. Enquanto nos preocupamos com o milagre do seu nascimento e com toda a imagem do Natal, tais coisas para seus contemporâneos, discípulos e principalmente para os primitivos evangelistas este presságio de glória era desconhecido, tanto que para Marcos a única menção de sua mãe e família foi quando eles vieram colocá-lo sob controle pois pensavam que estava louco. (1)

Por conseguinte nós esquecemos dos longos anos na bancada de carpinteiro em Nazaré onde ele morou entre simples aldeões em um lugar de nenhuma grande reputação e na qualidade de filho de José. Para nós é certamente notável o simples fato de desde seu primeiro aparecimento público ser reconhecido pelos homens como dotado de uma rara autoridade e originalidade, crescera na vida pacata da aldeia e no meio de um povo que até mesmo quando ele era famoso pensava nele apenas como sendo um deles. Mesmo se alguns de nós nestes dias urbanizados descobrissemos uma comunidade assim, como desejamos, poderia ser encontrada apenas em alguma aldeia remota longe de todos nossos meios de transporte e amenidades, contudo, constatar que o maior universalista do mundo, o mestre que abriu um modo completamente novo de religião para o homem e fundou um completamente novo tipo de companheirismo humano, gastou a maior parte de sua vida precisamente num ambiente assim, parece um milagre realmente.

(1) Cf. Marcos 3.21 e 31-5, e em sua visita a Nazaré (6.1-5).

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Ali ele encontra tudo o que raramente é descoberto por profetas e santos de outras religiões, que uma verdadeira consciência de Deus não é necessariamente adquirida do templo ou do palácio, do deserto ou da cidade. Jesus estava contente em viver em uma aldeia, trabalhando como artesão e ajudando seus pais em casa. Diferentemente da grande maioria dos religiosos ele não tinha quase nada que dizer sobre aquilo que normalmente é considerado sobrenatural, como diabos e anjos, céu e inferno, e toda aquela imagem cósmica de Dante e Milton, do Dia da Ira e da Visão Beata. Seu ensino se baseia em flores, pássaros e brincadeiras de crianças, em homens que semeiam campos e mulheres que assam pão: neles e em suas ações diárias ele descobre Deus como nosso Pai. A tais pessoas ele proclama as boas notícias e a presença viva de Deus, presença manifesta pela sua própria liberdade e poder, pela purificação e cura, pelo diálogo e ensino, e pela escolha e unidade da comunidade de seus discípulos. Ele não age como os outros mestres, ensinando sobre teologia, ética, oração ou ritual; na realidade ele choca seus contemporâneos por seu desapego aos festivais e cerimoniais, às tradições e deveres religiosos; títulos e vestuários, ritos e convenções são para ele mero fingimento. Não importa o que você come ou com quem você se encontra; a corrupção não vem de fora mas de dentro; a vida deveria ser simples e espontânea, não arruinada por regras mas sensível e sincera; a virtude deveria ser acelerada pela bem-aventurança; se Deus vier primeiro, então todos nossos problemas se resolvem.

A reação que provocava em seus vizinhos era tão imediata quanto suas palavras. A partir de seu batismo ele manifesta o brilho de sua mensagem: 'Agora é o tempo; o Reino de Deus está aqui; mude sua perspectiva e acredite nas boas notícias' (Marcos 1. 15). Assim ele declarou o céu aberto e a deidade encarnada. Superou o velho conceito 'Deus é nosso Rei' (1 Sam. 12.12). Afirmou a direção e a presença de

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Deus; e chamou o povo de Deus para dar boas-vindas a essa proclamação. É desnecessário argumentar, como foi tão repetidamente dito, que significando preciso este Reino teve naquele momento para Jesus ou para seus ouvintes. Todo seu ministério subseqüente pode ser considerado uma exposição e ilustração disto, como realmente ele próprio concebeu em sua tentação. Isso implica a transcendencia, a primazia de Deus e a universalidade do seu reino, a imanência de sua presença na comunidade humana e a presença da comunidade humana em sua pessoa. Mas, como veremos, Paulo precisou fazer uso de toda sua perspicácia para evitar possíveis erros de interpretação desta frase e descobrir o significado que o próprio Cristo deu a ela.

Mas a persuação de mensagem era imediata. Marcos descreve os murmúrios que ocorreram em torno da sinagoga em seu primeiro Sabbath em Capernaum. 'O que é isto! Uma nova lição; ele fala com autoridade; domina nossas paixões ruins e dá um jeito nelas.' Convicção, autoridade, o coração puro, a integridade, dê o nome que quiser a estas coisas, podemos todos reconhece-las e, se tivermos sorte, vez por outra rapidamente perceberemos isso nos homens e mulheres para os quais Deus é uma realidade. Isso talvez se assemelhe àquela qualidade de perfeição alcançada que certos eventos, beleza natural, arte, poesia, música, abnegação, podem representar e até mesmo proporcionar; coisa que com nossa consciência crescente poderia se tornar (aparentemente impossível) fato corriqueiro. Apenas Jesus teve esta qualidade. Nele os homens viram seus sonhos se tornar realidade. Nele os homens podiam depositar confiança. Para ele poderiam fazer aquele total comprometimento de que apenas a fé pode salvar. Conseqüentemente com respeito ao Homem de Nazaré, ou o Filho de homem como costumava chamar a si mesmo, lentamente e a despeito das profundas e mais obstinadas tradições que carregavam, não puderam encontrar nele nenhum sinal categórico de divindade.

Mas ele podia curar. Chegaram carregando um menino paralítico numa esteira, fizeram um buraco no teto e o desceram até onde Jesus estava (Marcos 2.3-12). 'Menino, Deus não é o que ensinaram a você,

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alguém que te castiga pelo seus pecados ou pelos pecados de seus pais. Você não é desamparado nem maldito mas perdoado e amado'. A obsessão foi removida. 'Levante-se e ande' foi obedecido. Assim, em outro registro anterior (Lucas 7.22-23; e Mateus 11.4-6), ele responde as dúvidas de João Batista apelando para um teste que ele mesmo prescreveu, o teste dos frutos. 'Homens cegos recuperam a visão, homens coxos caminham, homens leprosos são tornados limpos e os surdos ouvem; homens mortos são resgatados para a vida; os pobres recebem boas notícias'. Podemos dar a esse discurso um significado físico ou mais amplo: de qualquer forma é verdadeiro. Ele contagiou os homens com saúde e plenitude de vida. A condição dessa cura em seu aspecto humano é claramente revelada na cena representativa e crítica no momento decisivo do ministério depois da transfiguração (Marcos 9.14-29) quando o pai do menino epiléptico declara a Jesus: 'Se você puder fazer alguma coisa, tenha piedade de nós e nos ajude'. Ao que Jesus respondeu: 'Você pergunta se eu posso? Todas as coisas podem ser feitas por aquele que tem fé!'. E o pai clamou e disse: 'Eu tenho fé: ajude minha falta de fé'. Daquele tempo para cá há evidência abundante para provar que, onde a confiança que não dá espaço para qualquer sombra de dúvida, não há nenhum limite para a possibilidade dos resultados; e até mesmo pessoas bem simples tem festejado as ocasiões em que são libertas com momentos de intensa e desinibida alegria. Estamos começando a descobrir algo sobre o caráter e os efeitos de tais curas. Parece ter pouco ou nada a ver com o medo da doença ou da morte, ou mesmo com o volume de orações concentradas no paciente. Como toda efetiva intercessão, é uma questão de percepção da presença de Deus e de completa dedicação a ele.

É perfeitamente plausível a primazia desta ênfase em Deus. Jesus insistiu muitas vezes neste ponto, tanto que adotou esse tema quando usou a parábola pela primeira vez em seus ensinamentos. O uso que ele fazia de tais histórias parece ter começado com vívidas comparações como aquelas duas onde ilustra a novidade absoluta,

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a expressão exterior e o espírito interior do seu modo novo de vida, as chamadas 'parábolas' do remendo do tecido novo na roupa velha e da colocação do vinho novo no oldre velho. Mas quando escolheu os Apóstolos e começou a se dedicar e a treina-los na avaliação do 'mistério' do Reino de Deus (Marcos 4.11), ele desenvolveu um tipo mais elaborado de simbolismo. As três primeiras dessas parábolas formam uma série de lições que ilustram a natureza do mundo de Deus, a sua e a nossa situação nesse mundo. As duas primeiras envolvem o uso das duas mais famosas imagens da presença de Deus no homem - a semente de vida, e a centelha de luz. Na parábola do Semeador Jesus descreve sua missão, a mensagem que se dissemina pela Palavra, e como sofre vários desastres, os ataques de destruidores, a pobreza da terra, a competição de outras influências; e como, no entanto, algumas crescem e se multiplicam. Então em contrapartida a qualquer sugestão de que nós - os recepientes - temos, nesse contexto, pouca responsabilidade, ele traz à luz que cada homem precisa preparar-se e alardear [a Boa Nova] caso queira ver seu trabalho executado: o homem é responsável pelo seu cuidado e pelo seu uso. A estes acrescenta uma das mais curtas e mais falseadas de todas as parábolas. Que chamamos de 'crescimento secreto da Semente' como se ela fosse uma precursora da semente de mostarda e da levedura; ou então semelhante à parábola do trigo e das taras dando a elas uma referência escatologica à última colheita. Na realidade tais parábolas não tem nada a ver com segredos ou julgamentos. Sua mensagem complementa as anteriores, um golpe com o poder total, um aspecto que a Igreja tem quase que universalmente negligenciado. Jesus mostra a imagem do semeador que saiu a semear. O homem semeia e as sementes brotam por si mesmas; ele dorme e desperta; e a planta continua crescendo durante todo o tempo. O homem não provoca e nem mesmo entende seu crescimento. É a terra que por sua própria natureza produz o fruto; que estabelece o crescimento em todas suas fases,

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folhas e espigas, grãos nas espigas, e depois vem a colheita. Nenhuma parábola descreve a função e o valor do mundo mais explicitamente do que o desenvolvimento da vida. Nós, a semente, podemos confiar na fertilidade do mundo de Deus: essa é uma clara lição que contraria aquele pessimismo obsecado que considera a terra totalmente corrupta, e a natureza como não tendo nada em comum com graça.

Este provavelmente é o ponto em que o contraste entre a moral de Jesus e as nossas modernas versões é mais manifesto. Certamente enquanto os noivos estavam com seus amigos, estes se alegravam (Marcos 2.19). A alegria significava para eles, como para Paulo, uma virtude cristã primária. A terra ficava radiante com a presença de Deus, e sob sua luz a comunidade dos discípulos poderia percorrer as estradas, poderia compartilhar a vida na terra, e poderia esperar o futuro com confiança. Era esta a alegria, o sentido de estar dentro da vida de Deus, esta fonte de felicidade interior e fortaleza exterior que desiludiu e abalou o mundo de Roma, para sua surpresa e eventual aceitação. Aqui seguramente está a luz que ilumina todo homem e é sua vida. Jesus veio por conta própria; e no princípio foi reconhecido por eles.

Mesmo durante o período relativamente tranquilo de seu ministério ele nunca buscou a via ascética nem abordou qualquer situação pela alternativa política do 'temos que lutar ou fugir'. Pelo contrário, ele falou livre e destemidamente como homem entre homens, não hesitando em advertí-los da gravidade dos seus erros ('se um homem abomina o espírito de santidade, ele está nas garras de um pecado eterno', Marcos 3.29,30) nem vacilando em suas recomendações para que por causa do amor quebrassem o código tradicional ('o Sabbath foi feito para homem não o homem para o Sabbath', Marcos 2.27). Ele se move continuamente no mesmo plano, tanto lidando com pessoas individualmente em seus pontos de vista particulares, como em reuniões casuais com coletores de impostos como Levi e seus amigos; (Marcos 2.15-17) com estrangeiros como o centurião 'um homem

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sob disciplina' (Mateus. 8.5-13; Lucas 7.2-10); com a mulher sirofenícia (Marcos 7.25-30) ou em um teste cuidadosamente preparado como o do homem com um braço mirrado no Sabbath na sinagoga (Marcos 3.1-6). Até mesmo quando começam a suspeitar dele, as autoridades, a polícia de Herodes ou os rabinos que tinham descido especialmente de Jerusalém, ele não revela nenhum sinal de ansiedade ou acomodação; e embora as dificuldades obviamente apareçam e o futuro se torne ameaçador, ele segue seu caminho, sem medir dificuldades ou recusar enfrentá-las. Ele aceita o pedido de Gergesenes depois da cura do endemoniado. Ele aprecia, seguramente com um sorriso, os comentários dos conterraneos aldeões de Nazaré. Ele envia os apóstolos como seus missionários, e os recebe, provavelmente nesta ocasião,(1) com tal êxtase e gratidão que vividamente evoca o tipo de expressão que encontramos no Quarto Evangelho ('Todas as coisas foram dadas a mim por meu Pai, e ninguém conhece o Filho exceto o Pai, nem ninguém conhece o Pai exceto o Filho e aquele para quem o Filho deseja revelar', Mateus 11.27; Lucas 10.22) Ele celebra o que parece ter sido uma simbólica senão eucarística refeição com seus discípulos e cinco mil seguidores. É neste momento, de acordo com João, que algumas pessoas, presumivelmente zelotes nacionalistas, pretenderam seqüestra-lo e proclama-lo Rei (João 6.15). Ele se retirou deliberadamente. Certamente em momento algum ele teve qualquer intenção de estabelecer uma hegemonia econômica, política ou religiosa. Nesse sentido seu Reino não era 'deste mundo'.

Dessa forma, a segunda fase de seu ministerio foi largamente devotada em limpar a visão de seus seguidores de idéias egoístas de poder e prestígio com as quais quase sempre associavam seu messianismo.

(1) possivelmente, a missão dos setenta é um desdobramento disto. Cf. Lucas 10.1-11 e Marcos 6.7-13.

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Ele realmente era o Messias, representando os homens diante de Deus e Deus diante dos homens, conforme afirmado claramente por Pedro em Caesarea Philippi, e confirmado por ele e pelos filhos de Zebedeu, alguns dias depois pela visão do Cristo transfigurado. Mas a única resposta àquela confissão foi o ordenamento do silêncio e a advertencia de que sofrimento, rejeição, morte e ressurreição o esperavam. Qualquer outra expectativa seria satânica.

Olhando para além da crise, e preparando seus discípulos para o que viria, ele age esperançoso e plenamente confiante de que Deus, cujas boas notícias apresenta ao seu povo em Jerusalém, não lhe deixará. Além de sua convicção de ressurreição, qualquer que fosse o preciso significado que dedicava a ela, havia a certeza que o Reino estava próximo, e que sua jornada estava diretamente conectada com ele. Se naquela geração, adúltera e pecadora, os homens o reconheceram, eles também o reconheceriram ao entrar na glória do seu Pai com os santos anjos (Marcos 8.31-38); e ele acrescentou: 'Verdadeiramente eu digo a vocês que alguns dos que aqui estão não provarão morte até que vejam o Reino de Deus vir com poder' (Marcos 9.1). A importância destas palavras, intensamente enfatizadas entre nós pelo Dr. Albert Schweitzer em seu grande livro (1) foi tão óbvia e exerceu tão grande papel em parte do pensamento e da ética cristã que iremos considera-las aqui brevemente; voltaremos mais completamente a esse tema mais adiante.

Imediatamente surge diante de nós a questão do uso e do preciso significado de tal linguagem apocalíptica nos lábios de Jesus, e em termos gerais do lugar da Escatologia, e do que significa no pensamento e na vida cristã a doutrina do fim do mundo e de

(1) Von Reimarus zu Wrede, traduzido com o título "A Questão do Jesus Histórico".

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nosso destino. Essa questão surge com frequencia tanto na forma de citações como de discurso, usualmente e corretamente considerado pelos estudiosos como um documento especial e interpolado, em Marcos 13. A Escatologia será considerada quando lidarmos com a interpretação de Jesus no ensino de São Paulo; para os Evangelhos, aparte algumas passagens em Mateus, não exerce um papel relevante em sua forma crua e literal.

Do ponto de vista dos estudos éticos este é o principal problema. Se considerarmos literalmente tais declarações apocalípicas, concordaremos que Jesus não apenas acreditava no rápido cumprimento das boas novas mas que elas seriam consumadas pela sua própria descida física do céu em triunfo, pela subversão imediata das condições presentes e pelo seu reinado universalmente reconhecido, e que esta completa intervenção sobrenatural aconteceria dentro da geração que presenciara sua morte, e deduziremos que seu ensino moral era apenas uma ética interina, restrita ao intervalo de alguns anos, mas irrelevante e imprópria a qualquer observância permanente ou a longo prazo. Daí poder-se-ia argumentar que suas palavras sobre matrimônio, auto-controle, jejum e a real vida 'no Reino' dizia respeito apenas a uma emergência temporária e curta, não podendo ser consideradas depois que tais espectativas fossem abandonadas. Jesus neste contexto compartilhou de uma ilusão comum dos seus próprios contemporâneos de que o fim, significando o desfecho catastrófico desta vida de luta, de pecado e sofrimento, era iminente e que esperar por ele era uma necessidade primária do crente. A prevalência de tais idéias neste vigésimo século é uma advertencia para que não as ignoremos como incompatíveis com a íntegra qualidade e método do próprio Jesus e com sua revelação da natureza de Deus, do mundo e do homem. Nós não temos que olhar para estas declarações de nosso moderno ponto de vista mas do que elas significaram no primeiro século.

De nossa parte, por herdança do mundo greco-romano,

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nosso idioma e literatura, usamos metáforas graficamente. Podemos visualizar um anjo alado; os escultores e pintores fazem isto, até mesmo um centauro é plausível para nós. Mas não conseguimos descrever uma besta cheia de olhos, e muito menos um homem de cuja boca saem duas espadas afiadas. Não é comum usarmos cataclismos celestiais e nem mesmo cataclismos terrestres para descrever nossas experiencias - entretanto há épocas, como a de agosto de 1914, quando até mesmo os jornalistas mais insensíveis acharam estas as únicas maneiras adequadas para expressar a intensidade dos eventos. Mas para os judeus, não acostumados a imagens gráficas, a reprodução visual era menos necessária, e para os tremendos acontecimentos da vida religiosa e emocional a transformação do sol em escuridão e da lua em sangue, o mover montanhas e a convulsão da terra eram imagens familiares. Moisés, os profetas e os salmistas usaram tal linguagem durante séculos; e a crise das guerras macabeias a tornaram universal, implantando até mesmo sistemas secretos nestas imagens para revelar conhecimentos ocultos. Quão precisamente a linguagem de Daniel ou o número da besta esconde seus segredos ao leitor ordinário pode ser discutível, mas que para ele e para todo o mundo judeu tal apocalípticismo era principalmente simbólico é algo certo. A interpretação literal contribuia, e ainda contribui, não apenas para traduzir poesia em prosa mas para ocultar sua extensão e significado.

Além disso não podemos nos esquecer dos efeitos que nossa convicção na ordem de natureza, na imensidão do tempo geológico, no sistema solar e no universo, provoca em nós mesmos. No primeiro século a terra era central e, consequentemente, pequena; Deus em toda sua majestade era uma figura familiar, quase doméstica; e não havia nenhuma linha para separar o que normalmente podia ou não ocorrer. Tal linha faz parte de nossos hábitos cotidianos de pensamento; e para nós é difícil deixar de separar os milagres da natureza das obras de cura. Nossa perspectiva do exequível e do inexequível rejeita inteiramente a idéia das in-

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trusões sobrenaturais. Se para os discípulos essa idéia era facilmente absorvida e intensamente inspiradora, para nós se torna um campo de recusa e de depressão. Eles pressentiam a eminencia não do fim de suas próprias vidas, mas do fim mundo, do fim do universo como eles o concebiam, algo que poderia chegar a qualquer momento, como um ladrão durante a noite. Não podemos imaginar uma catástrofe universal nem sequer em termos de bombas de cobalto, nem mesmo de qualquer intervenção externa e dramática. Um Deus que se comporta de tal modo insinua a cosmogonia e a teologia do Paraíso Perdido. Seria um Deus que abandona seus filhos e sua mútua relação com eles, um Deus que após experimentar o modo de amor e da Cruz readquire seu caráter de Deus das Batalhas e de Juiz em seu trono, um Deus cujo Cristo não revela o aspecto vital de sua natureza.

Concluímos que tais linguagens e idéias apocalípticas são maravilhosamente apropriadas se simbolicamente interpretadas como pano de fundo das boas novas em Jesus. Se assumirmos seu significado literal estaremos não apenas contradizendo a revelação cristã mas também o uso dessa linguagem pelo judaísmo no primeiro século. Para o Jesus apocalíptico não era uma linguagem de terror mas de esperança, uma proclamação não de eventos físicos futuros mas da suficiência permanente e do triunfo de Deus. Ele enfrenta a crise com confiança; seu modo continua. Aceitando-as devemos ter o cuidado para não se comportar como se interpretações simbólicas envolvessem qualquer negação da extensão, da velocidade ou da subitaneidade dos acontecimentos por elas simbolizada. Perceberemos quão sujeitos estamos a tais acontecimentos quando transmudarmos a catástrofe física para o nível espiritual. Relegá-la a um futuro remoto ou mesmo considera-la restrita a um mundo inacessível é seguramente um erro.

A rápida influencia do ministério público de Jesus pela proclamação, pela cura, e mais particularmente, pela seleção e comissionamento dos doze, e pela experiência do serviço comunitário(1) que compartilhara com

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eles, já descortinara, como um microcosmo, a presente conquista e o cumprimento futuro da vida terrena no Reino.

(1) esse ponto é admiravelmente abordado por T. R. Morton, em seu recente livro, The Twelve Together.

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III - A VIDA PERDIDA E RECUPERADA



Assim começou a segunda fase do ministério e dos ensinamentos de Jesus. O primeiro plano, como o registro sinótico mostra, é resumido meritoriamente na primeira expressão vocal joanina sobre a vida: 'eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância' (João 10.10). É uma declaração que resume o propósito de todo processo criativo e evolutivo e isso seguramente deveria ser a meta de todo o esforço humano. Depois surge uma nova mensagem, a chave de tudo aquilo que viria a seguir. Após a confissão de Pedro, Jesus reúne seus discípulos e declara publicamente: 'se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá, e quem perder sua vida por causa das boas novas a salvará' (Marcos 8.34-35). Essa declaração, mais frequentemente citada do que qualquer outra, reproduz a segunda expressão sobre a vida em João. 'O homem que ama sua vida perde-la-a, e o homem que odeia sua vida como é neste mundo, guardá-la-a para a vida eterna' (João 12.25).

Foi com esse desvencilhamento do ego que teve início a viagem do norte em direção a Jerusalém. Jesus viu claramente aquele momento como um clímax. O grupo que reunira para o ministério público estava agora sendo treinado para experimentar a vida 'no Reino', e reconhecer sua realidade e caráter. A mensagem fora levada tanto pelas viagens do Mestre como na missão dos seus apóstolos, iniciando entre os companheiros de Israel, enquanto 'ovelha perdida' do rebanho, estendendo-se ao centurião que possivelmente era um prosélito, e posteriormente à mulher sirofenícia. Os discípulos, treinados por símbolos e parábolas, verificavam que a pessoa de Jesus era para

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eles e para todo o gênero humano a perfeita 'imagem' do invisível, o Homem esperado que viria do céu, o Ungido de Deus. Chegara o momento de apresentar as boas novas ao povo de Deus em sua cidade de Jerusalém. Jesus subiu para lá na Páscoa; 'ele ia adiante deles e eles estavam pasmos, maravilhados, eles o seguiam atemorizados'(Marcos 10.32). Tratava-se de uma nova situação, de uma nova tarefa.

Em sua secreta viagem a Cafarnaum pela Galiléia, em pleno ministério, ele levantou o tema da hierarquia. 'O que vocês discutiam pelo caminho?' (Marcos 9.33-37). Mas eles se calaram porque pelo caminho tinham discutido entre si sobre qual deles era o maior. Assim ele lhes aplicou diretamente uma lição, 'o primeiro será o último e o servo de vocês todos', e demonstrou a vida familiar do Reino tomando uma criança nos braços e reivindicando que Deus, ele e a criança são um. E quando o João protestou que um homem que não pertencia à comunidade estava usando o nome de Jesus para exorcismo, ele lhe disse para que não interferisse; 'quem não está contra nós está do nosso lado' (Marcos 9.40-50). Assim ele os adverte contra a xenofobia que é uma máscara de orgulho e imputa inimizade ao outro para afiançar nossa própria separação dele. A generosidade aos outros sempre é recompensadora; colocar obstáculos no caminho dos outros sempre é danoso para nós mesmos. Devemos ser rápidos para descobrir o que é que nos atrapalha, pode muito bem ser nossa própria mão, pé ou olho; se quisermos crescer em plenitude de vida, a fonte do dano deve ser abandonada; deve ser purificada como que através do fogo. Temos o sal purificador da vida dentro de nós; preservemo-lo, e vivamos em paz.

Uma das principais preocupações de Jesus foi revelar Deus e nutrir a sensibilidade dos homens para com ele e dos homens entre si. Agora que começaram a viver, eles precisam de uma ajuda mais concreta. Eles têm que aprender como a nova relação pode ser expressa em casos concretos e quando

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enfrentam assuntos especiais. Devem ser examinados os velhos hábitos, questões governamentais e costumes: eles podem ser guias bem cegos ou até mesmo enganosos para o modo novo de vida.

Até este momento Jesus estava tão completamente preocupado com as pessoas que sua condição, ocupação, raça e sexo aparentemente pouco importava. Ele fora amigável com publicanos e pecadores, com um centurião e com um dirigente da sinagoga. Embora falasse com dureza aos escribas e fariseus, vítimas de orgulho, gente falsa, isto aparentemente não afetou suas relações pessoais com eles. Na realidade ele tinha prestado ou parecia prestar pouca atenção aos problemas da vida, às questões sociais e econômicas, civís e políticas, sexuais ou domésticas. Todavia tais perguntas são dirigidas a ele, o que ele tem a dizer?

Quando uma caravana aparentemente vinda da Galiléia, do lado oriental da Jordânia cruzou o rio e passou para o territorio sob a jurisdição de Herodes no domínio romano da Judéia, os fariseus o confrontaram com a questão do divórcio trazida à tona pela conduta de Herodes.(1) Tal divórcio era legal? Era naquele tempo, uma questão controversa como em nossos dias? Moisés falara sobre esse tema - mas o Torah manteve tais idéias? Com que significado? A resposta de Jesus é informada diferentemente em outra narrativa, desviada de sua forma primitiva. Jesus não tem nada a dizer sobre ritos de casamento e costumes ou consequentes restrições e regulamentos: todas estas coisas são o resultado da natureza torta do homem e de seus afetos truncados.

Ele reporta o fato básico, a dualidade e a congruidade dos sexos. Homem e mulher 'se pertencem mutuamente'; monogamia é a cuminação natural dessa interdependência; eles são 'uma só carne' e o ato que consuma tal união é final.

(1) Marcos 10.1-12. A versão expandida em Mateus 19.1-10 é mais legalista, aparentemente sanciona o divórcio para relacionamentos extra-matrimoniais, é mais ascética, porque Jesus reconhece que nem todos podem acatar sua palavra, e fala de pessoas que se tornam eunucos.

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Deus os uniu pelo ato da criação; ou seja, torna-se adultério se a união uma vez consumada é quebrada. Jesus, aqui pelo menos, não trata de opções alternativas, como paixões promíscuas, casuais, variáveis e relacionamentos sexuais, mas com o simples fato físico e espiritual que o criativo ato de procriação significa, algo santo, completamente independente de autorizações legais ou eclesiásticas. Quando defendemos votos de matrimônio e bênçãos da Igreja aparentemente assumimos que a pureza da perspectiva, da experiência e até mesmo da autenticidade do amor são coisas relativamente sem importância - e que a união pessoal só é validada pelo penhor legal. Voltaremos depois a este assunto: por enquanto ficamos com o que Jesus disse. O que é certamente importante, mesmo se também concordarmos que o padrão dele é inacessível.

Então seguiu-se o segundo incidente, sobre crianças e a tentativa dos discípulos em mante-las distante. 'A menos que você dê boas-vindas ao Reino como uma criança, você não entra nele'. Uma declaração que não tem nenhuma relação com batismo infantil: não é a idade nem, pelo menos eu acho, a inocência do concorrente que importa, mas a espontaneidade, a criatividade e a simplicidade com que você entra nele. Não há nenhum espaço no primeiro momento da experiência com Deus para cálculos ou argumentos. A paz e a presença de Deus estão, como disse Paulo, além de todo argumento ou compreensão lógica: aceitar isto deveria ser um ato de todo o ser. E, como os próximos incidentes irão revelar, tais coisas calam mais fundo do que obedecer regulamentos. O jovem que perguntou 'bom mestre, o que é que devo fazer para viver eternamente?' não apenas mereceu a repreensão 'apenas Deus é bom; toda a bondade é dele' - como também, incidentemente, não significou de forma alguma um repúdio à própria bondade ou divindade de Jesus; provavelmente totalmente o contrário. Ele também foi advertido de que a vida envolve uma singeleza de objetivos e uma plenitude de dedicação que aquele jovem, por causa da riqueza que possuia, ainda não atingira.

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Depois de suas advertências sobre riquezas e seu efeito corruptor, Pedro enfatizou que os discípulos tinham entregue tudo que possuiam. Jesus assegurou a ele que tal sacrifício teria sua própria recompensa mesmo sem abrogar o princípio primeiro-último. A seguir ele é confrontado com a grande ilustração do gosto pelo prestígio externado pela mãe de Tiago e João, seus seguidores mais íntimos. Seguramente seriam candidatos a estarem próximos a ele no Reino. Mas tal reivindicação não poderia ser concedida; não pode haver nenhuma barganha para qualquer privilégio, nem talvez para a fuga, no reino do amor de Deus; sua família não tem nenhuma criança predileta. Quando os outros discípulos, não sem razão, expressaram seu aborrecimento a esta tendencia ao nepotismo, Jesus disse a todos eles que a nova comunidade não tinha nada em comum com dinastias e hierarquias do mundo das nações; a grandeza é colocada em termos de ministério onde a prioridade é dada ao escravo. Realmente o Filho do Homem veio 'não para ser servido mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos' (Marcos 10.45). E assim foi, na estrada de Jericó, em Jerusalém e em sua Paixão.

São notáveis as mudanças de caráter na fase final do ministério de Jesus. Ele não apenas se torna mais explícito em sua apresentação da vida em Deus como também se torna mais claramente focado na pessoa de Jesus. Seu clamor à submissão, sua posição como Messias, sua relação especial com Deus - agora todas estas coisas se tornam manifestas. Os homens vinham ve-lo nesta relação; e perceberam não apenas um novo conceito da natureza de Deus como nosso Pai, mas também um novo símbolo, o perfeito Filho do homem, como forma de união com o divino. Nele, a adoração poderia ser transportada em amor: amor encarnado, o que significou para seus discípulos a única imagem adequada de Deus, uma vez que era apresentada em termos de nosso elemento mais elevado. O antropomorfismo sob tal perspectiva não poderia ser encarado como um rebaixamento da Deidade mas para nós, os homens, como sua única expressão apropriada. Vida eterna, vida em termos da terceira definição joanina,

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'o conhecimento do único Deus verdadeiro, e de Jesus Cristo, a quem ele enviou' (João 17.3).

Assim, quando atravessava Jericó, ele é saudado pelo cego Bartimeu: 'Jesus, filho de Davi', conforme descrito em Marcos (10.47-49). O mesmo ocorre quando, montado em um jumento, entra em Jerusalém, tanto os que iam à frente como os que seguiam atrás clamavam: 'Viva o Rei!', 'Bendito seja aquele que vem em nome do Senhor!'... 'Bendito seja o reino de nosso pai Davi!'. No dia seguinte, agindo em nome de Deus, ele esvaziou o mercado do Templo, expulsando os cambistas e os vendedores; as autoridades não ousaram interferir; pois as pessoas estavam atentas ao seu ensino. Foi no dia seguinte, quanto questionaram sua autoridade arrazoando que tanto ele como João Batista apenas expressavam um clamor humano, que ele revelou o grande desafio para o qual fora chamado. Ele o fez através de uma parábola, método bem familiar aos profetas e salmistas, e contou como Deus tinha disposto, plantado e equipado seu vinhedo na casa de Israel, arrendando-o e posteriormente enviando pessoas para que recolhessem sua quota parte. Enviou seus mensageiros um a um, sucessivamente, e cada um deles foi maltratado, agredido, ferido ou morto. Até que por fim, enviou seu próprio filho amado, pensando: 'eles irão respeitar meu filho'. E eles disseram: 'Ele vai ser o dono da propriedade quando o pai morrer. Vamos matá-lo, e então a propriedade será nossa'. Assim foi que eles o agarraram, mataram e jogaram o corpo fora da vinha. Que acham vocês que o dono fará quando souber o que aconteceu? Virá, matará todos eles, e dará a vinha a outros. Os líderes judaicos queriam prender Jesus naquele mesmo momento, por ele usar esta ilustração, pois sabiam que os lavradores maus da sua história eram eles. Porém tinham medo do povo; então desistiram da idéia e foram embora (Marcos 12.1-12).

Tudo que eles poderiam fazer era tentar desacreditá-lo. Procuraram confundi-lo com questões referentes ao pagamento de impostos - com o intuito de incriminá-lo pela sua resposta - e com questões sobre ressurreição e relações subseqüentes. Um inquiridor sincero perguntou-lhe sobre a importancia comparativa dos vários mandamentos da

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lei. Ele respondeu, como sempre, sem hesitação ou evasão, e então repetiu de uma forma bem simples o desafio de sua parábola: 'O próprio Davi chama-lhe Senhor. Como, pois, pode ser seu filho?'. (Marcos 12.35-37). A declaração em Mateus (22.41-45) traz uma forma mais direta ainda: 'O que acha você do Cristo? De quem ele é filho?'. O dia termina com uma advertência contra o exibicionismo dos religiosos e um elogio à generosidade dos pobres. A hierarquia dos saduceus, nula em apoio popular, revela-se comprometida com o regime romano, contrapõe suas doutrinas às boas novas,(1) e planeja juntamente com os rabinos uma forma de prendê-lo e matá-lo.

Ele não tinha nenhuma dúvida a respeito disso, e apenas esperava o desenrolar dos acontecimentos. Parecia claro que o desfecho dramático não poderia ser contido nem pela luta nem pela força; há muito tempo ele tinha previsto o perigo. Mas como sempre, ele aceitou o que haveria de vir. Os dois dias seguintes são marcados pelas histórias de duas ceias: uma em Betânia na casa de Simão, o leproso, com o belo incidente da mulher com seu frasco de perfume, 'um unguento preparado para seu enterro'; e a outra no andar superior, talvez na casa da mãe de Marcos em Jerusalém onde o pão e o vinho do novo pacto são santificados e compartilhados. Depois veio o Getsêmani.

Eis que a crise chega - a crise que Jesus previra e se preparava para enfrentar juntamente com seus discípulos - a crise que defronta cada homem quando a vida com Deus no mundo revela sua impossibilidade. O registro que temos, brevemente traçado em Marcos, esboça uma vida com Deus no Reino, uma vida

(1) ambos comprovados por sua resposta (Marcos 12.18-27) e pela ressurreição de Lázaro (João 11.45-53).

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consistente na multiplicidade de suas relações, e abundante em todas as ocasiões em que foi testada. Tanto em sua plenitude como em sua dedicação ela se revela completa, o caminho por onde o homem deve andar. Ele soluciona os problemas e revela a universalidade e a praticabilidade do viver em Deus; tornando convictos os que por ele andam e o soldaram em uma comunidade. Não se tratava da criação de uma redoma utópica de sol e felicidade - mas de uma situação onde a luz do amor e da alegria eram ricamente experimentadas. Um caminho que seria trilhado no mundo tal qual o conhecemos, um mundo de homens e mulheres egoístas, todos eles imperfeitos e alguns deles maldosos. Por enquanto esse ambiente, onde bons e ruins viveriam juntos como trigo e palha, seria um possível ambiente para o Reino. As sementes seriam lançadas com algumas delas arraigando, crescendo e frutificando. Mas chegara o tempo em que o Caminho parecia finalmente bloqueado, o tempo em que cada um de nós se depara com o fato concreto da morte que de forma inescapável nos confronta, quando somos compelidos a perceber que o espaço onde nos fixamos está cessando para nós, e que todas nossas ligações, nossas relações terrestres pelas quais Deus revelou-se, chega a um fim. Jesus e os homens e mulheres ao seu redor serão separados; já não mais poderão ser expressas as esperanças e tarefas particulares que uniram cada um deles em seu convívio familiar; chegou a hora da partida - ele tem que ir e eles ficarão. Mesmo que esteja seguro de que pelo menos com alguns deles um afeto imortal foi estabelecido, como essas coisas podem ser mantidas quando toda sua expressão terrestre desaparece?

Em todo caso para os discípulos - e realmente para muitos outros, inclusive Saulo de Tarso - o evento que viria em seguida seria catastrófico. Era o fim do seu mundo, o momento da proclamação da sentença sobre os tradicionais sistemas de moralidade legalizada, de servidão e de individualismo, de todas as formas de associação humana não baseadas em relações pessoais e mútua

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solidariedade. Jesus viera em carne e osso, exatamente como predito pelos profetas. Nele Deus 'visitou seu povo'. A esperança aguardada por Israel e por todas as nações se cumprira. E o resultado foi o Calvário. Os melhores representantes de seus contemporâneos, as duas mais respeitadas instituições, o Sinédrio do povo de Deus estabelecido no sacerdócio e no rabinato, e a justiça imperial de Roma estabelecida na pessoa de seu procurador, ambos combinaram crucificar o Cristo. Julgado pelos seus próprios padrões, ele não passava de mais um revolucionário iludido enganando seus seguidores e que poderia envolver a terra santa em matança e destruição. Bastaria matá-lo e deixar o tempo passar. Mas, para os discípulos que o conheceram, que o viram e que acreditaram nele, aquela atitude significava simplesmente a traição e a ruína de Israel, o fim daquele mundo, o nascimento de um modo novo de vida, um novo amor os uniria, uma nova comunidade os integraria, uma nova e completa perspectiva e conhecimento os inspiraria. Da mesma forma que receberam a Páscoa como garantia de sua presença viva, e sua Ascensão como conhecimento de sua condição divina, da mesma forma eles encontraram no Pentecostes a vida eterna que lhes foi dada na vida abundante de seu ministério, e a vida pela morte do ego em sua crucificação. Para eles, como para o mundo, tratava-se de uma nova civilização; a velha tinha morrido. Esse foi o significado do Gethsemane.

Talvez, muito freqüentemente nossa interpretação da sua Paixão seja colocada em termos do seu sofrimento, da sua completa tortura e do desgosto que envolveu aquela contínua agonia. Seguramente o sofrimento advindo de sua escolha e submissão esteve intimamente ligado aos seus discípulos, o choque de sua prisão, a vergonha de sua traição, a decepção dos seus sonhos, a perda do seu amor, o fim do seu contato, o triunfo dos seus inimigos, o fracasso de sua missão - a agonia, inconsolada pela sua presença ou por sua fé em Deus, tudo isso teve um gosto amargo tanto para ele como para seus discípulos, o Gethsemane é a evidência disto; e quando o último

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conflito de lealdades se resolveu, 'eu quero a sua vontade e não a minha',(1) este foi o veredito.

No que diz respeito a detalhes como o julgamento, os dados relativos à Páscoa, a sequencia, a legalidade, a amplitude dos poderes constitucionais do Sinédrio sob o governo romano, o interlúdio com Herodes, o caráter e os motivos de Pilatos, todas estas coisas não tem nenhum interesse especial nesse momento. De qualquer forma, na medida em que Jesus resolve enfrentar a situação mesmo sem ter nenhuma condição de desafiar a autoridade do estado, os modernos problemas altamente complexos da relação entre a cristandade e os chamados governos seculares cristãos não vem à tona. Quanto à fascinante e importante questão envolvendo a atitude dos fariseus e de outros judeus que tinham um especial interesse em atacar Jesus, discutiremos mais adiante. Por enquanto basta notar que as autoridades não conseguiram encontrar bases secundárias para condená-lo, tendo que deter-se na questão básica. 'Você é o Messias, Filho de Deus?'. Em resposta Jesus afirmou não só sua condição de Messias como também a explicou citando Daniel (7.13) no advento do Filho do Homem. Acabaram condenando-o naquela mesma noite com base nessa acusação na sessão oficial do Sinédrio, a formulação básica de sua missão, em seguida o enviaram ao Procurador - a acusação foi modificada pelo tribunal romano pela reivindicação de reazela, portanto, traição contra o Imperador. O escárnio dos soldados e a inscrição na cruz confirma esse veredito.

A crucificação, morte considerada pelos judeus como especialmente amaldiçoada, era a penalidade aplicada nestes casos. Foi na própria cruz, como os registros e a experiência madura da cristandade concordam afirmar, que a boa notícia alcançou seu pleno significado: o 'mistério', o

(1) Marcos 14.36. Acho que essas palavras foram preservadas para nós pelo rapaz que vestia o 'pano de linho' (Marcos 14.51-52). Ele bem pode ter sido o evangelista que celebrou a Última Ceia na casa de sua mãe: cf. Atos 12.12.

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segredo do paradoxo de vida com Deus no mundo, é revelado. Até aqui vimos isto em termos da relação entre Jesus com seu ambiente. Ele, diferentemente de todos os filhos dos homens, viveu eternamente, ou seja, em uma união irrompível com o divino, do Filho com o Pai. Ele também viveu neste mundo, tanto no tempo como no espaço, de individualidades multiformes. Viveu como um homem entre homens, e mostrou como unidades diversas poderiam ser erguidas acima da contraditória normalidade entre o egoísmo e o altruísmo das suas próprias naturezas. Eis aqui a mutualidade, a vida reconciliada, o Caminho da nova e suprema felicidade propiciada pela aceitação de Jesus na qualidade do próprio Deus. Trata-se de amor - mas amor que supera nossas limitações de exploração e de sentimentalismo, amor que nem domina nem idealiza, amor completamente livre do sadismo e do masoquismo.

Em nós, e em Jesus, há lugar tanto para a auto-realização como para a auto-rendição: motivos completamente egoísticos e altruísticos não devem ser materializados pela supressão de um ou de outro mas pela integração entre ambos. Unidade e diversidade, o velho problema da unidade e da pluralidade que era o assunto básico da filosofia grega, deve ser solucionado. A história da evolução, do átomo para a molécula, da molécula para a célula, do unicelular para o multicelular, provê séries de exemplos do mesmo processo, pelo menos no nível humano, conforme sugerido por Thelhard de Chardin naquilo que chama de 'hominização', uma realização semelhante é atingível.

Aqui, a grande frase registrada por Marcos, o grito de desamparo 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonou?', nos revela o momento em que a tensão é quebrada. A expressão da mais completa solidão, a rendição da última garantia da presença divina; e assim o meio para o endosso do triunfo final. Aqui cumpre-se o paradoxo de vida perdida e recuperada, da declaração de Jesus freqüentemente repetida nos registros de sua vida. A morte é, ou parece ser, o isolamento absoluto do ego, e portanto, 'o portão

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da vida', a liberação de uma relação de amor onde egoísmo e altruísmo são uma e a mesma coisa.

Essa mesma frase é uma clara referência ao poema profético do Salmo 22 onde um coração quebrantado aparentemente derrotado é envolvido pelo esplendor e plenitude da vida eterna. Na tradicional sucessão das Sete Palavras da Cruz, organizadas nos Evangelhos como um padrão perfeito, seu conjunto é visto como a dramática apresentação e expressão do amor personificado no crucificado. Aqui está o amor que perdoa, que suporta, que une; que dá tudo e que dando recebe; que atrai, tem sucesso, e se consuma. É a crise dramática e o resumo do ministério de Jesus, de uma vida que seus inimigos julgavam ter chegado ao fim com a Cruz mas onde de fato a Cruz foi o ponto central. A vida encontrou sua plenitude no Pentecostes, a plenitude que ainda opera externamente na comunidade santificada, seu Corpo ressurreto.

Embora nem o Evangelho de Marcos nem a fonte comum a Mateus e Lucas dêem detalhes das aparições, nada é mais certo de que logo após o enterro seus discípulos não tinham nenhuma dúvida de que Jesus estava vivo e com eles. Em uma época quando não havia nenhum idioma que pudesse distinguir experiências físicas de psíquicas, e em um assunto sem precedente é difícil determinarmos os eventos precisos que estabeleceram tal convicção. Mas esses eventos mudaram inteiramente a perspectiva e o caráter daquelas pessoas, e repetido com um forte grau de semelhança ao longo da história na experiência de São Paulo a caminho de Damasco. Não estamos aqui interessados em descrever detalhadamente tais eventos, e muito menos a ocasião que denominamos de Ascensão quando aparentemente foi manifesto o estado divino de Jesus. Basta-nos a narrativa de João das três ocasiões que tipificaram tais eventos, a suficiência de Jesus em conhecer a solidão de

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um coração quebrantado, a confusão da derrota, e as dúvidas dos cépticos (João 20.11-29).

O que é mais imediatamente relevante é a manifestação no Pentecostes de um novo tipo de comunidade humana, um companheirismo do qual se dizia ser 'um só na mente e no coração' (Atos 4.32) e por São Paulo que eles eram 'o corpo único de Cristo e cada um de seus membros' (1 Cor. 12.27). Neste corpo homens e mulheres, compartilhando da mesma lealdade, dedicados ao serviço comum, e unidos pelo amor mútuo, alcançaram uma solidariedade orgânica que os habilitava individual e coletivamente na expressão da plenitude do modo de Cristo - ou, melhor, em provê-lo de um instrumento pelo qual sua vontade poderia se cumprir. Símbolo e instrumento assim criados realmente eram o produto final de seu ministério.

Este realmente foi, desde o princípio, seu claro objetivo. Mesmo que toda a fonte e a história do Evangelho comum tanto a Mateus como a Lucas e conhecida pelos estudiosos como Q, possa conter pequenas dúvidas compartilhadas por Marcos (de onde alguns trechos foram compilados) que ostenta o status dos registros seguramente mais autênticos que possuímos. Nada é mais esclarecedor do que a história da Tentação. É fácil de considerar os três testes como os que o afetaram mais intensamente. Ele usará sua vocação para atingir conforto e segurança, poder e controle, ou maravilha e adoração? Sua obra está principalmente dentro do campo econômico, político ou religioso? Mas para alguém que enfrentou o chamado e a missão de seu batismo, e o comprometimento não funcionar para si mas para Deus e para o seu próximo, seguramente há uma questão maior e mais evidente. Havia três métodos principais pelos quais uma comunidade poderia ser construída, três tipos de instituições apropriadas ao avanço humano. Panem et circenses, pão e circo, segurança e bem-estar social - no que diz respeito a uma aldeia sob o jugo estrangeiro a primeira tarefa seria elevar o

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padrão de vida. Todo o Império estava familiarizado com sociedades amigáveis, guildas muradas e clubes de elite: apenas um século depois os magistrados amigavelmente se dispuseram autorizar a Igreja sob esta categoria. Mas 'o pão não saciará a alma dos homens': um ideal econômico nunca é completamente satisfeito. Tu regere imperio populos,(1) significava legiões marchando e estabelecendo um império que deveria dominar e unificar os povos. Tal método era totalmente familiar: tinha sido opressivamente usado mas para a paz romana. Não poderia o Filho de Davi preencher as expectativas populares, expelindo seus senhores pagãos, e estabelecendo, mediante uma certa dose de força, sua própria supremacia? 'Adore somente ao Senhor Deus: Obedeça somente a ele' - nenhuma revolução política atingiria a vontade e o jeito de Deus.

'O Messias descerá de céu nos Tribunais do Templo', assim eles tinham predito, e assim tinha sido prometido. 'Deus enviará seus anjos para impedirem que se machuque'... 'eles impedirão você de despedaçar-se mas pedras lá embaixo'. Seguramente era necessário confiar em Deus, para o cumprimento de sua palavra, para vindicar sua missão. 'Dê-nos um sinal' foi a constante petição dos seus ouvintes. Ao provocar o temor e a adoração do seu povo, exibindo-lhes recursos sobrenaturais - Israel responderia a tal convocação e Deus cumpriria sua palavras e responderia às espectativas do povo. 'Não se deve impor ao Senhor Deus uma prova absurda!'

Assim foram rejeitados os três tipos de instituição e os três conceitos de Deus como Provedor Universal, como Rei de Reis, e Provedor de Milagres, todos eles foram rejeitados como inadequados e falsos. O que permaneceu? O modo paternal e familiar, o conceito do amor criativo e que a todos abarca, a oração do 'Pai Nosso' e a comunidade santificada de seus filhos. Assim foi fixado o curso em direção ao Calvário e ao Pentecostes.

(1) 'para ter domínio sobre os povos' (Virgilio).

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IV - O Desenvolvimento da Ética em Paulo

O PRIMEIRO IMPACTO DE JESUS

NO que diz respeito a ética cristã, especialmente em sua forma moderna e nos círculos protestantes, é ao ensino de São Paulo para onde mais particularmente as atenções são dirigidas. Em termos gerais, Lutero, Calvino, e em menor grau os demais Reformadores, não apenas consideraram o Apóstolo dos Gentios o protagonista na luta contra o legalismo e o tradicionalismo mas também como o fundador de uma elaborada e sistematizada teologia que poderia ser aplicada prontamente às condições dos seus conflitos com o Catolicismo medieval. Ele lhes abasteceu tanto de exemplos de crítica destrutiva como de novas posições pelas quais o que eles rejeitavam pudesse ser substituído. Tal atitude foi basicamente válida. Jesus tinha proclamado e iniciado o que era claramente um novo modo de vida, realmente arraigado no Velho Testamento mas emergindo fora dele, inevitavelmente pela atitude de seus representantes que se desviaram do espírito de seus ensinamentos. São Paulo, uma vez convencido da verdade e do poder das boas notícias, dedicou toda sua vida expressando seu significado em termos de uma abundante exposição doutrinária apropriada tanto à teologia quanto à ética. Entretanto, a dificuldade era, e ainda é, que lidando com cartas escritas em épocas diferentes e em situações concretas e por um homem de mente singularmente alerta e em rápido desenvolvimento, os intérpretes de Paulo assumiram todo o seu trabalho como semelhante, consistente e sistemático e se esforçaram para amalgamar todo elemento de qualquer uma de suas partes em um único e rígido vigamento. Fazendo assim eles firmaram-se muito freqüentemente em frases às quais imputaram completos, grosseiros e muitas vezes

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evidentes erros de interpretação; não deram qualquer atenção às mudanças de opinião mesmo quando elas eram precisamente determinadas e facilmente delineadas; além disso dificilmente reconheceram a diferença que ele próprio repetidamente enfatizava com relação a idéias casuais e idéias ad hoc, interpretações especulativas, injunções particulares e princípios essenciais, ou quando prontamente admitia que pretendia fundamentalmente, como veremos mais adiante, um destacado desenvolvimento envolvendo tanto a disposição para o descarte de velhas convenções como um profundo desenvolvimento e renovação dos conceitos. Ele aprendeu pela experiência, e sua experiencia foi ampla e vívida.

Não é necessário aqui examinar em detalhes o caráter de seu chamado "paulinismo" ou a extensão que isso oferece à paródia do pleno desenvolvimento da fé do apóstolo. Nossa preocupação é continuar o exame do impacto de Jesus sobre seus contemporâneos e do que as "boas novas" significaram para eles. Evidentemente nenhum dos registros que chegaram até nós é mais importante ou foi mais influente do que as cartas que São Paulo escreveu no curso de sua longa e íngreme jornada. Tais registros são de valor extremo para nossos propósitos porque, ao contrário de boa parte da literatura epistolar do período, trata-se de genuínas cartas escritas, até mesmo no caso da carta aos Romanos, que se referia a uma situação definida relativa à preocupação e interesse imediatos do escritor. Afinal, o mesmo está lidando com relatórios, pedidos e planos específicos, não se trata de composições produzidas para serem publicadas. Tais escritos refletem seus próprios humores e pensamentos do momento, e são largamente independentes uns dos outros. Assim, eles não objetivam um estudo consistente nem pelo conteúdo nem pelo estilo; ele simplesmente escreve suas cartas sem maiores preocupações. Para um leitor cuidadoso é inevitável a descoberta de um claro desenvolvimento tanto no método como no significado de sua mensagem: assim que organizamos suas cartas mais ou menos na sequencia em que foram escritas, descobrimos claramente

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sucessivas, frequentes e importantes mudanças não apenas de ênfase mas também de interpretação. A última coisa que pretendia era apresentar um único e estático sistema: podemos ver não apenas pontos de vista variados como também desenvolvimentos quase revolucionários na medida que o acompanhamos seu progresso.

O resultado é mais inteligível e mais satisfatório, pelo menos para mim, se acompanharmos a linha histórica das seções sobre São Paulo em Atos. Sabe-se que um companheiro que veio a conhecer apenas em Samotace, que permaneceu com ele durante pouco tempo até sua prisão na Cesaréia, não teria conhecimento nem de suas cartas nem dos problemas abordados por elas; sabe-se também que tal companheiro, Lucas, era um grego cujo idioma e mentalidade não ajudaram em nada a sua compreensão da profundiade e da intensidade do temperamento de seu amigo e de seus principais argumentos rabínicos; sabe-se que a história narrada por Lucas abordando os procedimentos de São Paulo com a Igreja de Jerusalém não são facilmente reconciliáveis com aquela de Gálatas, onde a abordagem do falar em línguas do Pentecoste tem uma conceituação bem diferenciada na carta aos Coríntios; Se os cépticos questionam a confiabilidade de tudo aquilo que é registrado em Atos, nossa única evidência contemporânea, o fazem em bases inadequadas. É um equívoco inferir que, pelo autor incorrer em erro sobre Theudas ou Lysanias de Abilene, ou ter escrito uma ou duas frases onde sugere familiaridade com Josephus (em um tempo quando bibiliotecas de consulta não estavam disponíveis e quando as provas orais não eram necessariamente mais exatas do que é em nossos dias), ele não pode ser confiável mesmo quando declara que Saulo era de Tarso ou que tinha sentado aos pés de Gamaliel.

Aquele Saulo era um judeu da Dispersão, falando o grego comum daquela época, familiarizado com sua vida social, e até certo ponto com suas idéias e literatura; Tarso, por aquele tempo, era um núcleo de contato entre helenos e judeus e a principal

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fonte de filosofia estóica, exatamente a espécie de local onde um homem como Saulo se sentiria em casa; seus pais em uma posição boa o suficiente para enviar seu filho para ser treinado como rabino em Jerusalém e possuir a cidadania romana; todas essas questões são confirmadas tanto em Atos como nas Epístolas. As próprias reivindicações de Saulo - «da semente de Abraão, da tribo de Benjamim, um Hebreu de timbre hebráico, um fervoroso observador da Lei, e um jovem de grande habilidade» - não apenas se orgulhava de sua linhagem como também era estimado pelos seus dons. Ele era dotado de uma boa memória, uma mente alerta e vívida, e uma evidente habilidade para traduzir idéias em ação. Ele também era sensível tanto à impressões como à crítica, mas avesso à introspecções insalubres ou ciúme, imaginativo, um tanto quanto místico e dotado de um ágil conhecimento da fé e da prática judia, era também um homem capaz de um julgamento rápido e decisivo, de planejamento adequado, e de enérgicos esforços para tornar seus sonhos realidade. O fato dele ser ao mesmo tempo Paulo o visionário, e Paulo o valoroso, creditou-lhe não apenas a efetiva propagação do cristianismo tal qual ocorreu, mas também sua origem, revelando o singular testemunho do poder de seu gênio, muitas vezes mal compreendido pelo seus intérpretes. Ele mesmo se declara escravo e apóstolo de Cristo e completamente dependente de seu Mestre, esforçando-se para que seu próprio pensamento e vida estejam «agasalhados com Cristo em Deus» . A este fim ele dedica toda sua versatilidade, usando de todos os materiais disponíveis, do circo, do exército, das escolas, da «religião mística» , ou das escrituras, desde que iluminasse ou enfatizasse o modo de ser de seu Mestre. Quando os atenienses o chamaram de «sonhador» (Atos 17.18) eles tinham pouca base para tal escárnio; os esforços que ele dedicou, a plenitude de seu significado e a riqueza de suas imagens podem ser encontrados em qualquer dos seus comentaristas.

Aquele Saulo morava em Jerusalém durante o ministério de

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Jesus e de fato o tinha visto como parece claro quando explicita «ainda que tenhamos conhecido a Cristo em sua vida corpórea» (2 Cor. 5.16),(1) algo não apenas reforçado por todas suas atitudes antes e depois da Crucificação, como também pela sua clara avaliação da qualidade e da mensagem do Mestre. Como muitos do fariseus, entre os quais já se destacava com evidente proeminecia, ele foi atraído obviamente pelos relatórios sobre Jesus e, na qualidade de alguém que esperava a vinda do Messias, e pronto examinar esses relatórios com simpatia. Mas ele compartilhou o dilema de seus pares. Em muitos aspectos eles estavam prontos para reconhecer Jesus e até mesmo segui-lo. Mas ele estava não apenas desconfiado de suas críticas a determinadas ordenanças, às regras do sábado sagrado, do jejum, da própria lei e da tradição, mas também a eles, os rabinos e membros da seita, que exitavam em tomar rapidamente qualquer decisão. Eles enviaram uma delegação para observá-lo na Galiléia; e não desperdiçaram nenhuma oportunidade para questioná-lo, às vezes com sutileza, às vezes com simpatia e admiração. Quando os saduceus planejaram prendê-lo e acusá-lo, eles bem que podem ter sentido um certo alívio uma vez que o assunto logo seria decidido. O resultado de tudo era óbvio: uma vez acusado de traição, se condenado, seria crucificado, «pendurado no madeiro» , uma morte especialmente amaldiçoada pela Lei ( Deut. 21.23). Se Jesus fosse de Deus, ele seguramente seria salvo: Deus não o deixaria sofrer danação: ele seria salvo e retirado da cruz. Talvez muitos dos seus discípulos, como frequentemente foi sugerido pelo próprio Judas Escariotes, podem ter compartilhado desta convicção. Calçou os insultos dos acusadores dele a Calvário e o desafio dos rabinos «Seu Messias! Seu Rei de Israel! Desça da Cruz e nos creremos

(1) Este é o significado claro do grego, e se adequa tanto com as palavras que a precedem como com a passagem que vem a seguir. Os esforços de Molfatt e de outros para dar um significado diferente como «nós soubemos» é desnecessario e incompatível com o uso regular de São Paulo.

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em você!!» (Marcos 15.32), e persistiu até o fim a idéias de que Elias apareceria e o salvaria. O assunto em toda sua magnitude estava claro para Saulo, e o veredicto era imediatamente decisivo. Deus não interviera: Jesus era amaldiçoado, sua reivindicação era falsa: seus seguidores deveriam ser destruídos. O vigor da perseguição que lançada sobre os discípulos expressa a amargura de sua decepção.

Ele deveria ter ficado bastante abalado com o martírio de Estêvão, entretanto o efeito imediato foi intensificar ainda mais a violência de sua agressão: um erro que poderia produzir tal heroísmo deveria ser contido a todo custo. Daí a súbita e desgastante experiência da presença e da atração de Jesus no caminho de Damasco. (Em suas próprias palavras, veja 1 Cor. 15.8.) a conversão foi imediata; agora podemos entender mais completamente sua psicologia e seu estado de espírito. Jesus não fora derrotado mas vindicado, não era um impostor de Galileia mas o ungido de Deus: o veredicto contra ele era falso, a maldição foi desafiada, a lei que decretou a maldição fora quebrada e repudiada. Sua recuperação do choque ofuscante, sua aceitação por Ananias, sua pregação de Jesus como o Messias, sua fuga de Aretas e da cidade (2 Cor. 11.32-33; cf. Atos 9.25), e seu exílio na Arábia, tudo isso confirma sua convicção do grau da mudança que deveria ocorrer, e de sua própria vocação especial de proclamar as boas notícias para o mundo pagão, onde teria a oportunidade de desenvolver seu ponto de vista do significado do modo de vida ensinado e vivido por Jesus Cristo. Três amos depois ele visitou Jerusalém e conheceu São Pedro e Tiago, o irmão do Senhor, aparentemente com a ajuda de Barnabás (cf. o Gal. 1.18-20; Atos 9.26-30). Quinze dias depois ele velejou de Cesarea para Tarso, onde se uniu a Barnabás que o levou a Antioquia onde passaram todo um ano. Quatorze anos depois ele novamente subiu para Jerusalém com Barnabás e Tito um grego uncircunciso, para falar

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sobre sua missão para com os Gentios (Gal. 2.1-3). Isto despertou «controvérsia e muita discussão» mas Pedro, Tiago e João deram-lhes as mãos, e os encorajaram a continuar a pregação aos não-judeus, a única coisa sugerida por eles foi que deveriam sempre se lembrar de ajudar os pobres, presumivelmente os pobres da igreja mãe, coisa que se prontificaram a fazer. Se esta visita é a mencionada em Atos 11.30 e 12.25 (quando o dois apóstolos levaram uma elevada oferta coletada na Antioquia especialmente para os doentes e pobres de Jerusalém), ou representa algo parecido com um encontro ou Concílio, do qual participaram Paulo, Barnabás e outros, depois do seu retorno da viagem do Chipre e do Sul da Galácia descrita em Atos 15.1-35, trata-se de um assunto bastante disputado. Isso é altamente importante para o datamento da carta aos Gálatas e para a precisão histórica dos documentos. Para mim eu não vejo nenhuma razão por que a visita descrita em Gálatas não tenha sido a segunda que fez com Tito. Nesse caso, Gálatas teria sido escrita logo depois do final da viagem e antes do Concílio de Atos 15. Também parece possível que a Epístola de Tiago que, como eu acho, claramente se refere aos Gálatas, também tenha sido escrita antes do Concílio. Mas a questão é difícil e controversa, e para nosso propósito presente não muito relevante.

De qualquer forma, seja lá qual tenha sido a data em que foi escrita, a Epístola aos Gálatas, naturalmente dirigidas ao povo de Iconium, Lystra e Derbe, é a mais primitiva, consideravelmente a mais primitiva, das suas cartas que sobreviveram, realmente, indica sua apresentação da fé, seu estilo e conteúdo, e a reflexão do seu temperamento, e sua suficiente perspectiva. Há algumas notáveis semelhanças verbais entre Gálatas e Romanos que são explicadas pelo simples fato de que nestes casos ele abrange um campo semelhante, ele repete um argumento familiar e que considera fundamental, todo o problema da relação entre lei e graça, a velha e a nova moral. Qualquer um que constantemente é desafiado para falar sobre um único tema saberá certamente quão inevitaveis são certas sequencias estereotipadas,

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frases e palavras chaves. Em tais casos, um intervalo de dez anos não significa que o velho vocabulário seja superado.

O caráter da Epístola pode ser visto até mesmo em seus parágrafos de abertura. Há um brusco e quase violento mergulho após a abertura formal na controvérsia despertada por aqueles que tinham visitado seus novos convertidos, questionando sua autoridade e incitando a necessidade da aceitação da tradição judia deste a circuncisão até a Lei. Seguramente trata-se de texto produzido por um homem jovem ferido pelas imputações pessoais lançadas contra sua pessoa, transtornado pela aparente inconstância dos seus seguidores, e desenfreado na amargura de suas reclamações ou na violência de suas denúncias. Esta é a reação natural de um convertido capaz mas relativamente recente que ainda está comovido pela novidade de sua causa e conscio do seu poder em apresentá-la. Ele pode descrever suas anotaçõe e suas aventuras com uma legítima satisfação, pode denunciar com irritação e pode desprezar a malignidade dos seus detratores e obviamente ainda pode ter que aprender a «conter seus ímpetos» ou lidar ternamente com seus leitores. Ele era um jovem «impetuoso» quando respondeu aos seus oponentes na Galácia.

A crueza do estilo e da linguagem de sua censura estão de acordo com a lógica envolvente e as analogias rabínicas de sua argumentação. Como um jovem e inteligente advogado elas são muito sutis para convencer e muito artificiais para parecer suficientemente genuínas. Deslises verbais como a distinção entre sementes e semear, ou a desnorteada declaração sobre um mediador, diminuindo a força de seu caso; e analogias como aquela entre Hagar e o Monte Sinai inspiram desconfiança. A comparação com qualquer outra de suas cartas mostra quão distante ele estava da superação deste método de apresentar seus casos - entretanto na realidade ele nunca mostrou muitos sinais de imaginação criativa na escolha dos seus exemplos ilustrativos.

A mesma conclusão é estabelecida quando expunha

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algo que sempre adotava como tema principal, o significado da Cruz. Esta fase do pensamento de Paulo é bastante simples e obviamente afetada pelo seu próprio dilema. Cristo aceitando a morte amaldiçoada e passando por cima da sentença «Amaldiçoado é todo aquele que é dependurado no madeiro» quebrou a maldição, tornou-a inóqua, e assim nos livrou da escravização da Lei. Não mais podemos esperar que a Lei nos salve e nos conduza até Deus. Agora outro caminho se abriu diante de nós, nossa fé em Cristo pela qual podemos nos tornar íntegros, coisa que nunca poderíamos alcançar através de Lei. Assim ele achou a pista para a nova moral em nossa resposta ao presente de Cristo. Mas Paulo ainda não foi a fundo nessa questão: justificação ainda é uma palavra ilustrada pela fé de Abraão em Deus (Gen. 15.6), e pelo contraste entre esta fé e a «obra» da Lei. Ele percebeu a diferença, manifeste em Jesus, entre ética pessoa e legal, a vida de relação constante com Deus, vida regulada e definida por deveres precisos de obediência à sua vontade. Mas as profundas mudanças que estão por tráz desse contraste, de nosso conceito da natureza de Deus e da qualidade de nosso próprio desenvolvimento ainda não estavam evidentes para ele. A grande descoberta que ele fez em Corinto, a psicologia e a cosmologia exposta em Romanos, ainda estão no futuro. Ele ainda pesca em aguas rasas: e começa sua dura jornada em direção a águas profundas.

Embora essa carta esteja aberta a críticas quando comparada com seus trabalhos posteriores, plenos de experiência e completamente amadurecidos, é notável enquanto primeira composição da apologética Cristã! Tem paixão, qualidade essencial e completamente vital, criativa e duradoura. Seu autor se preocupa intensamente, está completamente envolvido nos temas descritos, e não tem nenhum medo ou vergonha em revelar a intensidade de seus sentimentos. Se há rastros de orgulho e auto-comiseração, tais coisas sempre são superadas e subordinadas pelo seu senso de dedicação; é sua vocação, que precede seu eu, que o provê e incentiva seus esforços

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e argumentações.

Ele suporta, e pode proclamar suportar, o stigmata de Jesus. Em meio às controvérsias e debates desta primeira carta, o gênio essencial do Apóstolo se revela em três declarações de surpreendente perspicácia e esplendor - três das expressões vocais mais notáveis de sua vida - três revelações que na realidade resumem os três elementos essenciais da ética Cristã: o centro em Deus, a universalidade, e a perfeição moral da fé. Tais declarações são as mais notáveis porque cada uma delas se destaca em vivo contraste com a tensa emoção e o pensamento trabalhado no resto da carta. São flashes súbitos de instantânea e brilhante inspiração, o tipo de consciência direta que é mais característica na arte que na ciência, mas que provavelmente ainda é o ambiente e instrumento de todas as grandes descobertas. Não se trata de uma realização do intelecto lógico, mas a fonte de seu mais rico material. Representa o momento de revelação quando períodos de especulação e experiência, tensão e ansiedade prévia, se resolvem. É o ponto onde revelação e descoberta se fundem, tornando-se vitais e criativos. Nele o ser do iniciado é integralmente envolvido, o mistério é aberto e o segredo descoberto. Aqui tais expressões são essenciais ao modo cristão de vida.

Trata-se do primeiro registro de suas relações com os líderes de igreja em Jerusalém e depois com Pedro por causa de sua conduta equivocada na Antioquia em suas argumentações sobre as obras da lei ou a fé em Cristo como meio de justificação. A posição conclusiva disto tudo é resumida por ele mesmo. «Porque eu, pela lei morri para a lei, para que pudesse viver para Deus» (o Gal. 2.19). Então ele rompe na tremenda declaração: «Eu já fui crucificado com Cristo: eu próprio não vivo mais, e sim é Cristo que vive em mim. E a vida genuína que tenho agora dentro deste corpo é resultado da minha confiança no Filho de Deus, o qual me amou e a Si mesmo Se entregou por mim» .

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Aqui firma o fato central e único da experiência cristã de que nossa resposta para Cristo não como o de aluno para professor, de empregado para patrão, ou até mesmo de amigo para amigo. Fé não é concordância intelectual, obediência prática ou resposta afetuosa: é comprometimento total, uma real e íntegra união ao nível da realização pessoal. O amor em toda sua plenitude; a unidade pela qual nossos amores humanos aspiram no horizonte, que mesmo não podendo permanente e perfeitamente ser atingida, é realizada. Cristo vive em nós; nós somos transformados de dentro para fora: nós estamos nele. Isto é, naturalmente, a convicção chave de São Paulo, o en Christo que Deissmann nos ensinou a ver como a causa principal da plena maturação das realizações do Apóstolo. Vida «em Cristo» é a plenitude do impacto do ministério de Jesus: é a meta do processo criativo, o segredo de nossa lida humana. O desenvolvimento subseqüente de Paulo é o crescimento desta experiência em sua pessoa: aqueles que viram e que conheceram indivíduos que manifestaram um semelhante modo de vida centrado em Cristo, reconhecerá seu valor sem igual.

Além destas expressões desenvolve também a concepção do conjunto do corpo de Cristo no qual somos admitidos mediante a fé e pelo qual ela se torna efetiva. Trata-se do companheirismo do Espírito, a comunidade santificada, a sociedade orgânica nascida do Pentecostes, mas cujo pleno significado Paulo foi o primeiro a fornecer. Suas cartas subsequentes nos mostram os passos pelos quais conceitos como velhas categorias de salvação individual foram descartados, da mesma forma que fizera com a retidão legal, passos que o conduziram à percepção de que além da integração humana aqui na terra há uma relação cósmica e universal por meio da qual Cristo Deus é tudo em tudo.

A segunda expressão é igualmente surpreendente e revolucionária. Surge fora do argumento relativo à Lei e à fé fundada na promessa dada a Abraão que «pela confiança que depositava em Deus

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foi considerado reto» , e que por meio dele «todas as nações deveriam ser abençoadas» (Gen. 12.3; 18.18). Depois de argumentar que a promessa aponta em direção a Cristo e que a Lei foi um episódio estabelecido para salvaguardar os homens contra o mal e conduzi-los a Cristo, tal episódio que em certo sentido alimenta o pecado, agora chega ao fim, é esvaziado: Todos vocês são crianças de Deus pela fé em Cristo Jesus; vocês, batizados em Cristo, foram preenchidos com Cristo. «Já não somos mais judeus, nem gregos, nem escravos, nem livres, e nem simplesmente homens ou mulheres» , somos todos iguais - somos cristãos; somos um em Cristo (Gal. 3.28).

Tais palavras são familiares: e diante de nossa presente situação mundial elas se tornam ainda mais proeminentes: mesmo assim sua ebrangência quase que passa desapercebida. Consciente como nós somos dos efeitos perigosos tanto de nossas diferenças largamente artificiais, nacionais e profissionais e das novas barreiras criadas pela educação especializada e interesses sectários «somos hábeis para ignorar o fato de que. Por tras das miríades de influências multiformes em conflito com nossa necessidade por adentrar em uma nova era de um mundo fraternal há três divisões «naturais» que o apóstolo apresenta. Raça e cor da pele, classe e ordem social, corpo e sexualidade, algumas dessas categorias são divinamente vaticinadas, permantentes, as quais são impossíveis, se não realmente injusto, desafiar. Ainda vemos cristãos, não apenas na África do Sul ou Little Rock, citando a maldição de Ham como sanção ao preconceito racial e a pecaminosidade do casamento inter-racial; ainda vemos os arautos da doutrina Malthusiana proclamando que sempre haverá pessoas vivendo abaixo da linha da miséria citando «vocês sempre terão pobres entre vocês» (Marcos 14.7) como um pretexto ao laissez-faire; e argumentando, apesar de toda a evidência contrária, a diferença entre a diferença entre os sexos é um ultimato e não uma distinção meramente biológica que torna inconcebível para mulheres a ordenação ao ministério da Igreja.

Apesar de São Paulo ter ele próprio saido de uma seita exclusivista,

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de um povo singularmente consciente de suas origens étnicas, de estar evidentemente orgulhoso de sua cidadania, de ter nascido de ventre livre, de sua inegavel gratidão por não ter nascido mulher, ele revela nas cartas que chegaram até nós, mesmo as primeiras, um nível que muitos de nós ainda não alcançou, quando expressa aquela unidade com Deus através de Cristo que transcende e anula todas essas divisões. Ao mesmo tempo em que vira e testemunhara a universalidade de Jesus, sem nunca se desculpar por isso, ele também carregava uma forte consciencia sobre as diferentes funções e uma grata prontidão em se contentar com seus próprios recursos e limitações, embora percebendo a unidade no companheirismo ele insistia que todos os membros, quaisquer que fossem suas funções ou virtudes, são iguais em importancia em sua contribuição à vida e às necessidades do corpo e em seu necessário crescimento e bem-estar. Só se alcança isso quando «a medida da estatura da plenitude de Cristo» (Ef. 4.13) é atingida.

A terceira expressão surge de forma semelhante e inesperada depois de um longo argumento sobre um problema prático que viera à tona na Galácia. Ele proclamou que Cristo veio libertar os homens da escravidão da lei e que isto estava de acordo com a promessa de Deus à semente de Abraão em Cristo. Eles eram á família livremente nascida de Jerusalém, de Isaque não de Ismael; e a Lei não tinha nenhum poder em cima deles. Por que é então que estes mesmos gálatas que no princípio receberam Paulo com tal entusiasmo que pela saúde dele eles teriam arrancado fora os olhos deles e teriam dado a ele, agora mudaram de idéia aceitando as obrigações religiosas, a circuncisão e a Lei? Paulo repudia tal idéia tão forte e violentamente que recusa-se a acreditar que tais coisas estejam realmente ocorrendo: mas prontamente enfrenta a situação. Se Cristo significa liberdade, isto envolve frouxidão ética? Rejeição da Lei encoraja o antinomianismo(1)? Como podem os padrões morais ser mantidos se as regras

1 (NT) Antinomianismo: Antagonismo contra a lei e a legalidade que também pode manifestar-se na rejeição anarquística da autoridade legislativa do Estado. Doutrina de que, pela fé e a graça de Deus anunciadas no Evangelho, os cristãos são libertados não só da lei de Moisés, mas de todo o legalismo e padrões morais de qualquer cultura. (Michaelis)

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que as definem são abolidas? Assim ele foi constrangido a reconhecer que a responsabilidade não apenas permanece como deve ser aceita, o que representa a escolha entre aquilo que chama carne e espírito. «Andar no espírito e não satisfazer a luxúria de carne... gera rivalidade: assim você não pode fazer tudo aquilo de que gosta. Você não está debaixo de lei, mas a obra da carne é óbvia» (Gal. 5.16-19). Então após uma longa e bem fortuita lista de vícios e faltas mundanas atípicas do Reino de Deus, ele rompe em um maravilhoso resumo dos frutos do espírito: «Amor, alegria, paz, coragem, clemência, bondade, fé, mansidão, temperança» (Gal. 5.22-23). Temos essa passagem como algo familiar; e por isso talvez não percebamos quão incrivelmente ela é completa em termos de uma descrição do caráter daqueles cuja vida é centrada em Cristo. Examinando-as percebemos três grupos de qualidades ligadas entre si mas aparentemente contraditórias, e vemos quão profunda é a perspicácia em descrevê-las dessa forma.

A primeira coisa que se nota é que tal arranjo combina com valores morais geralmente contrastantes. Nós podemos chamá-las tanto de qualidades como de virtudes, que irradiam da vida em Deus, como conseqüência de nossa experiência nele, que representa a resposta do homem às exigencias legais e morais na vida pessoal e social. O contraste entre a chamada ética «cristã» e «pagã» é uma trivialidade. Nessa passagem, São Paulo menciona três palavras que caracterizam as três principais qualidades greco-romanas: a alegria de Epicuro,(1) a força dos Estóicos, e a tradicional virtude de Roma, e as três de Cristo: amor, paz e clemência. Tais qualidades se intercalam, se completam, se misturam e se transcendem; e as últimas três palavras na lista mostra como esta integração é cumprida.

1 Não se trata de exagero. Epicuro foi muito mais que um mero epicureano; cf. C. Bailey, The Greek Atomists and Epicurus, pp. 498-507.

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O Amor, o agapé Cristão que Paulo proclamara em hino perfeito, o amor que é adoração estimulada por uma comunhão limpa daqueles sentimentos de posse e de sentimentalismo que tão facilmente o disvirtuam, o amor cuja dádiva funde-se à alegria das boas-vindas ao amor recebido e à vida abundante que esse amor evoca. É a virtude que Paulo afirmou tão livremente na carta onde mais ele se aproxima de Jesus em seus dias de ministério quando nos exorta a acatar «tudo aquilo é digno, íntegro, santo, amável, honrado». (cf. Fil. 4.8-10, 2.1-11).

A Paz que muito freqüentemente nos remete à quietude, ao pacifismo, a uma bem-aventurança clausurada e estática, é por Paulo definida como «a paz de Deus que, embora mais maravilhosa do que a mente humana possa compreender, não abre mão da emoção e da inteligência» (Fil. 4.7). Na realidade é na confiança e na serenidade que se situam todas as mudanças e possibilidades de nossa condição mortal. Foi justamente em sua resistência ao sofrimento e em sua coragem, normalmente considerada a mais viril e excelente das virtudes humanas, que Jesus exibiu mais completamente do que qualquer outro a fortaleza que o manteve inabalável mesmo diante de todas as dificuldades e perigos.

Misericórdia, atributo do próprio Deus, uma palavra especial que em grego se associa à bondade de Deus e que é usada em uma famosa referência latina (por Suetonius) como uma qualidade inerente a Cristo significando o calor dos procedimentos íntegros para com o gênero humano por parte de Deus, cuja tolerância e generosidade se mesclam à bondade, uma virtude que caracteriza a moralidade, a retidão e a justiça humanas, uma integridade que se aproxima da pureza por ser completamente amável, uma qualidade que o autor dos Atos descreve em Barnabé (Atos 11.24).

Cada um dos três pares assim combinados representa uma

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fase seguinte da vida ética: amor e alegria brotam a partir da relação com Deus; paz e coragem são efeitos desta relação na atitude pessoal do indivíduo para com a vida; clemência e bondade resultam da relação dele para com os outros. As três qualidades restantes descrevem os meios pelos quais estes frutos se desenvolvem. Eles representam em seu caráter e desdobramento as três fases pelas quais Jesus conduziu seus seguidores ao pleno discipulado.

A fé, a primeira delas, descreve a resposta de compromisso total do ouvinte às boas notícias, ou à suficiencia de Jesus como sua corporificação e arauto. A Mansidão é o processo e o fim da entrega do eu que ele provou ser essencial para todos aqueles que deram suas vidas por ele, ganhando assim a vida eterna: ambos envolvem a humilhação do fracasso e a humildade que herda a terra e que é capaz tanto de alegrá-la como de enriquece-la.

Temperança é o completo controle por Deus em Cristo que é a plenitude da fé, é a abençoada libertação do desejo e do poder do mal, é a orientação ininterrupta do esvaziamento do eu, é uma vida dedicada. Em nosso compromisso de companheirismo com a comunidade santificada somo libertados, sustentados e inspirados para fazer a vontade de Deus. A passagem termina adequadamente com o famoso paradoxo (Gal. 6.1-5) entre responsabilidade grupal e responsabilidade individual que Paulo se esforçou em solucionar. Unidos no espírito cada um de nós pode compartilhar os fardos uns com os outros; assim, o peso da aventura da vida é sentido por todos, e por todos sustentado; auto-suficiencia é uma traição a comunidade. Deve-se exigir de cada um conforme sua capacidade, e dar a cada um conforme sua necessidade.

O modo de vida expresso dessa forma, a união com Cristo que soluciona a solidão, quebra as barreiras e transforma o caráter da humanidade, é resumido naquilo que o Apóstolo regularmente chama de charis, o

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gracioso dom de Deus. O termo, com seu significado original de «graça jovial» e «favor voluntário», designa tanto a iniciação como a manutenção do novo relacionamento para com o divido e redentor ato manifesto em Jesus e operado em Paulo desde sua conversão. Graça aparece em Gálatas como a primeira daquelas palavras onde a nova esperiência dá um novo significado; e talvez maior do que qualquer outra descrita em toda a extensão do evangelho paulino.

Para Saulo de Tarso, com também para o mundo, embora Jesus fosse esperado ele veio de uma forma completamente inesperada e de uma maneira manifestamente imerecida. Embora seu impacto satisfizesse o desejo dos corações, desafiasse o pensamento e revolucionasse a ética dos seus discípulos, representou sob todos os aspectos um acaso fortuito, um presente de céu. Charis denotou precisamente este senso de dádiva.

Mas sua qualidade não termina aí. Realmente o isolamento e o exagero de sua estranheza foram a fonte principal dos erros da exclusividade e do determinismo. A dádiva não merecida provou porém ser não apenas sobrenatural mas, como insistiu Whichcote, «acima do natural». O estranho mundo admitido por Cristo provou realmente ser sua terra nativa. O que parecia ser uma convocação à selva tornou-se primeiramente uma peregrinação e depois um retorno ao lar. O padrão da vida encarnada, o drama de Cruz e da Ressurreição, se repetiu: a vida em vez de caminhar em direção a um fim tornou-se plena e livre, venturosa e compensadora.

Em Gálatas esta perspectiva mais ampla é dificilmente notada. Charis é associada com o chamamento do apóstolo por Deus (1.15), com seus seguidores (1.6) e com o efeito que ela provocou nele (2.9 e 21); e até mesmo a declaração «sair da graça» (5.4) insinua «rejeitar o presente de Deus». Entretanto nas cartas aos Coríntios onde a palavra é muito livremente usada, ele recorre ainda naquela ocasião à idéia de chamada e de presente (1 Cor. 1.4; 3.10), é também utilizada significando «não

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ter sido dada em vão» (15.10), sua permanência (15.23), inclusive é aplicada para um estado de vida «não em sabedoria carnal mas na graça de Deus» (II Cor. 1.12): ela é «graça abundante» (4.15) e «não em vão» (6. 1). Assim, definitivamente a graça, ou «dom gratuíto», de Nosso Senhor Jesus Cristo é identificado com o amor e com o companheirismo do Espírito Santo (13.13). Finalmente em Romanos ela é fartamente usada para descrever a plenitude da nova relação dos crentes com Deus e toda a extensão da atividade divina. Muito característico deste novo sentido de graça como constituindo o contato mútuo entre Deus em Cristo e seu povo é o tratamento dado em romanos 5. Por Cristo «recebemos acesso a este lugar do mais alto privilégio pela graça devido à nossa fé» (2). Esta graça dada por Cristo transborda em nós em toda sua plenitude de forma que todos quantos receberam o presente divino de perdão e absolvição «reinarão em vida» (15, 17) e o reino do pecado é substituído pelo reino da graça (21). Assim no próximo capítulo a lei e o seu modo de propiciar as coisas é colocado em contraste com a graça através da qual os redimidos podem agora entrar. Paulo rejeita a idéia de uma intrusão divina especial em sua vida e abraça o reconhecimento da universalidade da presença da graça de Deus. As palavras que muitos de seus intérpretes consideram básicas no pensamento do apóstolo nos permite ver como tal pensamento se desenvolve; graça nas epístolas posteriores na maior parte das vezes é substituida por conceitos de integridade, conscientização total e comunidade. Na realidade a palavra raramente surge fora das saudações e despedidas com exceção de uma frase notável, «a economia de graça» (Eph. 3.2), onde ele usa «economia» para descrever toda a dispensação e ordenação da casa de Deus.Na realidade a palavra raramente surge fora das saudações e despedidas com exceção de uma frase notável, «a economia de graça» (Ef. 3.2), onde ele usa «economia» para descrever toda a dispensação e ordenação da casa de Deus.

A palavra «economia» é usada em conexão com uma outra, «mistério», evidentemente estreitamente ligada a «graça» e até certo ponto substituindo-a nas últimas fases do pensamento de Paulo. «Mistério», por sua associação com Eleusis e o mundo grego em geral, é empregada pelo Apóstolo em

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1 Corinthians e nós podemos perceber como ele a usa no sentido de uma emulação especial ou segredo e sempre em sua forma plural (4.1, 13.2, 14.2). Em Romanos o sentido ainda é de um evento especial que revela um significado oculto (11.25 e 16.25). Em Colossenses e Efésios, onde ocorre dez vezes, ela é amplamente usada para descrever o plano e a vontade de Deus, a plenitude e o significado universal de Cristo. Da mesma forma que «graça», o primário significado de «mistério» representa uma divina auto-manifestação expressa em um evento simbólico e revelador. Mas, pelo fato de estar mais ligada com ao efeito que provoca no receptor do que com a iniciativa do revelador, ela enfatiza o processo de expansão e universalização das boas novas e seu poder para iluminar, explicar e inspirar todo o campo da vida e pensamento humano.

E com esta extensão da divina graça surge uma nova interpretação da resposta humana para ela. Para nós a obediencia à lei tem se revelado insuficiente. Substituí-la foi uma necessidade primária uma vez que o apóstolo não desejava conduzir seus seguidores ao caos e à desorientação. Sua experiência na lida com eles tornara-o convicto de que o amor, incondicional e expandido pelo amor de Jesus na comunidade santificada, proporcionaria proveria uma perspicácia nos sentidos e portanto uma orientação constrangedora que seria mais íntima e mais imediatamente ajustável que lei. Foi assim que ele descobriu a palavra usualmente traduzida como «pleno conhecimento», epignosis, que representa para ele a plenitude alcançada quando pela verdadeira concordância no Cristo e no companheirismo.

Por tres vezes em Romanos a palavra epignosis, uma palavra rara e recente no grego clássico, é mencionada, depois aparece em Filipenses, Colossenses e Efésios exercendo um papel destacado no vocabulário de Paulo (1). Qua o significado disto?

Gnosis é naturalmente livremente usada no sentido especial de

(1) O mesmo ocorre no Novo Testamento em II Pedro, e em Hebreus na frase «pleno conhecimento da verdade» nas pastorais. Cf. M. Dibelius, G. Heinrici Festschr. 18 (Leipzig 1914).

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«conhecimento esotérico» como uma palavra religiosa, no Novo Testamento é muito bem descrita por W. L. Knox como «a mistura Cristã de fé e amor» (1). Epignosis aparentemente aponta o sentido do conhecimento como uma «consciência institucional» em vez de um «contato físico» ou uma «percepção intelectual». Ela é aplicada para Deus (2) e para ninguém mais (3). Sua forma verbal, mantendo esse significado de «consciência», tem um significado mais geral. Ela é especialmente frequente em Lucas e Atos onde usualmente está ligada ao senso de reconhecimento. Epignosis parece ser uma palavra singularmente apropriada para descrever a interior e constrangedora consciência da real verdade em torno de um objeto ou situação, uma profunda e completa percepção daquilo que Chardin chama de o «interior» das coisas, quando de uma forma admiravel descreve a experiencia de amor e de companheirismo que explode e se propaga na comunidade quando as pessoas se vêem libertas do egoismo e da hipocrisia. Como um holofote a passagem em Fil. 1.9 «amor dá uma sensação de toque» chama a atenção. Tal sensação torna possível uma convicção maior do que o conhecimento intelectual ou logicamente formulado pode proporcionar. Isto é mais facilmente apreciado por aqueles que tiveram a experiência de enfrentar conflitos de lealdade associados a problemas como a guerra por exemplo. Enfrentando-os e procurando a direção de Deus ficamos diante de duas tarefas preliminares a cumprir, primeiro um estudo do assunto à luz do nosso conhecimento de Deus e dos valores cristãos, depois o exame de nossa própria natureza e motivos, descartando nossos egoísmos e examinando da melhor forma possível

1 Some Hellenistic Elements in Primitive Christianity, p. 86.
2 Rom. 1.28, 10.2; Col. 1.9, 1.10, 2.2 («do mistério de Deus»);Eph. 1.17, 4.13 («do Filho de Deus»).
3 Para «pecado» (Rom.3.20) e para «todo bem» (Filemon 6).
4 Este significado é defendido por Dorn H. Dupont, Gnosis: la connaissance religieuse dans les Epitres de St Paul, segundo meu amigo Prof. C. F. Moule, Dupont dá mais relevo a esse aspecto do que ao sistema sacramental. .

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nossos desejos e preconceitos conscientes e inconscientes. Dessa forma podemos nos colocar a nós mesmos e nossas necessidades sob a direção de Deus e do companheirismo cristão, e esperar Sua vinda, acredito que não no formato de instrução ou de fórmula: o que costuma ocorrer é a percepção de que tais instruções e fórmulas não mais funcionam entre nós; estes caminhos são intransitáveis; um caminho, um único caminho, torna-se claro para nós; e nós o abraçamos. É seguramente isso o que Paulo queria dizer por pleno conhecimento, a percepção do estado de consciência pelo qual o cristão tem que viver, um estado de consciência de todo o ser e não apenas da mente. Por isto é notável que a palavra syneidesis ou consciência mencionada apenas na carta aos Corintios e três vezes em Romanos é sempre usada no sentido de auto-conhecimento ou consentimento intelectual, no sentido de obrigação no que diz respeito a problemas relacionados com sacrifícios a ídolos que é o objeto o argumento, e que nas cartas posteriores é substituída por epignosis mais abrangente e mais intuitiva. .

Assim a mensagem de Gálatas evolui nas epístolas subseqüentes. «A graça de nosso Senhor Jesus Cristo» (Gal. 6.18) se desdobrou em «o segredo aberto de Deus, em Cristo, onde está armazenado todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento» (Col. 2.2,3), e onde todos os homens, tanto judeus como gentios se tornam um (Ef. 3.6-12).

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V - A DESCOBERTA DE CORINTO

À LUZ do tempo exato e da importância do Conselho em Jerusalém conforme descrito em Atos 15, parece claro que a aguda controvérsia com a qual a Epístola para os Gálatas estava preocupada fora na realidade definitivamente resolvida apenas antes da segunda viagem missionária. Os judeus ainda faziam oposição: em toda parte se tornou patente que aquele novo modo de vida não poderia ser aceito por eles, e que a parábola da roupa velha remendada com um pedaço de pano novo estava se cumprindo.(1) Mas para os cristãos a discussão estava aberta. Os gentios estavam eram na igreja sem se adequarem às leis e aos ritos do judaísmo, mais uma vez a autoridade de São Paulo enquanto apóstolo não fora seriamente desafiada. Tratava-se não apenas de um problema específico envolvendo lei e graça mas da formulação básica do conceito da Igreja de Deus, de Cristo, da própria fé e da conduta, que precisava ser empreendida. Se o impacto de Jesus estava claro e tinha se afirmado, o significado disto, diante das três passagens que consideramos, tinha ainda que ser testado, definido e explicado. Se Jesus fosse como Deus - e esta era a base da autoridade dele - então Deus era como Jesus. Isto pareceu envolver mudanças nos conceitos tradicionais acerca do divino. Até que este problema fosse resolvido, assuntos de conduta, natureza da retidão e justificação, julgamento e destino humano, de relações humanas para com Deus e para com a comunidade, tudas essas coisas permaneceriam obscuras. Este seria o próximo grande passo de Paulo, a interpretação da fé.

(1) No formato de Lucas (Lucas 5.36; cf. Marcos 2.21).

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Sabemos muito pouco acerca do desenvolvimento do pensamento dele durante a segunda viagem missionária até que entrasse na Europa. Aparte da escolha e circuncisão de Timóteo em Lystra que bem pode ter sido um ato de reconciliação para dar um fim à controvérsia de Gálatas, não há nenhum evento de importância especial até a decisão de cruzar a Macedônia e a significativa associação do doutor grego com os evangelistas judeus. Diante de suas conseqüências é provavel que tal abordagem não tivera um bom começo. A brutalidade do castigo em Filipos e a irritação muito natural de Paulo («eles nos bateram publicamente sem julgamento e nos puseram no cárcere - e nós somos cidadãos romanos! Agora querem que vamos embora às escondidas? Nada disso! Que venham eles mesmos e nos soltem!». Atos 16.37) o coloca em uma posição ruim. Não é fácil ver Deus em alguem que tem sua dignidade espezinhada. Isso pode ser notado mesmo quando ele chega a Tessalônica e ora a Cristo por três sábados seguidos, e em suas próprias cartas quando mostram que ele não tivera mesmo um grande sucesso.

Parece claro que ele julgara mal tanto a audiência como a ocasião. O lugar era, como ainda é, um porto de escala de passageiros e mercadorias, com uma população heterogênea ávida por fofocas e sedenta por rumores. Cláudio César estava próximo do fim: seria sucedido por Nero? Se não, quem seria? O próprio Cláudio acabara de expulsar de Roma alguns fabricantes de tendas, entre eles alguns judeus; e até mesmo o céptico Tácitus registra os maus agouros e presságios predominantes naquela época. Paulo proclamava o Cristo, mas claramente no idioma cataclístico do judeu apocalíptico. A audiência confunde essa mensagem como a proclamação de «um outro rei, Jesus, em lugar de César» (Atos 17.7). Eles prestaram atenção àquela mensagem que falava de alguém que súbitamente descera do céu, que se levantara dentre os mortos e que ascendera para viver nos céus, interpretando tais coisas de uma forma tão literal que chegaram a abandonar seus afazeres em um frenesi de excitação dando lugar ao alvoroço. À luz das cartas aos

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Tessalonicenses vemos quão difícil foi conter aquele motim e explicar melhor suas palavras. Ele proclamara um Deus de poder e falhara em seu intento.

As duas cartas escritas depois do encontro com Silas e Timóteo em Corinto revela sua perplexidade e insatisfação. Ele ainda afirma sua mensagem acerca de uma eminente e literal segunda vinda, entretanto na segunda carta ele introduz um fator retrógrado e a ingenuidade de séculos de comentários não teve sucesso em expor a precisa expectativa de Paulo. Mas o efeito de seu trabalho na Tessalônica obviamente marcou sua mente, fazendo com que modificasse e rapidamente abandonasse a crueza de tal exposição apocalíptica das boas novas.

A primeira carta aos Tessalonicenses contém uma frase que não apenas tornou-se importante na teologia patrística como também nos proporciona uma interessante visão do conceito do Apóstolo sobre a constituição de nossa natureza humana. Ele pede para que Deus santifique seu povo em sua totalidade e «os preserve íntegros em espírito, alma e corpo» (1 Tess. 5.23) na vinda do Senhor. (1)

O significado atual de todas as condições descritas por Paulo sobre os vários elementos de nossa natureza nem sempre é definido com precisão e quase nunca é usado. Um exame da palavra «espírito» por exemplo às vezes nos deixa duvidosos se ele considera espírito (pneuma) como divino, a morada do Espírito Santo nos santos, ou um componente normal de alguns ou de todos os seres humanos, e se assim for qual sua relação com «mente». Da mesma forma também, «alma» (psyché) normalmente é identificada com o princípio estimulante e centro dos mais baixos impulsos, embora seu uso pejorativo não seja muito consistente. Até mesmo «corpo» (soma) é às vezes aplicado à natureza física como um todo mas às vezes distingue-se nitidamente de «carne» (sarx) que é o assento das paixões

(1) Frequentemente abordado nas controvérsias apolinárias, quando Apolinário adota esta tripla divisão da natureza humana.



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animais. Aqui o vocabulário dele não adquire tecnicamente um claro significado.(1)

Mas desta passagem um ponto é evidente; e é confirmado na discussão que posteriormente ele levanta sobre a ressurreição. Ele tem um forte senso da inteireza de nossa personalidade humana, e nítidamente não está predisposto a dividí-la no dualismo de corpo e alma, físico e espiritual. Ele insiste que a ressurreição decerto não envolve «carne e sangue» mas um «corpo espiritual» dando continuidade e habilitando a realização das funções de contato com seu ambiente e de relação com outros para os quais aqui o corpo funciona como um meio de consecução. Se não pudermos chamar tais conceitos de «psico-somáticos», no mínimo poderiam ser compartilhados com os antipáticos conceitos filosóficos da teoria do «fantasma na máquina» do Prof Ryle. Este senso da unidade essencial da personalidade é de suma importância por possibilitar o desenvolvimento de sua doutrina do Corpo de Cristo, e ainda mais em seus desdobramentos em seu significado cósmico.

De Beréia Paulo dirigiu-se a Atenas, e naquele grande centro acadêmico entre os mestres do Areópago falou, de acordo com Atos 17, para um grande público sobre o deus desconhecido. Referiu-se a esse deus como o criador do universo, o senhor do céu e da terra, que não mora em templos feitos por mãos humanas, mas que dá a vida e a respiração a tudo e satisfaz todas as necessidades que existem. Que suas dádivas se extendem a todas as nações que a despeito de suas diferenças o procuram, vivem e se movem nele, citando o poeta Aratus, convidou-lhes a prestar atenção às boas novas proclamadas pelo homem que Deus escolheu e que se levantou dentre os mortos. Aquele discurso deve ter sido bem apropriado para aquela audiência, mas foi recebido com gargalhadas embora alguns expressaram a vontade de querer ouvir mais a respeito daquele assunto. Ele

(1) Como ocorreu em outros casos, trata-se de termos descritivos formulados pelos dirigentes da igreja; é um erro supor que tais palavras posteriormente circunscritas a bispos ou diáconos possuísse para Paulo algum significado restritivo.

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pregara um Deus de sabedoria mas sem muito sucesso.

Como ele mesmo revela, humildemente dirigiu-se a Corinto atento para que seus ouvintes percebessem verdadeiro significado de sua mensagem. «Decidi-me a falar só de Jesus Cristo e de sua morte na cruz. Fui até vocês em fraqueza - temeroso e trêmulo, e a minha pregação foi muito simples, não com abundante oratória e sabedoria humana; entretanto, o poder do Espírito Santo estava em minhas palavras, provando a todos quantos as ouviam que a mensagem vinha de Deus. Fiz isso, porque desejava que vocês tivessem uma fé firmemente baseada em Deus, e não em grandes idéias de algum homem». (1 Cor. 2.2-5). Com aquele espírito de humildade ele encontrou a verdadeira resposta às suas necessidades.

Ele admite o êrro que cometeu apresentando Deus como poder ou como sabedoria proclamando com tais formulações uma paródia das boas novas. «Parece absurda para os judeus, porque eles desejam um sinal do céu como prova de que o que está sendo pregado é verdadeiro; e é ridícula para os gentios, porque eles crêem somente naquilo que concorde com a sua filosofia e lhes pareça sábio. Por isso, quando pregamos que Cristo morreu para salvá-los, os judeus se ofendem e os gentios afirmam que tudo isso é disparate» (1 Cor. 1.22-24). Se Deus é como Jesus, ele não é nem operador de milagres sobrenaturais, nem filósofo, nem engenheiro. Seu retrato é a figura de um homem pregado em uma cruz, o símbolo do amor que dá e que sofre. Ele é «nosso Pai»; e amor não é outra coisa senão poder verdadeiro e verdadeira sabedoria. Se apenas percebêssemos e nos lembrássemos disso, os cristãos não endossariam a política do direito divino dos reis [e governantes] ou a filosofia que concebe Deus e o mundo como um relojoeiro diante de seu relógio; poderíamos ter sido poupados de séculos de conflito, com a Igreja normalmente posicionando-se no lado errado. Deveríamos ter penetrado mais profundamente na natureza e na necessidade do poder e da sabedoria, e nos detido um pouco mais acerca do significado do mal e da dor.

O efeito desta mudança básica no conceito de Paulo acerca da natureza de Deus, como resultado lógico de sua transformação interior pela experiência com Cristo, também é

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a solução dos problemas dele com respeito a lei e graça. Ele percebe agora que todo conceito de Deus como legislador é defeituoso e deve ser substituido. Em Gálatas às duras penas ele percebeu que, mesmo que a lei fosse insuficiente ou mesmo antiquada, havia um claro e suficiente senso de diferença entre o certo e o errado para nos salvar da confusão moral. Mas a despeito de suas listagens de vícios e de frutos do espírito é evidente que ele ainda está longe de ter alcançado um critério definido pelo qual as ações podem ser julgadas .Agora, na medida em que alcança uma melhor compreensão do amor e da paternidade de Deus, ele dá mostras, no confronto com os enganos e incertezas de seus seguidores, de ter encontrado o fio-da-meada de uma nova, satisfatória e apropriada teologia plenamente coberta pela ética. Nesta primeira carta aos Corintios tal teologia ainda está em fase de desenvolvimento e ainda não explora completamente o valor que ela representa: depois de sua última visita à cidade ela alcançou um padrão mais aceitavel e consistente. Este padrão, naturalmente, além de ser completamente pessoal e comunal, identifica a meta de conduta correta para o bem-estar e para o desenvolvimento do companheirismo no Espírito Santo, na família universal de Deus.

É uma curiosa miscelânea esta coleção de problemas que o Apóstolo menciona tentando alertar seu grupo com base no princípio de que barreiras de raça, classe e sexo são superadas no Cristo Jesus. Eles vão desde problemas morais sérios como como o incesto e a questão do matrimônio com incrédulos, até temas esparsos como comer a carne de animais dos sacrifícios pagãos ou o velamento das mulheres enquanto rezam; nessa relação há uma interessante variedade. Ele sustenta uma completa igualdade dos sexos na relação matrimonial, é generoso em sua atitude para com matrimônios mistos, embora obviamente considere a vida de solteiro como preferível, sem abraçar nem o ascetismo nem o puritanismo. Uma seção aborda hábitos contemporâneos de difícil compreensão para nós; em uma ou duas frases

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ele tropeça em supremacia masculina (por exemplo 1 Cor. 11.7-10), e por diversas vezes faz uma distinção entre os mandamentos do Senhor e suas próprias opiniões. Em matéria de condição social inclusive o horrível mas universal fato da escravidão que o poder romano tornou especialmente degradante, ele é muito menos definido do que poderíamos esperar; o mesmo ocorre no que diz respeito a circuncisos e incircuncisos, ou entre escravos e livres, cada um deveria manter sua própria condição, entretanto se o escravo tivesse uma oportunidade de liberdade ele deveria abraçá-la. Nós somos todos escravos de Cristo e «comprados por um preço» (1 Cor. 7.23); o que importa é nossa relação para com Deus. No que diz respeito a regras alimentares e costumes, embora assuntos por si mesmos triviais, tais coisas podem causar ofensa a um irmão mais escrupuloso; e a consciência dele deve ser respeitada. Nós devemos no exercício de nossa liberdade ter o cuidado para fazer o que é recomendavel ao nosso modo de vida levando em consideração círculos os mais amplos possíveis. «Eu faço tudo para levar o evangelho a eles e também pela bênção que eu próprio recebo» (1 Cor. 9.23). Como o atleta ou o pugilista temos que nos dedicar ao extremo de forma a nos tornarmos aptos. Sempre há um modo de superar aquela tentação que trairia nossa confiança. Você que está em comunhão com o sangue e o corpo do Cristo e se torna uma pessoa com ele tem que se privar da idolatria: «tudo é lícito; nem tudo é apropriado; tudo é possível; nem tudo edifica: que ninguém busque sua própria vantagem, mas a do outro». Assim ele transcende a indagação da salvação individual, e toma como critério a edificação do corpo de Cristo. «Faça tudo pela glória de Deus» (1 Cor. 10.23-31) e de acordo com «o testemunho de nossa consciência» (2 Cor. 1.12).

Ele admitia que tais padrões eram todos frequentemente ignorados. Havia facções mesmo em suas Assembléias da Igreja, que por aquele tempo pareciam combinar elementos como práticas gregas eranas, ceia pascal dos judeus e eucaristia cristã; alguns traziam sua própria

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comida enquanto outros permaneciam com fome. Você ignoram a santidade naquilo que fazem e nem mesmo reconhecem a natureza do corpo do Deus; «em vez de proclamar a morte do Senhor vocês a ignoram» (1 Cor. 11.26,27) (1). Assim, a partir disto, ele expõe o que concebe como sendo o corpo de Deus. Nós o constituímos. Nossos dons, ministérios e atividades são individuais e diferentes; mas nosso espírito é um espírito e o mesmo espírito - o Espírito Santo por meio do qual confessamos que Jesus é Senhor. Todas nossas funções - e ele lista nove delas - são operações distintas de um mesmo Espírito. Cristo é como nosso próprio corpo, constituido por muitos membros, mão, orelha, olho, cada um deles é necessário e não pode haver nenhuma rivalidade entre eles. E entre eles estão alguns que parecem fracos, vergonhosos e antipáticos, contudo são essenciais à vida do todo. «Se uma pessoa estiver em dor, todos sofrem com isto, se uma pessoa é elogiada, todos se alegram com isto: todos vocês juntos são o corpo de Cristo, cada parte com sua própria função» (1 Cor. 12.26,27), desde apóstolos até intérpretes de «línguas»; «mas façam o máximo para ter os dons mais importantes desses todos». (12.31a) Assim ele expõe a visão dele de comunidade e abre a fonte de sua unidade.

«Porém, primeiramente eu quero falar-lhes sobre outra coisa que é melhor do que qualquer um deles». (1 Cor. 12.31b). E em um hino (1 Cor. 13) proclama aquela nova qualidade, o amor cristão para o qual agapé é uma palavra intraduzível, o amor que imediatamente expressa, integra e purifica a unidade da comunidade, o amor que reflete a própria essência de Deus. O amor que transcende todos os valores denominados estéticos e psíquicos, intelectuais e institucionais, intencionais e morais. É imune ao egoísmo, incorruptível à paixão. Não tira partido nem explora os sentimentos. É adequado a todas as ocasiões, ilimitado em sua extensão, e eterno em sua qualidade. Aqui, em nossa presente fase, ainda estamos como crianças, tropeçando na fala, no pensamento e no argumento; aqui, até mesmo nossa visão é

(1) Para o significado do ensinamento paulino dessas passagens no que diz respeito ao sacramento vide H. A. A. Kennedy, St Paul and The Mystery Religions, pp. 263-79.

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obscurecida e defeituosa, e nosso conhecimento parcial; À medida que crescemos nossa visão se torna mais direta, mais objetiva no conhecimento, mais plena. O amor é imediato e sem distorções; auto-suficiente, a fonte e o conteúdo de uma real experiência.

Assim na mais bela passagem de seus escritos ele expõe a maturidade desta nova e ainda indescritível qualidade que possibilita aquilo que os biólogos chamam de simbiose desabrochando um novo tipo de relação humana; uma qualidade que ele qualifica como o atributo específico de Deus, a qualidade que de uma forma crescente proporciona para ele o completo valor e significado de vida. É a rapsódia mais notável principalmente por se dirigir ao povo de Corinto, uma cidade marcada pelo templo de Afrodite Pandemos, por si só sinônimo de vício sofisticado em toda parte do mundo mediterraneo. Em um lugar onde toda palavra associada a sexo tinha um significado sujo, ele insistia que não não é nem pelo intelecto nem pela ética, nem por ações íntegras nem por preceitos legais, mas por relações pessoais dedicadas ao amor a Deus e aos vizinhos em Cristo que os homens atingem maturidade plena e uma experiência redentora, é uma prova suficiente do próprio crescimento dele na compreensão das boas notícias, e do seu poder em propiciar uma mensagem nova a outros. É por isso que ele tanto insistia nessa vida em Cristo, incentivando sua expansão e sua aplicabilidade universal; em termos de eficácia humana, essa teologia alterada passa a conceber Deus como amor e o Cristo crucificado como o símbolo perfeito de amor.

Isso deve ser visto como uma profunda análise da natureza e do funcionamento do amor cristão, e a plena relação de companheirismo pelo Espírito que aparece primeiramente no capítulo 13, o conduziu para o ponto mais alto em sua interpretação das boas novas. O aspecto novo é que ele passou a conceber o amor como o cumprimento da Lei e o fator primário na vida de Deus e dos homens por meio de Cristo. Além disto ele vem proclamar isto como a

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condição universal do ser real, o elemento de integração entre a natureza e a história, do cosmo como o indivíduo.

O resto da Epístola contém uma discussão muito interessante acerca do falar em línguas, uma expressão ininteligível muito freqüentemente resultante de excitação psíquica, a glossolalia foi interpretada pelo autor de Atos como o dom de falar em diversos idiomas, que exerceu um importante papel nas assembléias dos cristãos primitivos. São Paulo adota uma visão fortemente crítica com respeito a esse dom quando comparado com a pregação, a qual é inteligível enquanto meio direto de explicar as boas notícias enquanto que a glossolalia é sem sentido a menos que seja traduzida. Cantar com espírito e louvar com sinceridade edifica todos os que ouvem. «Eu preferiria falar cinco palavras inteligíveis na igreja que dez mil palavras em uma língua desconhecida» (1 Cor. 14.19). É importante notarmos a ênfase que ele dá ao aspecto intelectual comparado à influência emocional: o evangelismo tem muito freqüentemente negligenciado essa advertência de Paulo.

Daí ele passa a abordar assuntos de igual interesse mas de menor importância do ponto de vista ético, exceto quando revela que a despeito do grande avanço em sua teologia ele ainda retem algo de sua velha ênfase na imagem apocalíptica e individual. A lista que ele apresenta das aparições de Jesus pós-ressureição é importante não apenas por mostrar sua insistencia nesta categoria de evidência da vida ressurreta e da presença de Cristo, mas por não fazer nenhuma distinção entre as aparições antes da Ascensão e aquela que testemunhou na estrada de Damasco. Aqui não há nenhum fundamento para afirmar que as alegações dos santos ao longo da era cristã de terem visto o Senhor Ressurreto foram fisicamente diferentes das descritas nos Evangelhos.

É quando São Paulo passa a discutir e a descrever nossa ressurreição, tema que na carta aos Tessalonicenses ele restringe a apenas uma única frase. Paulo escreve que nossas vidas aqui não terminam com a morte

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do corpo e que posteriormente nós ainda seremos «encarnados» (se considerarmos essa palavra significando consciência das relações e capacidade de reconhecer e de se comunicar com outros), e que entretanto «carne e sangue», a vida puramente física e auto-aprisionada por sua corrupção inerente, «não pode herdar o Reino de Deus» (1 Cor. 15.50) contudo de repente «ao som do último trompete» (cf. 1 Tess. 4.16), um corpo incorruptível experimentará a ressurreição e o mortal será lançado na imortalidade. O conceito e a imagem do segundo advento realmente tem bem menos dramaticidade e violencia intrusiva do que antes, Paulo não está muito preocupado se tal evento ocorrerá num futuro próximo ou num momento específico. Mas a narrativa sugere que tais coisas ultrapassam a plena compreensão no que diz respeito à continuidade e consistência da ação divina.

É na segunda, ou como alguns pensam, na segunda e na terceira cartas que o Apóstolo se afasta dos problemas temporários, locais e práticos e passa a abordar a extensão e unicidade das boas notícias e o contraste delas com os recipientes térreos que as contém. Uma boa parte do texto tem a ver com suas próprias fraquezas pessoais, seus motivos e aspirações, suas aventuras e consolos. Sem precisarmos exatamente as circunstancias e relações da carreira dele, torna-se difícil calcular ou até mesmo interpretar o profundo significado da crítica e da análise que fez de si mesmo: a própria instabilidade de seu humor em nada facilita essa empreitada. Mas quem freqüentemente se maravilha com a profundidade e perspicácia psicológica de sua Epístola aos Romanos, pode perceber a partir dessa correspondência quão radicalmente ele inspecionava seu próprio trabalho e as influências que o determinaram.

De um ângulo mais geral 2 Coríntios propicia uma crescente compreensão da harmonia da base teológica da fé que tem o poder de nos transformar e de nos integrar na real vida de Deus. Expressa em frases como «Deus é o Espírito que lhes concede a vida, e onde ele está aí há liberdade» (2 Cor. 3.17), onde a

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singularidade da revelação em Cristo refletida em nós como em um espelho se afirma; ou como «o Cristo que é a imagem de Deus» (2 Cor. 4.4), uma frase básica em sua cristologia. Todas essas coisas se resumem na grande passagem: «Se qualquer homem está em Cristo, há uma criação nova: o velho faleceu; teve início uma nova vida: mas tudo isso vêm de Deus, que nos reconciliou a ele por Cristo e nos deu um ministério de reconciliação, pois Deus estava em Cristo, que reconcilia o mundo a ele, não levando em conta as faltas dos homens mas estabelecendo em nós a palavra de reconciliação» (II Cor. 5.1719). Assim ele expõe o significado de sua frase característica «em Cristo» e indica a filosofia da história que o conduziu à extensa exposição de sua frustração, trabalho e meta da criação em Romanos 8 e a doutrina do Cristo cósmico e consumado em Colossences e Efésios.

As seções finais da Epístola, provavelmente uma outra carta, reitera um tema similar de uma forma diferente. Elas acrescentam uma sentença derradeira, a contínua repetição da palavra «graça», que pode ter feito parte do primitivo credo cristão: «o dom da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos garante o amor de Deus e nos capacita na comunidade do Espírito Santo» (2 Cor. 13.13).

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VI - O TRATADO DE ROMA

Se fizera uma grande descoberta em Corinto, foi em Éfeso que Paulo desenvolveu seu significado, na forma de uma exposição ordenada das boas novas na Epístola aos Romanos. Após um longo interlúdio onde paga um tributo à sua origem judaica, enfrenta a terrível pergunta: «Por que Jesus foi rejeitado pelo seu próprio povo?». A resposta traz à tona discussões apaixonadas. Tanto a parte teológica quanto a parte ética de sua exposição revelam a maturidade de seu pensamento e a grandeza de sua sabedoria, uma coerência e uma perspicácia que tornaram esta carta nada menos que ponto de partida para a doutrina Cristã. Seu pensamento versatil acabou inevitavelmente sendo o pivô de uma variedade de interpretações; onde a figura do próprio Jesus é desenhada pelos homens da maneira que mais lhes convem, não poucas vezes de forma caricata e inteiramente distorcida. Mas por trás da diversidade de seus elementos há uma solidez e uma profundidade que faz com que todo estudante perceba o quanto ainda há por compreender. A Epístola aos Romanos foi seguramente fruto de seus dois anos na Ásia, de suas conferências na escola de Tyrannus, e do perigo que correu sob Alexandre. (1) Ele teve tempo não apenas para refletir e analizar sua própria experiência, mas também de discutir, expor e aprofundar ainda mais seu pensamento. Como resultado disso o antigo super-naturalismo externo de sua linguagem traduz-se quase que inteiramente em uma explicação interior e psicológica em termos de relacionamentos pessoais e coisas semelhantes, uma nova compreensão da natureza e do propósito de Deus.

(1) Cf. Atos 19 e 20; 2 Cor. 1.8-11; Tim. 4.14-5.

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O tratado começa com uma cristologia. O Apóstolo descreve a si mesmo como um escravo de Jesus Cristo. Relata que a boa nova foi prometida há muito tempo pelos profetas de Deus nas escrituras, que Seu Filho «tomou a forma humana e veio como criança, tendo nascido da linhagem e da descendencia do Rei Davi. E, ressurgindo dentre os mortos, Ele revelou-se como o poderoso FIlho de Deus, com a natureza santa do próprio Deus» (Rom. 1.3,4). A ênfase nessa dupla filiação aparece apenas nas passagens paulinas, introduzindo formalmente a teologia de sua obra.

Ele exprime sua gratidão por Jesus Cristo e pela sua boa nova, e por poder compartilhar sua proclamação com gregos e não-gregos, com doutos não doutos, e não apenas repartir com eles sua fé, mas tambem ser animado com a fé que eles possuiam. Então ele desenvolve uma filosofia da história, focalizando o fracasso do gênero humano em geral e dos judeus em particular. É uma interpretação bastante nova para o pensamento dele, e uma clara evidência de seu crescimento. Homens falham negligenciando a religião, negligenciando a retidão e consequentemente pervertindo a verdade. Deus tem se revelado: «Desde os primeiros tempos os homens viram a terra, o céu e tudo quanto Deus fez, tendo conhecido sua existência e seu grande e eterno poder». (Rom. 1.20). Assim eles são indesculpáveis. Eles bem sabiam de Deus, mas não admitiram, nem o adoraram, nem mesmo agradeceram a ele todo o seu cuidado diário. E, depois, começaram a fazer idéias tolas de como deus seria e o que ele queria que eles fizessem. O resultado foi que suas mentes insensatas ficaram confusas e em trevas. Dizendo-se sábios sem Deus, tornaram-se em vez disso completamente tolos. E então, em vez de adorarem ao Deus glorioso, vivente, tomaram madeira e pedra e fizeram ídolos para si, esculpindo-os para que parecessem simples aves, animais, serpentes e homens mortais. E assim Deus deixou que continuassem com toda a espécie de pecados sexuais e que fizessem tudo quanto desejassem: coisas vis e pecaminosas com os corpos uns dos outros, corrompendo aquilo que há de mais íntimo e sagrado nas relações humanas. «Abandonaram a Deus e nem mesmo o reconheceram» (1), lançando-se em todo tipo de vício e crime, desconsiderando e ignorando todos seus padrões morais. Mesmo que não se compartilhe do ponto de vista dele em todos os detalhes, coisas como sua insistência no primitivo e universal

(1) Rom. 1.28, onde Paulo usa pela primeira vez a palavra epignosis.

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fato da religião, a importancia primaria do sexo e dos contatos pessoais, a necessidade de padrões de decência, são muito mais apropriadas para nós do que a maioria das teorias éticas de seu tempo.

Então ele se refere aos judeus afirmando que eles não estão em condições de criticar ninguém: na realidade sua condição não é de modo algum privilegiada. Deus não olha para rótulos ou aparências: ele julga os homens pelo que fazem sejam eles judeus ou gregos. Os judeus tem sua revelação especial, não na natureza mas na Lei: embora a lei não salve ninguém a menos que os homems a guardem; e as Escrituras declaram que todos praticaram aquilo que a Lei define como pecado; a Lei não nos livra do pecado.

Diante deste pano de fundo ele proclama uma nova revelação da retidão de Deus. Já havia sido dada pela Lei e pelos profetas, mas agora vem de uma forma nova e universal. Isto é, pelo comprometimento com Jesus Cristo, a dádiva e a oportunidade dada por Deus para nossa justificação, o meio de libertação de nossa escravidão do pecado, a expiação e a propiciação, o objeto sagrado como a Arca da Convenção (Rom. 3.25), o ponto de intersecção de Deus com o homem, um exemplo, uma inspiração, um refúgio. Este é o ato de Deus, o presente gratuito de Deus para nós todos, tanto para gentios como para judeus; pois todos são de Deus.

Ele conclui esta primeira seção voltando ao caso de Abraão conforme já tinha feito na carta aos gálatas. É impossível saber se tinha conhecimento da objeção feita ao seu argumento na Epístola de Tiago (2.20-24), mas certamente estava familiarizado com seu conteúdo. Sua resposta, embora feita com cortesia, é decisiva. A promessa em Gen. 15.6 foi dada não por obedecer oferecendo Isaac (Gen. 22), como Tiago alega, mas bem antes quando Abraão era ainda incircunciso e antes mesmo do nascimento de Isaque. Assim a promessa era claramente uma recompensa à sua fé e não teve nada a ver com a

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Lei ou seus atos subseqüentes; e a bênção foi cumprida em Cristo.

Na segunda seção ele desloca-se do vasto campo da história para o campo mais restrito do significado de nossa reconciliação. Por causa de Jesus Cristo temos paz e acesso à graciosa relação com Deus, confiamos e esperamos pela glória de Deus. Além disso podemos encarar até mesmo nossas aflições com semelhante confiança e garantida esperança uma vez que tais coisas vêm para nos fortalecer e nos testar. Nossas aflições eram nossa fraqueza quando éramos pecadores e inimigos de Deus, até que Cristo entregou sua vida por nós: agora que a morte dele nos salvou, a vida dele nos manterá seguros e reconciliados com Deus. Por um homem, Adão, o pecado e a morte nos contaminou a todos, agora, e em grande escala, pela graça de um homem o dom da graça de Deus foi conquistado para nós. A morte é substituída pela vida.

Mas se fora de nosso pecado Deus achou ocasião para nos salvar, nós não podemos retirar disso um argumento para continuar pecando? Por que não aceitar o pecado e permanecer nele? Para as pessoas que resolvem a questão do pecado através de uma sucessão de atos particulares (e certos tipos de ensinamentos na igreja aparentemente fazem isso) isto pode ser plausível. Mas Paulo rejeita isso de imediato: pecado e graça não funcionam como débito e crédito de uma conta: trata-se de uma questão de vida ou morte. O homem reconciliado com Deus não pode viver novamente «em pecado». Ele morreu em Cristo, o representante dele: ele foi elevado por ele para viver nele. A morte já não pode dominar Cristo e não pode, devido a nosso pecado, ter licença para tomar posse de nós que estamos em Cristo. Esta união primária com Deus em Cristo é o evento decisivo - a experiência da conversão. Como podemos interpretar isto? E tendo feito assim, como podemos estabelecer a possibilidade de seu cumprimento?

Em seguida Paulo usa duas ilustrações para tornar claro o abismo entre o velho e o novo, e demonstrar que nossa obrigação anterior à Lei terminou. Isso significa que não

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nenhuma razão por se viciar no pecado que Lei proibe. O pecado é de certa forma uma escravidão: e a continuidade nessa escravidão do pecado significa perder não apenas nossa nova liberdade mas também renunciar nosso novo serviço a Deus, significa preferir morte à vida. É como nossa mudança de condição pelo matrimônio. Uma viúva pela morte do marido desliga sua relação com ele: não há agora nenhum adultério se ela se casar novamente. Da mesma forma para nós, que já nascemos casados com o pecado, a morte do pecado desliga nossa relação com ele: somos recém-casados com Deus em Cristo; e essa nova vida transforma toda nossa relação. Brincar com o mal é trair a Deus.

Tais exemplos, apesar de menos insatisfatórios que as cansativas analogias e ninharias acadêmicas da carta aos Gálatas, realmente não trazem nenhuma prova convincente de perspicácia. Paulo, embora menos rabínico e criativo do que da primeira vez que tratou do assunto, não propicia aquela espécie de compreensão empática típica dos quadros vívidos das situações que caracterizam as parábolas de Jesus. As metáforas de Paulo são marcadas pelo lugar comum e pela imprecisão; com um efeito pedante e inconvincente. Mas repentinamente, e com poder notável, ele dá vazão a uma genuína e impressionante auto-revelação; e todo o problema do conflito moral ganha vida diante de nós, uma lucidez tão brilhante quanto aqueles três flashes geniais apresentados em Gálatas. Imediatamente surge uma pessoa real e sensível diante de um assunto profundo e universal. A «guerra em nossos membros», a guerra civil que se trava dentro de nós, é uma passagem que penetra o âmago da vida.

É típico das exegeses paulinas os comentaristas atribuir uma importancia vital ao argumento de que o Apóstolo está naturalmente relembrando as agonias de seu estado inconverso, quando ele ainda estava lutando pelo comprimento da Lei e dando de cara não apenas com o fracasso, mas também com o fato de que a proibição era por si só um incentivo. Sua análise do conflito quando ele admite a óbvia retidão da Lei e seu valor em definir pecado para ele, ainda é incapaz de reprimir seu impulso por

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resisti-lo, e é tomado por um terrível desespero: «Quando quero fazer o bem, não faço; e quando procuro não errar, mesmo assim eu erro. Agora, se estou fazendo aquilo que não quero, é simples dizer onde a dificuldade está: o pecado ainda me retém entre suas garras malignas. Parece um fato da vida que, quando quero fazer o que é correto, faço inevitavelmente o que está errado. Quanto à minha nova natureza, eu gosto de fazer a vontade de Deus; contudo existe alguma coisa bem no meu íntimo, lá em minha natureza inferior, que está em guerra com a minha mente e ganha a luta, fazendo-me escravo do pecado que ainda está dentro de mim. Em minha mente desejo de bom grado ser um servo de Deus mas, em vez disso, vejo-me ainda escravizado ao pecado. Assim, vocês podem ver como isto é: minha nova vida manda-me fazer o que é correto, porém a velha natureza que ainda está dentro de mim gosta de pecar. Que situação terrível, esta em que eu estou!» (Rom. 7.19-25). Uma trágica expressão de aflição. Trata-se de uma questão de vida e morte para todos nós. Por nós mesmos não temos nenhum poder que nos ajude, a independência nos deixa cegos e aumenta nossa impotência.

Não precisamos discutir detalhadamente os argumentos usados que diz que isso se refere a reminicências do passado, não experiências do presente. Pode ser que nas vidas dos santos haja lugar para a doutrina do compromisso inabalável, daquela certeza da própria salvação que eles tem e que muito facilmente se torna um intolerável desaforo. Mas uma coisa é certa: pela inquebrantavel percepção de Deus e pela real descoberta, passada ou presente, de suas falhas, eles continuamente se libertam da inquietação. Talvez a maior lição do grito de desamparo no Calvário seja o fato de que quanto maior nosso amor e conhecimento de Deus, melhor é nosso nosso olfato para pressentir a eminência do mal. E no próprio caso de Paulo sua humildade certamente aumentava na medida em que ele crescia na graça. De qualquer forma a frase em 1 Tim. 1.15, «pecadores, dos quais eu sou o principal» reflete genuinamente a mente do Apóstolo, pelo menos está de acordo com a totalidade de suas Epístolas. Ele também está atento que precisa continuamente de perdão e ainda pode ser um náufrago.

IEm todo caso ele nos dá uma exposição minuciosa de nosso problema moral, que é a causa principal do erro. Em diferenciar ética legal de ética pessoal. Dos homens obviamente não se tornando virtuosos pelas Leis do Parlamento, homens que quanto mais débeis de vontade menos conhecem o mal que lhes afige. A tensão moral raramente foi tão vívida e honestamente descrita; e poucos foram entre os santos os que expuseram suas próprias lutas com tanta objetividade e intimidade. Aqui temos

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uma revelação daquilo que Paulo acreditava a respeito do significado de Jesus. E essa fé básica faz muita diferença pelo efeito e influência que exerce nos crentes. Temos aqui uma ética centrada em Deus, para um mundo de homens como nós. Embora ainda incompleta nesta fase de sua evolução, tem pelo menos o mérito de enfrentar o problema através da análise, um campo recentemente descoberto pela ciência.

No estudo da ética cristã a questão do propósito e do valor de lei é algo que demanda grande atenção. A necessidade de formular padrões de conduta capazes de ser mantidos e aplicados parece bastante evidente à maioria de nós. Um mundo sem tais padrões tem sido suficientemente manifestado durante os últimos vinte anos. Mas a máxima legal «povo duro, duras leis» que quase foi aceito universalmente cinqüenta anos atrás e que ainda é considerado por muitos como a saída inevitável da justiça legal, foi desafiado e subvertido pelos recentes descobrimentos em psicologia genética. O fato de «sermos aquilo que nossos gametas determinam», mesmo sem significar que «pais cleptomaniacos não podem ter uma criança honesta», é uma declaração que a justiça não podem ignorar. O tratamento penal da condição hereditária (isso é de toda a humanidade) tem que levar em conta estas condições. Semelhantemente, pela psicologia, sabemos que cada um de nós é um «caso difícil», ou, na linguagem teológica fora de moda «pecadores», que veio ao mundo através de uma ascendência infinitamente longa e originalmente animal exposta de nascença a influências e eventos que deixam profundas marcas em nossas vidas subconscientes. Se não somos completamente loucos, também não somos completamente sãos; e uma verdadeira justiça deve ser ajustada ao conhecimento de que por trás de cada ação localizam-se complexos padrões de conduta e um indivíduo que único. Adequar tais condições à administração tradicional da lei é um assunto que parece estar bem longe

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de qualquer solução clara. Enquanto isso, os juízes, diante dos efeitos gravemente injustos que a definição legal cria, se vêem diante de um volume tal de jurisprudencia que torna a tarefa deles quase impossível.

Além disso, para muitos de nós, atentos a essas questões, a lei, se não age como um asno é freqüente e cruelmente inadequada. É sobre isso que Paulo fala com clareza e honestidade. Suas palavras não estão apenas restritas às relações entre judeus e pagãos do primeiro século ou de Moisés com Jesus. Trata-se de um assunto de profunda importância e urgência para o indivíduo e para o bem geral, fundamental para qualquer consideração em torno da moralidade cristã.

No caso de Paulo a psicologia da exposição dele nos leva em direção ao ponto central do problema. Ainda não podemos afirmar com certeza mas podemos sentir que embora sua reação de gratidão e libertação sejam emocionalmente válidas e constrangedoras, não é em si mesma conclusiva. Como o homem poderia abdicar da direção e da detalhada disciplina da Lei? Como ele construiria um incentivo moral igualmente constrangedor? Poderia o amor de Deus e o desprendimento do ego substituir todos os códigos legais por uma aceitação inteligente de uma moral completamente cristã? Paulo responde que sim; mas apenas em sua última epístola ele mostra como o amor e a comunidade geram o «pleno conhecimento».

Na terceira seção, começando com a afirmação triunfante: «não há nenhuma condenação aguardando aqueles que pertencem a Cristo Jesus» (Rom. 8. 1), ele esboça sua própria solução, primeiro discutindo uma seção prévia e depois desenvolvendo sua filosofia da história. Em ambos os casos seu pensamento alcança um altíssimo nível de discernimento e expressão. No primeiro caso desenvolve sua idéia anterior, no segundo caso ele alcança um dos momentos mais singulares, originais e iluminados das Escrituras.

Acima da lei do pecado e da morte, coisas

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das quais os homens foram libertados, ele fixa aquilo que chama a lei do espírito da vida em Cristo Jesus que é o padrão expresso por Cristo e dado por ele àqueles que se entregam a ele e assim incorporam seu Espírito. A Lei, pela nossa natureza física, é débil e não pôde efetuar o alívio necessário: Deus pela missão do seu Filho, encarnou em nossa carne pecadora e preocupado com nosso pecado, condenou o pecado na carne revelando sua prevaricação e realizando a exigência da Lei que foi cumprida em nós que não estamos na carne mas no espírito. «Se o Espírito de Deus mora em você, você não está na carne mas no espírito. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não é dele. Se Cristo está em alguém, o corpo dele está morto com respeito a pecado, o espírito dele está vivo com respeito à retidão. Se o Espírito de Deus mora em vocês ele que elevou Cristo Jesus elevará seus corpos mortais pelo Espírito que mora em vocês». (Rom. 8.9-11). Mais que isto, todos aqueles que são conduzidos assim pelo Espírito são a família de Deus, os herdeiros dele, para em conjunto compartilhar tanto os sofrimentos como a glória de Cristo. O Espírito dele e os nossos unem em testemunho disto. Assim a unidade essencial da Divindade é estabelecida tanto quanto a Divindade; e a Igreja é definida não em termos de instituições e cerimoniais mas de relações espirituais e pessoais.

E as coisas não terminam por aí: o princípio assim estabelecido da unidade de toda real vida pode ser aplicado em um campo maior. Se sofrer por Cristo e por nós é o prelúdio da glória, por que não seria também assim para a criação como um todo? «Toda a criação espera com paciencia e esperança por aquele dia futuro quando Deus ressuscitará os seus filhos. Sabemos que até mesmo as coisas da natureza, como os animais e as plantas, sofrem na doença e na morte enquanto esperam esse tão grande acontecimento» (Rom. 8.19-21). Liberdade, glória, comunidade. Nós sabemos que toda a criação está gemendo e trabalhando juntamente até agora; e não apenas a criação mas

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nós, que temos os primeiras frutos do Espírito, gememos em nós mesmos na medida em que esperamos pela adoção que envolve a redenção de nossa vida corporal. É pela esperança que seremos salvos, é na esperança das coisas que estão por vir que está nossa fortaleza. Além disso nós não estamos sós: em nossa fraqueza o Espírito de Deus se envolve conosco, intervindo ao nosso lado e guiando nossas aspirações; e Deus, que procura nossos corações, conhece a mente do Espírito, que intercede a Deus pelos santos. «E nós sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus de acordo com seu propósito» (1), Deus os escolheu e os formou à imagem do Filho dele, o primogênito de muitos irmãos, e esses a quem escolheu ele também chamou, justificou, e glorificou. Todos são de Deus; e ninguém pode desafiar ou se opor a eles. Se Deus nos deu o Filho dele, Ele seguramente nos dará tudo o mais. Quem nos separará de tal amor? Seguramente nenhuma aflição, nem morte, nem vida, nem anjos, nem governantes, nem presente, nem futuro, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra coisa criada: O amor de Deus em Cristo Jesus nosso Senhor prevalece.

É desnecessário e errado associar esta notavel passagem à cosmologia de Tellhard Chardin ou a uma moderna doutrina da evolução. Indubitavelmente, Paulo tem em mente a história da maldição na terra e de seus habitantes humanos de Gênese 3, talvez tivesse recebido influencias da doutrina Estóica do progresso que estava sendo proclamada por Sêneca, seu contemporâneo. Mas, mesmo assim, a originalidade, a verdade e a relevância de sua interpretação para nós situa-se no melhor sentido profético. Ele firmou-se em quatro pontos de permanente e inigualável importância para nossos dias.

Primeiro ele não vê a criação como um ato realizado de uma só vez no princípio, mas como um processo originalmente condicionado

1 Rom. 8.28. A variação das palavras não afeta seriamente o significado.

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ao desenvolvimento de variáveis. É e sempre esteve incompleta, carente de suas plenas possibilidades, frustrada e defeituosa.(1) Conseqüentemente é um cenário de agonia e de esforço que se desdobra em dor aspirando pela conquista de seu verdadeiro fim.

Segundo, esta frustração traz consigo a qualidade da agonia da gravidez, um árduo trabalho de gestação: a criação labuta para fazer nascer uma comunidade que ainda está dentro do útero. Esta, quando nascida, será livre, não será escrava de suas próprias paixões, nem deteriorará por seus erros passados, livre para a plenitude da vida e com o brilho de uma glória refletida. Será a família, a família mundial, de Deus. Agora, ainda na metade do caminho, ela vive e vive pela esperança; e já recebeu em Jesus o primeiro cumprimento de sua meta. Esta esperança, assim aumentada, é nosso conforto e meio de prosseguir.

Terceiro, em nossa aventura nós não estamos sós. Deus não é um espectador distante assistindo o conflito e elogiando ou condenando seus participantes. Ele envolveu a si mesmo. O Espírito dele está engajado ao lado e dentro do esforço, compartilhando em sua agonia e inspirando sua direção. Conosco e em nós está o divino, manifestado em Cristo e morando em seu povo.

Então, finalmente após feroz e prolongada luta - e nossa liberdade é um elemento essencial que deve ser preservado e seu progresso pode ser retardado ou antecipado - o fim está seguro. Deus está envolvido, e o testamento dele está sendo terminado. Tal testamento é o amor; assim, sua operação é condicionada por nosso estado como pessoas: nós não somos escravos nem máquinas e Deus não pode negar a própria natureza dele nos tratando como se fôssemos tais. A agonia continua até que nós achemos nossa liberdade perfeita no fazer sua vontade e no serviço de sua comunidade. Mas mesmo agora duas coisas já estão claras. O mundo está condicionado de tal forma que, como Jesus disse, se nós buscarmos em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, tudo o mais que precisamos estará disponível para nós -

1 Cf. Sanday and Headiam, Romans, p. 208.

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as coisas espirituais e materiais cooperam para bem se nós amarmos a Deus. Além disso aqui e agora nada que possa acontecer pode nos separar desse amor, exceto nossa rejeição ou descrença disto. A menos que digamos não haver tais coisas como progresso, ou haver condições nas quais o amor de Deus não possa ser cumprido - a menos que percamos a esperança - não há, a despeito e em meio a todo mal e frustração, nenhuma ruptura do amor com o qual Deus nos liga a ele.

Dificilmente é necessário fazer mais que lembrar-nos que a maior parte de nossa angústia e heresia presente deve-se à negligência quase completa deste entendimento paulino acerca do mundo natural. Desde os conflitos entre Gênesis e geologia, darwinismo e evolução, ou mesmo como ocorre no momento presente entre liberalismo e neo-ortodoxia, podemos ver intensa luz é lançada sobre ambos os lados nessa seção onde Paulo conclui os capítulos teológicos da maior de suas epístolas.

O interlúdio que ilustra o padrão da vida brotando da morte como uma leitura da história é um cri du coeur de alguém que chamou a si mesmo de nada menos que um hebreu de hebreus. Se aspiração e agonia é nosso destino e se Deus faz juntamente todo trabalho para o bem, como é que as pessoas escolhidas, tão privilegiadas e tão pacientes, no momento em que a esperança deles foi cumprida, o rejeitam? A tragédia dessa recusa é evidente a todo cristão: para Paulo foi apenas sublinhado pela sua conversão e subseqüente experiência. O que pode dizer ele sobre isto?

Que Israel sempre foi teimoso, que o Testamento Velho está cheio de advertências, e que em tempos de crise apenas um remanescente faria a escolha correta, é um consolo pouco satisfatório: o tema era demasiado catastrófico para ter uma fácil aceitação. Mas o fato ainda permanece; e Deus tem que ter algum propósito nisso tudo. Seguramente o significado de todas essas coisas, embora nenhum homem possa conhecer a mente de Deus, pode ser visto no fato de que foi a recusa de Jesus por parte dos judeus que o conduziu aos gentios. Poder-se-ia reivindicar que a

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auto-exclusão que fizeram de Cristo abriu caminho para a missão para o resto do mundo? Nesse caso, em algum aspecto isso teve um valor sacrificatório: a perda deles foi o ganho dos gentios. A desgastada comparação da oliveira cujos galhos foram arrancados para dar lugar a um enxerto de uma oliveira selvagem faz sentido, a despeito de seu absurto horticultural.

Além disso essa exclusão não é definitiva: A clemência de Deus prevalecerá sobre eles e eles serão restabelecidos quando os gentios ganharem seu pleno lugar em Cristo. E se a alienação deles funcionou tão bem para os outros, quão grande será o cumprimento quando eles retornarem. De Deus, por Deus e para Deus são todas as coisas. A seção termina com uma declaração, a mais clara possível, do universalismo para onde o conceito paulino de Deus em Cristo é magistralmente conduzido, o mesmo conceito que ele desenvolve em Colossenses e Efésios, mas que é tão difícil para os seus comentaristas tradicionalistas aceitarem.

TAs conseqüências práticas e éticas das boas notícias é o assunto que preenche o restante da carta. Sua primeira preocupação está na qualidade fundamental dos membros da comunidade santificada cujas vidas corporais são um sacrifício vivo a Deus, e que não imitem a conduta e os costumes deste mundo. «Seja, cada um, uma pessoa nova e diferente, mostrando uma sadia renovação em tudo quanto faz e pensa. E assim vocês aprenderão, de experiência própria, como os caminhos de Deus realmente satisfazem a vocês. Como mensageiro de Deus, faço a cada um de vocês uma advertência dEle: sejam honestos na avaliação de si mesmos, medindo seu próprio valor pela quantidade de fé que Deus lhes deu. Pois tal como existem muitas partes em nossos corpos, assim também é com o corpo de Cristo. Todos nós somos parte dele, e cada um de nós é necessário para fazê-lo completo, porque cada um de nós tem um trabalho diferente a executar. Assim, pertencemos uns aos outros e cada um precisa de todos os demais» (Rom. 12.2-5).

Essas três sentenças vão à raiz do assunto. Jesus tinha dito: «mude sua perspectiva». O discípulo dele diz: «você deve evitar de se acomodar a idéias e

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padrões mundanos: tudo o que você faz e pensa deve ser afinado na consciência da presença e da vontade de Deus. Isto envolve libertação do egoísmo e conhecimento da si mesmo com relação a Deus e a comunidade». Nesta comunidade nós podemos achar nosso espaço de lazer, e nossa própria atividade. Se nós comparamos isto com o slogan familiar dos psicólogos «conheça a si mesmo, aceite a si mesmo, seja você mesmo», perceberemos a grande e vital diferença entre eles.

Ele segue nestes princípios gerais através duas listas que explicam primeiro as variadas funções que os membros no serviço de Deus realizam e depois as qualidades que eles exercitarão nos procedimentos mútuos. Estas listas correspondem a serviços internos e externos dos membros, tanto no sentido radial como tangencial, em suas atividades: mas inevitavelmente os dois convivem lado a lado. Então ele delineia um conjunto de breves preceitos que envolvem tanto atitudes como comportamentos para com as pessoas de fora, que resume na frase: «Não deixem que o mal prevaleça, mas triunfem sobre o mal, praticando o bem» (Rom. 12.21). O conselho dele retrata uma vida gentil, simpática, harmoniosa e pacífica - que ele previamente descreve como ministério da reconciliação.

O próximo parágrafo (Rom. 13.1-7) sai das recomendações gerais e entra em um específico e sempre urgente e difícil problema: qual deve ser a atitude dos cristãos diante da autoridade secular, e aqui o Apóstolo se refere particularmente ao império pagão de Roma. Paulo segue sua linha prévia e advoga a sujeição com o pano de fundo de que não há nenhuma autoridade exceto pela sanção de Deus e que aqueles que estão no cargo são estabelecidos por Deus: assim aquele que resiste à autoridade coloca-se a si mesmo contra o decreto de Deus, e trará julgamento sobre si próprio. Aqueles governantes não amedrontam quem faz o bem mas aqueles que fazem o mal. O governo é o ministério de Deus para a bondade; aqueles que praticam o mal sempre terão medo dele; e para os serviços públicos poderem existir são necessários os impostos.

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O pagamento de impostos foi algo muito natural àqueles que viram e avaliaram a pax Romana e a segurança que ela proporcionava (essa carta foi escrita durante o famoso quinquennium Neronis - DC 54-59, quando Sêneca e Burrus deram ao Império seu melhor período de governo) àqueles que viviam na Judéia ocupada por um país inimigo, sabedores da futilidade que uma rebelião poderia representar, e da amargura que aquela ocupação representava. Além disso os escravos e os pequenos negociantes que constituíram os pequenos grupos locais de cristãos não tinham nenhum tipo de responsabilidade ou influência nos negócios públicos. Seria surpreendente se o Apóstolo usasse essa mesma linguagem referindo-se a qualquer Cesar posterior, até mesmo se os proconsules e procuradores deles fossem em geral os homens de integridade. Mas considerar hoje esse aconselhamento de Paulo como uma regra divina fixa para todo tipo de governo, certamente incide no erro de assumir que em um meio radicalmente mutavel seja possível estabelecer regras infalíveis onde detalhes de conduta possam ser definitivamente fixados. Isto seria, naturalmente, estabelecer exatamente o tipo de sistema legalista contra o qual todo esforço de Paulo estava dirigido; e nós vimos como os cristãos usaram esse erro para justificar obediência a qualquer tipo de despotismo desde a teocracia de Calvino em Genebra até o nazismo de Hitler em Berlim. É um fato irônico que não haja nenhuma passagem em todas as epístolas que tenha sido tão freqüentemente citada tanto na literatura como nas pregações cristãs; e igual e certamente nenhuma que tenha produzido tantas conseqüências monstruosas.

É altamente significante a descoberta do Apóstolo de que, logicamente mantendo a ética das relações pessoais, temos que viver como Jesus fez «no Reino» - o que envolve também viver entre pessoas e eventos de caráter extensamente diferente, e que traduzir a espontaneidade e a inteireza da resposta pessoal em um código definido e estereotipado é

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destruir seu caráter e, realmente, tentar o impossível. Não estamos mais debaixo da lei mas sob a graça, não mais escravos mas livres.

Na próxima seção Paulo insiste nesta mesma transformação. Ele conclui o parágrafo sobre os poderes civis dizendo «honrem e respeitem a todos aqueles a quem isso for devido». Ele começa o próximo com as palavras «Paguem todas as suas dívidas, exceto a dívida do amor aos outros; nunca terminem de pagá-la! Se vocês amarem aos outros, estarão obedecendo a todas as leis de Deus, e satisfazendo todas as suas exigências» (Rom. 13.8). As ordens detalhadas do decálogo estão todas resumidas na injunção de amar ao próximo como a si mesmo: tal amor não provoca nenhum mal e é o cumprimento da lei. Agora você tem que acordar para um novo amanhecer; parar com as obras das trevas e seguir em frente equipado para o dia. Vista-se com o Senhor Jesus Cristo e não pague nenhum tributo à carne e às suas paixões.

Finalmente vem uma última exortação de tolerância àqueles que são fracos e facilmente transtornados. Se eles têm dúvidas em cima de observâncias relacionadas a festivais ou comida, não seja contencioso. Cristo morreu por todos nós. Você pode facilmente chocar e escandalizar com sua crítica. Não julgue um ao outro; e deixe o Deus da paciência e do conforto guiar você no caminho de Cristo Jesus para que vocês possam unidos glorificá-lo a uma só voz!

Os capítulos finais contam algumas coisas que espera deles e o que planeja para o futuro. Fala sobre o dinheiro coletado na Macedônia e em Achaia para os pobres de Jerusalém, sobre visitá-los e sobre sua viagem para a Espanha. Ele escreve uma advertência afetuosa, e esboça uma longa lista de saudações e mensagens que alguns acham ter sido originalmente endereçadas a Éfeso e posteriormente anexadas a esta carta. É certamente uma saudação por demais extensa e pessoal para constar em um documento tão formal e cuidadosamente ordenado como este. Mas dá ênfase ao seu cuidado pastoral para com os indivíduos, tanto quanto para a fé, a ordem e a unidade da igreja.

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VII - A EXPANSÃO DO PENSAMENTO DE PAULO

Nas últimas quatro cartas - as Epístolas do Cativeiro - vemos poucas mudanças e uma grande expansão do tema central. Até agora o conceito da pessoa e da obra de Cristo desenvolve-se continuamente. Do Messias que nos livrou da Lei e que logo voltará do céu para inaugurar uma nova era, Paulo passa, em Coríntios, ao conhecimento de que Cristo tem de fato não apenas já revelado para nós o Deus dessa nova era como também nos introduzido nela. Em Romanos o método e a extensão de nossa iniciação e a qualidade da comunidade que constitue a meta do processo criativo em Cristo torna-se claro; os detalhes da mudança, «o caminho da salvação» como foi chamado pelos nossos pais, é analisado e explicado em termos que nós ousamos descrever como uma filosofia da história; mas o método preciso e a extensão desta consumação em Cristo ainda esperam discussão.

Assim, é natural que essas duas cartas, aos Filipenses e aos Colossenses, tratassem de dois assuntos, os aspectos sobre a natureza divina, que podem ser vistos em Cristo, como funciona sua mente, conforme nos é revelado em seu ministério, e de Cristo como o arquétipo e a incorporação universal de Deus em sua criação. Filipenses mostra-nos Cristo nos dias de sua carne, esvaziado de egoísmo em sua condição humana, e a revolução que suas servitude humana tornou possível para nós. Colossenses o vê como não apenas como o cumprimento e o protótipo da nova humanidade nova mas como a imagem do Deus invisível, a verdadeira apresentação do divino, e como

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a fonte e consumação de toda criação. Assim, nessa dupla mensagem ele traça para nós a medida da plenitude de Cristo, e descreve a nova perspectiva e o profundo conhecimento tornado disponível para nós em Cristo.

Finalmente, o Apóstolo desenvolve esta visão em um quadro claro da perfeição da realização total; purga sua teologia daqueles elementos pré e sub-cristãos retirados de prévios sistemas e metáforas, legais ou apocalípticos, reais ou mecânicos e que encontraram lugar em suas primeiras interpretações; e mostra como na realidade toda gama da energia divina concebível ao homem tinha sido pela graça de Deus acrescentada a nós em Cristo. Na carta circular que nós chamamos Efésios ele fez o que ele fez em Romanos mais brevemente. Aquilo que escreve está mais para tratado do que para espístola, e ele mostra como o amor e o companheirismo da vida em Cristo nos equipam com pleno conhecimento tanto da totalidade do processo criativo como do detalhamento das obrigações envolvidas em nossa resposta.

A pequena nota para Filemom com sua intimidade e mensagem pastoral é um típico pós-escrito à série. Essa missiva mostra que paralelamente aos mais importantes temas da fé cristã o Apóstolo ainda podia voltar sua mente para um escravo fugido, «meu filho Onésimo, a quem eu ganhei para o Senhor enquanto estava aqui nas minhas cadeias», o qual agora ele devolve ao seu dono.

Aquele profundo e dedicado afeto para com seus companheiros e seguidores não são em nenhuma parte tão vividamente expressos como na primeira destas quatro cartas. Filipos ocupou um lugar bem especial em seu coração; e se nos arriscarmos a pensar em Paulo, especialmente quando jovem, como uma pessoa pouco afeita a demandas por reconhecimento, ou eventuais críticas e exortações, podemos nos convencer da intensidade e da solicitude do amor que tinha por aquela gente. «Só Deus sabe como é profundo o meu amor e a saudade que tenho de vocês - com a ternura de Jesus Cristo. Minha oração por vocês é que cada vez mais vocês

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transbordem de amor pelos outros e que, ao mesmo tempo, continuem a crescer em conhecimento e compreensão espiritual» (Filip. 1.8-10).

O próximo parágrafo mostra a mesma alegria. Ele revela como suas dificuldades resultaram em um avanço em direção a boas notícias; que ele estava na cadeia simplesmente por ser cristão, coisa reconhecida não apenas pelos magistrados como também por todos os demais, e que os irmãos estavam convencidos de que a prisão dele foi por causa de sua ousadia por pregar mais livremente a palavra de Deus. Alguns proclamam o Cristo por inveja, outros por pureza, alguns por amor, outros por puro exibicionismo; mas pelo menos Cristo é anunciado. Realmente, ele é engrandecido em minha pessoa esteja eu vivo ou morto. Por mim preferiria morrer e estaria com Cristo; mas quando penso em vocês eu prefiro viver e algum dia ver vocês todos novamente. Torne sua cidadania merecedora das boas notícias de tal forma que, presente ou ausente, eu possa saber que vocês estão firmes em um só espírito e em um só coração como atletas das boas notícias, nunca subvertidos por seus adversários, nunca apenas compartilhando sua confiança em Cristo mas também seus sofrimentos em Cristo, e participando do mesmo conflito que vocês vêem e ouvem em mim. Assim por toda essa consolação, amor, camaradagem e compaixão, vocês me enchem de alegria, bem como pela condolência e interêsse desinteressado para com os outros em vez de para com vocês mesmos.

Através desta efusão da gratidão ele os conduz ao exemplo de Cristo. Eles podem compartilhar a mesma mente e pensamento do Mestre, realmente. «A atitude de vocês deve ser semelhante àquela que nos foi mostrada por Jesus Cristo, que, embora Deus, não exigiu nem tampouco Se apegou a seus direitos como Deus, mas pôs de lado seu imenso poder e sua glória, ocultando-se sob a forma de escravo e tornando-se como os homens. E Se humilhou ainda mais, chegando ao ponto de sofrer uma verdadeira morte de criminoso numa cruz. Contudo, foi por causa disso que Deus O elevou até às alturas do céu e Lhe deu um Nome que está acima de qualquer outro nome, para que ao Nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a

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glória de Deus o Pai» (Filip. 23-11). A precisão nua do grego - o turbilhão de substantivos e verbos com quase nenhum artigo em toda a passagem - é intraduzível e dá uma impressão de concentração e ênfase sem igual nos escritos de Paulo. O contraste entre divino e humano, a grandeza da auto-entrega, e a realidade e a perfeição daquilo que ainda está por vir. O que vemos aqui não é uma cristologia, como tantas descrições posteriores pretenderam transformar, de um ator divino assumindo um papel temporário. Denota uma completa transformação, um estado sendo alterado inteiramente pelo auto-esvaziamento, o kenosis, possível apenas mediante intervenção divina.

Com este conhecimento a comunidade amada tem que funcionar com temor e tremor a no que diz respeito à sua própria salvação: é claro que Deus que opera neles, tanto no esforço original da vontade como na energia para sua execução. Devem fazer tudo sem murmuração e reclamações: vocês são as crianças de Deus em um mundo distorcido e distraído; vocês tem que brilhar, vocês são portadores da tocha da palavra da vida e eu me orgulho de vocês; porque eu não corri nem labutei em vão. «Se eu tiver que morrer por vocês - mesmo assim ficarei contente, e repartirei minha alegria com cada um de vocês» (Filip. 2.17-18). Ele acrescenta a esta mensagem de alegria a promessa de enviar Timóteo até eles e o aviso do retorno de Epafrodito, que trouxe a oferta deles, que esteve seriamente doente mas que agora já está bom.

Então após uma mensagem adicional de alegria no Senhor ele os adverte contra um tipo especial de malfeitores, auto-mutiladores que chama de «cães perigosos» e que «vangloriam-se na carne». «Entretanto, todas estas coisas que eu antigamente julgava muito valiosas, agora, lancei-as todas fora, a fim de poder pôr minha confiança e esperança somente em Cristo. Sim, todas as outras coisas perdem o valor quando comparadas com o ganho inestimável de cohhecer a Cristo Jesus, meu

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Senhor. Eu pus de lado tudo o mais, achando que valia menos do que nada, a fim de que possa ter a Cristo, de tornar-me um com Ele» (Filip. 3.7-15). Isso marca o crescimento de sua humildade, que começou no momento em que verificou que não poderia salvar-se por ser suficientemente bom ou por obedecer às leis de Deus.

Finalmente ele os adverte mais específicamente contra alguns, aparentemente membros da comunidade, que são de fato «inimigos da cruz de Cristo. O futuro deles é a perdição eterna, pois seu deus é o apetite; eles têm orgulho daquilo que deveria envergonhá-los; e tudo o que eles pensam é nesta vida, aqui na terra» (Filip. 3.18-19), enquanto nós somos os cidadãos do céu (1), e damos boas-vindas ao Salvador, nosso Senhor Jesus Cristo, que reconstituirá o corpo de nossa humilhação transformando-o no corpo de sua gloria. Paulo recomenda que eles se regozijem e repete o lema da epístola, que permitam que sua cortesia (ou «doce racionalidade» conforme Matthew Arnold) seja conhecida por todos . Não se aflijam com nada; ao invés disso, orem a respeito de tudo; repetindo constantemente a advertência de seu Mestre. Contem a Deus as necessidades de vocês, e não se esqueçam de agradecer-lhe suas respostas. Sua paz que ultrapassa todo o intelectualismo conservará a mente e o coração de vocês na calma e tranqüilidade, à medida que vocês confiam em Cristo Jesus.. «E agora, irmãos, ao terminar esta carta, quero dizer-lhes mais uma coisa. Firmem seus pensamentos naquilo que é verdadeiro, bom e direito. Pensem em coisas que sejam puras e agradáveis e detenham-se nas coisas puras e belas que há em outras pessoas. Pensem em todas as coisas pelas quais vocês possam louvar a Deus e alegrar-se com elas». (Filip. 4.8). Foi dito que este é o único verso no Novo Testamento que nos recomenda aquilo que hoje chamamos de «valores». Seguramente, em seu sentido mais profundo, não se trata apenas disso; o amor de Deus inclui todos os valores. O verso se enquadra como uma conclusão apropriada às exortações de Paulo. Ele demole a barreira entre lei e graça; e refuta a idéia de que regras e preceitos específicos

(1) Filipos se orgulhava de ser «a principal cidade de seu distrito, uma colônia romana», veja Atos 16.12.

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possam definir o conjunto integral de nossas obrigações; ele enfatiza que todo o mundo visível é instrumento para o exercício desse amor; e que este amor é universalmente apropriado. É altamente significante que nessa que muito bem pode ser sua última Epístola ele faça uma derradeira exortação aos valores universais e que independente da raça ou coloração religiosa ele os recomende para o pensamento e a prática da Igreja.

Assim, o caminho do amor completa seu círculo. Aqueles a quem tal amor é revelado, na medida em que vêem, experimentam e encarnam este amor, Cristo vê neles, a despeito da evidência do sofrimento e do pecado, o próprio universo. E nós - os pagãos que embora impressionados com o mundo que nos rodeia não ousamos aclamar o amor de Deus ou confessar a Cristo como sua imagem - pelo menos podemos começar a fazer isso de uma outra forma, e como diz Meredith

Diante do coração daquele que fez a rosa
Deveria eu, estremecido, cair?

Assim, a idéia da perfeição e do valor patente, pode nos encorajar a descobrir esses valores harmonizados no mundo, inteligível e explanado em Cristo - ou seja, todo esse nosso mundo é uma preparação. Deveríamos meditar continuadamente em todos os valores descobertos no mundo de nossa experiência, que correspondem à visão da significação cósmica de Cristo, o tema de Colossenses e de Efésios.

Este é o ponto onde o crescimento de sua perspicácia desde a carta aos Romanos revela-se em toda sua plenitude. Ele enfrenta o fato da redenção do pecado vir pela graça, e reafirma a libertação da fraqueza da vontade e da instabilidade da conduta na êxtase da liberdade do Espírito. Mas ele não tinha ainda revelado como esta experiência produziria novos padrões de valor, nova percepção na distinção entre bem e mal e uma nova e constrangedora obrigação ética. Agora, trabalhando em cima de nossa necessidade

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de entrar na mente de Cristo conforme revelado em Jesus e perpetuado na comunidade do seu Corpo, ele responde à questão sobre afonte, o caráter e o conteúdo da ética Cristã. Não se trata aqui de fornecer um novo decálogo, ou oferecer preceitos dogmáticos ou algum sistema de moral cerimonial. Mas isso também não significa a perda de nossa «livre» escolha, em favor do antinomianismo e de especulações em torno de nossas idéias individuais. O amor a Deus e ao próximo, a solidariedade para com a comunidade santificada, a vida «em Cristo», todas essas coisas nos dão o critério perfeito para o coração, a mente e a vontade. Nós «percebemos e sabemos exatamente o que fazer».

No que tange a Filipos, a preocupação do Apóstolo era estabelecer esta solidariedade na comunidade, superar o individualismo e assim prevenir as facções, o ponto fraco de todas as sociedades gregas. Stasis, as perpétuas erupções sectárias e discussões políticas, foram, como perceberam seus historiadores, a ruína do mundo heleno. Eles nunca produziram uma sociedade maior ou mais estável que superasse os conceitos de sua cidade-estado; e mesmo assim - o melhor que conseguiram e por pouco tempo foi a Atenas do tempo de Péricles, por seu brilho e esplendor - nunca tiveram qualquer segurança de sobrevivência ou mesmo qualquer liberdade real em suas discussões internas. Paulo tinha visto em Corinto em suas imediações o crescimento de partidos rivais - «eu sou de Paulo», «eu de Apolo», «eu de Pedro» (1 Cor. 1.12) - e na realidade, a igreja daquela cidade, apesar de todos seus méritos, nunca se tornou um grande centro. Esse hábito grego pelo argumento, controvérsia e cisma revelara-se de uma forma bem clara na Macedônia, mas foi superado pelo apelo à abnegação de Cristo e pela prática do afeto e fraterna lealdade. Uma evidência de sua profunda convicção em torno da edificação do corpo de Cristo é a importância que ele dá ao discipulado, ele realmente dedicou sua própria vida a isso, tanto que ele gasta esta carta, a mais jovial de todas, a este propósito. Ele se esforça ao máximo procurando constranger seus leitores a reconhecer e a experimentar a plenitude de Cristo nas relações pessoais deles, e a amar tão inclusivamente

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que a presença dEle possa se materializar em cada um deles e em suas relações mútuas. Cisma no corpo significa desastre, morte certa para todos os membros infetados por ela: pela destruição do amor o egoísmo desperta, a visão fica turva, e a força da verdadeira sabedoria é corrompida.

A carta aos Colossenses, obviamente semilar em estilo, ocasião, e com abertura saudação quase idêntica, também está preocupada com a plenitude de Cristo, mas em uma conexão diferente. Foi chamada de carta aos intelectuais; e seu objetivo é afirmar a suficiência de Cristo a uma comunidade profundamente interessada em especulações gnósticas e teosóficas. Através dela somos introduzidos a algo parecido com uma espécie de politeismo místico característico da Índia e presente na maioria das religiões orientais, e que exerceu um grande papel no mundo contemporâneo da cultura oriental e judaica, além de figurar em grande parte do desenvolvimento da Igreja primitiva. O gnosticismo, como chegou a ser chamado em sua forma cristã, foi prevalecente e poderoso entre as igrejas mediterrâneas desde o sul da França até a Alexandria: produziu muitos excelentes professores e uma variedade de seitas diferentes, absorveu a atenção e a hostilidade de muitos dos pais primitivos, desde Irenaeus até Epifanius. Os mais sábios dos teólogos ortodoxos, Clemente de Alexandria e Origen, perceberam que por trás de todas as «genealogias» e jargões houveram significativos e valorosos elementos - como indubitavelmente descobrimos quando o cristianismo tornou-se novamente nativo no mundo Oriental. O rígido dogmatismo, insaciável em sua violência e superficialidade: expeliram os gnosticos sem mesmo se dar ao luxo de compreendê-los. Por conseguinte, de lá para cá, a perspectiva e as características gerais do esoterismo nunca deixaram de dar o ar de sua graça. Eles adotam formatos extensamente diferentes e costituem uma multidão de instituições, atraindo em geral pessoas sensitivas, paranormais, e
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freqüentemente gente de temperamento religioso - mas também, introvertidos, exibicionistas e charlatões. Nós não sabemos nada, e a carta nos fala muito pouco a respeito, sobre as convicções particulares dos Colossenses, exceto que eles combinaram elaboradas classificações no plano do mundo invisível - «tronos, domínios, governos e poderes» (Col. 1.16) - com rígida observância de regras com respeito à comida, bebida, festivais, luas novas e sabbaths, e coisas limpas e sujas. Era claramente um tipo de ecletismo muito parecido com o que vemos em nossos dias no mundo dos horóscopos e astrologia, quiromancia e espiritualismo, ioga e reencarnação, tranqüilizantes e mescalina. Separados ou combinados, cada um deles tem seus próprios defensores.

Para os discípulos de Colossos, os quais nunca tinha visitado pessoalmente, Paulo proclama o Cristo em termos de «mistério» de Deus ou «auto-revelação»,(1) e como gostava de fazer, de «plenitude», totalidade (2) ou do divino. Ele tinha, como as cartas dele abundantemente provam, o hábito de apanhar e empregar termos próprios da localidade e do interêsse de seus leitores. Acho desnecessário gastarmos tempo em profundas preocupações procurando definir o preciso significado técnico de cada uma dessas palavras, e tendo em vista nossos propósitos, fazer isso se reveste como algo de pequena importância. Mas o significado de sua principal posição e a relevância dela para nossos dias é óbvia. Estes teósofos poderiam prontamente reservar um lugar para Jesus como um Mahatma ou Senhor da vida interior ao lado de outros membros de sua extensa hierarquia. Naqueles dias quando as igrejas não tinham evoluído, nem formulado um credo, nem enfrentado as longas controvérsias doutrinais dos séculos IV e V, o fato deles dedicar um lugar elevado a Cristo em seu sistema gnóstico, ou mesmo no panteão Greco-Romano, talvez poderia parecer satisfatório

(1) A maneira como essa palavra é usada nesta Epístola parece não ter nenhuma conecção com um mistério-religioso específico.
(2) Pleroma em si mesmo é um termo técnico do gnosticismo: conseqüentemente o uso que Paulo faz desse termo aqui é necessariamente mais específico do que em Efésios ou outras cartas. Cf. C. L. Mitton, Ephesians, pp. 94-7.

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enquanto uma etapa de um processo. Mas aceitar isto em nossos dias significa não apenas quebrar com o monoteísmo judaico mas também prejudicar a singularidade de Cristo. O fato de negar - e nisso Paulo foi radical - a diferença básica entre Deus como Pai e os «muitos deuses e muitos senhores» do paganismo, ou entre a lei e a graça, destrói inteiramente o conceito da integridade do corpo de Cristo e o «esquema de salvação» delineado na Epístola aos Romanos. Tanto que, na seqüência, dando continuidade ao tema do significado cósmico e universal de Cristo ele adota uma linguagem para descrever isso que implica em um avanço adicional em sua compreensão de Jesus, abrindo caminho para a exposição na Epístola aos Efésios a respeito da compensação e consumação de todo processo criativo.A exposição de Paulo vai no sentido da unidade de todo nosso universo de experiências, na medida em que esta unidade se revela a nós em Cristo, encontramos uma base para a integração consciente entre nossa perspectiva e nosso modo de vida, proporcionando à cristandade uma visão maior na escala e no tamanho da fé.

A abertura da Epístola, além do registro da aceitação das boas novas anunciada por Epafras, companheiro de Paulo, não contém nada peculiar a Colossos a não ser uma referencia acerca das coisas que ainda estão por vir. Se Filipenses é a carta da alegria na mente de Cristo, esta é a carta da busca pelo conhecimento e que Paulo procura prover, «a mesma Boa Nova que chegou, até vocês está saindo pelo mundo todo, e transformando vidas em toda parte, tal como mudou a de vocês, naquele primeiro dia mesmo, quando vocês a ouviram e compreenderam a grande bondade de Deus para com os pecadores. Epafras, nosso mui amado companheiro de trabalho, foi quem lhes levou esta Boa Nova. Ele é um escravo de Jesus Cristo, e está aqui em lugar de vocês para nos ajudar. Foi ele quem nos contou acerca do grande amor pelos outros que o Espírito Santo lhes deu. Assim, desde que ouvimos falar a respeito de vocês pela primeira vez, temos estado em oração e pedindo a Deus que os ajude a compreender o que Ele deseja que vocês façam, e que os torne sábios nas coisas espirituais, a fim de que a maneira de vocês viverem sempre agrade ao Senhor e O glorifique, para que vocês sempre façam pelos outros coisas boas e agradáveis, aprendendo em todo o tempo a conhecer a Deus cada vez melhor. » (Col. 1.6-10). A abertura da Epístola, além do registro da aceitação das boas novas anunciada por Epafras, companheiro de Paulo, não contém nada peculiar a Colossos a não ser uma referencia acerca das coisas que ainda estão por vir. Se Filipenses é a carta da alegria na mente de Cristo, esta é a carta da busca pelo conhecimento e que Paulo procura prover, (Col. 1.6; 9-10). Ele une avanço mental com avanço moral e insiste que as especulações estão relacionadas não apenas com problemas intelectuais mas também com relacionamentos pessoais e o desenvolvimento ético deles. Foi na luz de Deus que nós, os prisioneiros das trevas, encontramos nossa liberdade no reino do Filho do amor que é «a semelhança perfeita do Deus
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invisível. Ele já existia antes de Deus criar qualquer coisaa, e, de fato, 16 o próprio Cristo é o Criador que fez tudo no céu e na terra, as coisas que podemos ver e as que não podemos; o mundo espiritual com seus reis e reinos, seus governantes e suas autoridades: todos foram feitos por Cristo para seu próprio proveito e glória. Ele existia antes que tudo o mais começasse e é o seu poder que sustém todas as coisas em conjunto. Ele é a Cabeça do corpo formado pelo Seu povo - isto é, sua igreja - começado por Ele; e Ele é o Líder de todos os que se levantam dentre os mortos, de modo que Ele é primeiro em tudo; porque Deus queria que tudo dEle mesmo estivesse em seu Filho. Foi por meio daquilo que seu Filho fez que Deus abriu um caminho para que tudo viesse a Ele, todas as coisas no céu e na terra, pois a morte de Cristo na cruz trouxe para todos a paz com Deus através de seu sangue. » (Col. 1. 1520).

Foi pela oração que eles puderam permanecer firmes no evangelho universal do qual Paulo é um ministro, ele descreve suas próprias aflições como um complemento às aflições de Cristo «ajudando a completar o resto dos sofrimentos de Cristo pelo seu corpo, a igreja» (Col. 1.24). «Até que finalmente todos creiamos do mesmo modo quanto à nossa salvação e ao nosso Salvador, o Filho de Deus, e todos nos tornemos amadurecidos no Senhor. Sim crescermos a ponto de que Cristo ocupe completamente todo o nosso ser» (Ef. 4.13).

Aceitar a Cristo como Salvador significa uma completa dedicação da vida. Viemos dele, Ele é nossa base, nele somos edificados e sustentados pela fé. «Não permitam que outros lhes estraguem a fé e a alegria com suas filosofias, suas soluções erradas e superficiais baseadas em idéias e pensamentos humanos, em lugar daquilo que Cristo disse. Porque em Cristo existe tudo de Deus em um corpo humano: portanto, quando vocês têm Cristo, têm tudo e vocês têm a plenitude de Deus por meio da sua união com Cristo. Ele é o mais alto soberano, com autoridade sobre qualquer outro poder. Quando vocês foram a Cristo, Ele os libertou dos seus maus desejos, não por meio de uma operação física de circuncisão mas de uma operação espiritual: o batismo das suas almas. No batismo vocês vêem como sua velha natureza pecaminosa morreu com Ele e foi enterrada com Ele; e então vocês ressurgiram da morte com Ele para uma nova vida, porque confiaram na Palavra do poderoso Deus que levantou Cristo dentre os mortos. Vocês estavam mortos em pecados e seus desejos pecaminosos ainda não tinham sido afastados. Então Ele deu-lhes participação na própria vida de Cristo, porque lhes perdoou todos os pecados, e apagou as acusações confirmadas que havia contra vocês, a lista dos seus mandamentos a que vocês não tinham obedecido. Tomando esta lista de pecados, Ele a destruiu, pregando-a na cruz de Cristo. Deste modo Deus
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tirou o poder de Satanás de acusar vocês de pecado e exibiu publicamente ao mundo inteiro o triunfo de Cristo na cruz, onde foram tirados todos os pecados de vocês» (Col. 2.8-15).

Assim Paulo reprovou-lhes suas tendências em observâncias e superstições. Eles chegaram a ser professos adoradores de anjos: quebrando o conceito de membros do Corpo de Cristo «e assim nos tornaremos cada vez mais, e de todas as maneiras, semelhantes a Cristo, que é o Cabeça do seu corpo, a igreja. Sob sua direção o corpo inteiro se ajusta perfeitamente, e cada um dos membros em sua maneira particular auxilia os outros membros, de tal modo que todo o corpo saudável, está em crescimento e chio de amor» (Ef. 4.16). A união com Cristo os salvará da dogmatização em cima de minuciosos rituais, fantasias, falsa humildade e desprezo do corpo - usar o corpo de uma maneira indevida, como auto-flagelação, por exemplo. «A verdadeira vida de vocês está no céu com Cristo e com Deus. E quando Cristo, que é a vossa vida verdadeira, vier de novo, então vocês brilharão com Ele e participarão de todas as suas glórias» (Col. 3.3-4). Aqui está a última ruína da escatologia, e claramente identifica a vinda de Cristo com a manifestação do Corpo dele. Nossa união não é um fixo e final Segundo Advento, mas é aqui a agora, na medida em que e quando sua presença é concretizada na terra.

Ele conclui detalhando qualidades morais e de conduta que envolve a união com Cristo. Primeiro em seu lado negativo, as paixões corporais, indulgência e ganância que são evidências de idolatria, «provocam a ira de Deus», e constituem uma rebelião contra ele. Tudo isso é acompanhado de ira, inveja, malícia, blasfêmia e conversa suja. A verdade tem que controlar todas nossas relações. A casca do velho homem e seus caminhos já são coisa do passado; o novo consiste no completo conhecimento que reflete o Criador; e nele não há grego ou judeu, circunciso ou incircunciso, bárbaro ou civilizado, escravo ou livre; barreiras raciais, rituais, lingüísticas e sociais são superadas; Cristo é tudo em todos. Compaixão, clemência, humildade, bondade, fortaleza, paciência, generosidade, gratidão, perdão como o perdão de Deus, e acima de tudo amor que ele descreve aqui como o cimento da maturidade e o adubo da plenitude do crescimento, amor disponível àqueles que estão na paz de Cristo. A palavra de Cristo deveria morar abundantemente dentro de cada um e com

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toda sabedoria que ela traz consigo: ensinando, aprendendo e usando salmos, hinos e melodias espirituais; e cantando a Deus com seus corações. «E tudo quanto fizerem ou disserem, seja como se vocês fossem representantes do Senhor Jesus, e vão com Ele à presença de Deus o Pai para dar-Lhe graças» (Col. 3.17).

Depois de algumas sentenças curtas instruindo esposas e maridos, crianças e pais, escravos (a mais cumprida) e mestres; ele pede que orem também por ele, que se encontra encarcerado; elogia Tíquico; procede várias saudações e lembranças, e fecha com sua bênção. Não é injusto dizer que estamos aqui mais uma vez diante daquela falta de imaginação criativa que impossibilita Paulo de ilustrar suas exposições através de exemplos claros e naturais, e isso acaba dando um tom frouxo, enfadonho, maçante e formal em suas exortações relacionadas a obrigações sociais mútuas. Jesus em suas parábolas mais longas, e não menos complicadas como as do mordomo injusto ou dos trabalhadores do vinhedo, transporta-nos vividamente para o palco onde ocorre a cena, incitando nosso interesse e despertando nossa simpatia; Paulo quando se refere a matrimônio ou escravidão fala de uma maneira tão óbvia e convencional que parece discrepar em sua ênfase ao amor, à paciência e ao compartilhamento de fardos.

Para nós é realmente uma coisa notável que, pelo menos com respeito a escravidão, o Apóstolo mostre tal frieza. Da mesma forma que alguns versos em 1 Coríntios, as observações feitas aqui (e reafirmadas em Efésios) mostram o chocante panorama dos escravos no mundo romano, o tratamento, e especialmente os impedimentos colocados na vida pessoal, moral e religiosa daquelas pessoas. Não há dúvida que os judeus ricos que observavam os regulamentos acerca do tratamento de escravos no Velho Testamento já estivessem familiarizados com a ergástula da ordem civil, a tirania, a lascívia e a crueldade dos donos de escravos, mas é duro aceitar que um homem tão rígido em
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sua ética individual e tão afetuoso em suas relações humanas fosse tão indiferente diante do sistema social e das iniqüidades sociais de seu tempo. Há alguns poucos pontos em que o cristão moderno percebe mais obviamente a mudança tanto na consciência social como em nossa atitude para a importância e os efeitos do mal social. Apenas quando lemos obras cheias de sabedoria a respeito desse assunto como The Two Moralties, (1) de Lord Lindsay, ou lembramos de John Newton, o autor de «How sweet the name of Jesus sounds», na condição de um capitão de navio ativamente empenhado no tráfico de escravos, é que podemos apreciar o esforço de Paulo no caráter e na primazia do amor Cristão, e sua insistência de que viver em Cristo é viver em um reino de verdadeira família e para todos, o que provou ser no final das contas, pelo menos neste sentido, triunfante.

Desta vida-em-familia, Paulo, apesar de tudo o que foi dito sobre seu puritanismo e misoginia, estabelece claramente o matrimônio como sua expressão e exemplo mais elevado: «que os maridos amem suas esposas como Cristo amou a Igreja» (Ef. 5.25). Como vimos, embora considere a degradação das relações sexuais como conseqüência número um da apostasia humana: pois degradar a religião é degradar a paternidade (Rom. 1.20-25). Ele é um dos primeiros a reconhecer direitos amorosos iguais para ambos os sexos (1 Cor. 7.3,4). Não há nele nenhuma sugestão de que o amor entre os casados seja lascivo ou licencioso, e nenhuma evidência do contraste entre eros e agape que foram afirmados por Dr. Nygren e que constituíram a falha fatal na filosofia sexual de D. H. Lawrence. Nós não devemos aceitar que a severidade das advertências de Paulo contra promiscuidade, prostituição, perversões ou sua aceitação em alguma medida da subordinação da mulher turve o salutar contexto geral de sua atitude ou a sinceridade de seu idealismo.

Esta carta é de alto valor na medida em que vindica e aumenta o clamor da universalidade e da suficiência de Cristo, e prepara para uma apresentação mais completa a respeito disso em sua

(1) pp. 63-75.

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carta aos Efésios - um tratado circular dirigido a nenhum local ou situação específica. Mas com uma abordagem a algumas especulações como aquelas que surgiram em Colossos, assim, suas abordagens sobre o gnosticismo foram necessariamente influenciadas pela educação estritamente judia do Apóstolo e pela sua preferência temperamental à definição lógica. Ele sabia interpretar a escritura hebréia: ele teve algum contato com o pensamento grego e estóico. Ele não tinha evidentemente nenhum conhecimento em primeira mão sobre esoterismo, e nenhuma avaliação natural do tipo de experiência que expressa. Assim ele não pode entrar profundamente nas razões que tornaram isto tão atraente para tantos indivíduos e raças: ele não pode simpatizar com o dom psíquico encontrado neste tipo de misticismo ao ponto de considerá-lo um método natural e nunca impróprio de descrever e analisar a experiência humana. Quase todos nós do mundo Ocidental, parte por herança ou educação, parte pela ignorância de Paulo: não sabemos o bastante para distinguir o perito do charlatão, e se tocamos nesse assunto somos logo evitados ou repugnados por isto. Geralmente rechaçamos o tema como um todo, como ele fez, considerando aquilo como nada mais que o produto de uma imaginação fora do normal ou uma revivificação de superstições desgastadas e na pior das hipóteses como uma exploração deliberada de credulidade humana por gente mercenária ou exibicionista. Há uma necessidade urgente, não apenas para pesquisa psíquica no sentido mais restrito, mas também de reunir de seus pensadores mas representativos, tanto do Oriente como do Ocidente, como foi feito no Colóquio Oriente-Ocidente em Bruxelas na época da Exibição. Mas este lado do problema não será completamente compreendido até que os cristãos adotem para com o esotérico uma atitude muito diferente da de Paulo. Uma vez que a universalidade de cristo é afirmada, isso significa que tanto a filosofia hindu como a budista merecem estudo e uma interpretação simpática. Eles também pertencem ao mundo de Deus, e seguramente podem nos ajudar a apreciá-lo.

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VIII - A PLENITUDE DE CRISTO

A última da série de cartas universalmente descritas como paulinas, independente de ser ou não realmente de Paulo, é um tratado conhecido como «aos Efésios». Esta carta consiste de uma revisão de suas exposições, e em alguns aspectos de uma forma mais profunda, tanto no completo significado da vida em Cristo como na qualidade ética das relações conseqüentes. É considerada por alguns estudiosos como uma recapitulação e um sumário dos ensinamento dos apóstolos; e por outros, talvez com mais justiça, como sua consumação. É obviamente mais íntima que Colossenses, suas seções finais são freqüentemente quase idênticas: mas em sua teologia envolve a extensão e a generalização do conjunto de pensamentos contidos nas duas epístolas examinadas no capítulo anterior. Contém uma rapsódia tão esplêndida quanto a de 1 Coríntios 13. Provavelmente nenhuma passagem de Bíblia descreva a comunidade ideal de uma forma tão perfeita.

Este derradeiro escrito de Paulo tem duas implicações - que a Epístola para os hebreus é de um autor não mencionado que difere amplamente dele em temperamento e teologia, familiar com grego em vez do pensamento rabínico, e lidando com os problemas em circunstancias e de uma forma oposta a do Apóstolo; e que as «Epístolas Pastorais» (1 e 2 Timóteo e Tito), embora muito mais íntimas ao seu ambiente e contendo muitas frases e reflexões paulinas, são fruto do trabalho de um discípulo cujo interesse é manter a tradição e centralizar a administração. É muito difícil de ajustar as insinuações destas três Epístolas Pastorais ao que conhecemos da história subseqüente do Apóstolo, e é mais difícil ainda acreditar que ele tenha perdido toda a amplitude de sua visão, sua confiança no futuro, seu temperamento e paixão,

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de uma forma tão completa. Para este escritor a Igreja tornou-se uma instituição com seus dirigentes oficiais, suas convenções, seu paroquialismo e seu conservadorismo. Qualquer estimativa sobre a participação de Paulo na produção destes documentos [1 e 2 Timóteo e Tito] não pode ser usada com confiança, nem eles proporcionam qualquer grande contribuição.

Mas, como mencionamos anteriormente, a autencidade de Efésios não é universalmente aceita, em termos gerais, mesmo entre os estudiosos ortodoxos; e uma interessante hipótese colocada de uma forma bem detalhada pelo Dr. E. J. Goodspeed fortalece ainda mais as dúvidas deles provendo uma exposição definida de seu caráter e das circunstâncias de sua composição. (1) Ele a associa com uma certa coleção e publicação das Cartas Paulinas, no final do primeiro século. Goodspeed considera a carta aos Efésios uma introdução ao volume dessa coleção recolhida por um «paulino», particularmente familiarizado com os colossenses, mas fazendo menção de nove outras cartas e de Lucas-Atos. Tal teoria, ampliada por outros estudiosos, chama atenção para a importância de Efésios enquanto introdução e recapitulação dos ensinos paulinos. Mas corre o perigo de representar a epístola enquanto fragmentos de palavras e frases selecionadas da série de cartas e carentes em originalidade ou novidade. Mas para aqueles que se preocupam com as diferenças de estilo entre Efésios e as outras cartas genuínas, há um real problema a ser enfrentado. Goodspeed exagera em seus argumentos de que Efésios é uma cópia deliberada, e assume um pano de fundo literário, com suas bibliografias e bibliotecas, para o Novo Testamento, que considera mais apropriado para os estudiosos e modernos pesquisadores do que os cristãos do primeiro século. Ele também recusa admitir o crescimento do pensamento de Paulo na epístola, mesmo mostrando corretamente que certas palavras usadas em Efésios revelam um significado ligeiramente mais desenvolvido do que em qualquer outro lugar - mas um desenvolvimento completamente consistente com sua autenticidade. Ele ignora a grandeza e originalidade dos Capítulos 3 e 4; e quase nem liga

1 E. J. Goodspeed, The Meaning of Ephesians (University of Chicago Press).


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para a evidência crucial de Ef. 3.1-4, onde Paulo explicitamente afirma ter previamente escrito a carta aos Colossenses, o que está de acordo com Col. 4.16, assumindo que seus leitores na Laodicéia já a receberam, além de citar as palavras «economia» (NT) e «mistério» de Col. 1.25,26. Admitida como uma carta circular, como um tratado como Romanos, ou que Marcion estava certo chamando-a de «aos Laodiceanos», podemos seguramente apontar essa doutas e engenhosas hipóteses como não comprovadas. O que mais podemos dizer? Como temos visto, os estudiosos que defendem a originalidade dessa carta fazem isso levando em conta sua marcante diferença de estilo, e particularmente o fato dela conter na maior parte de seu conteúdo questões similares, tanto em significado como muitas vezes em vocabulário, às cartas escritas anteriormente. O escritor que de fato produziu o manuscrito original teria sido Tertius que escreveu para aos romanos (Rom. 16.22)? Teria sido a mesma pessoa usada para escrever Filipenses e Colossenses? A resposta para ambas essas questões é geralmente não. Orações muito longas unidas em uma sucessão de frases conectadas são contrárias a qualquer coisa que o Apóstolo tenha enviado para outros lugares. Este escritor amarra longas seções em parágrafos irrompíveis de discurso que são em outro lugar informados, resumidos e separados, mas freqüentemente repetidos, em orações. A meu ver, isso não torna a leitura mais fácil de compreender: mas dá suavidade de ritmo, distinto da brevidade das anteriores.Com relação a isso, um estudioso que produz um sumário poderia agir assim, há algumas frases notavelmente novas e pelo menos duas passagens extensas que são originais e criativas, mas em completa harmonia com as tendências do pensamento desenvolvidas pelo Apóstolo. Um tratado em vez de uma carta enviado primeiro à Laodicéia, escrito logo após Colossenses e com uma referência definida para isto, (1) mas ditado a um escriba diferente e em um humor mais tranqüilo - talvez seja esse o caso que melhor descreve o que aconteceu. Seu tema,

1 Ef. 3.3, referindo-se a Col. 1.25-6: cf. C. Gore, Ephesians, pp. 11-0-1
(NT) Em inglês «economy», no sentido de «to be economical» ou ocultar algo deliberadamente do conhecimento público. «Deus me enviou [...] para revelar seu plano secreto a vocês, os gentios. Porque através de séculos e geraçõs passadas Ele guardou este segredo, porém agora, finalmente, foi do seu agrado revelá-lo àqueles que O amam e vem para Ele; e as riquezas e a glória do seu plano são também para vocês, os gentios. E este é o segredo: que Cristo no coração de vocês é a sua única esperança de glória.» Col. 1 25-27, ênfase minha)

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como o tema de suas cartas anteriores, é a unidade de estar em Cristo, a unidade da natureza e da conduta em meio a uma diversidade de funcões e de preparo que constitui a comunidade santificada do Corpo e a consumação de sua natureza e propósito. É claramente uma carta circular, não uma carta endereçada a Éfeso onde o Apóstolo viveu e trabalhou durante tanto tempo: tanto que ela não contém nenhuma saudação, nem nomes exceto o de Títico que presumivelmente foi o encarregado de transportá-la, nem referências locais ou instruções específicas.

Psicologicamente soa como o trabalho de um homem em idade avançada: seu autor olha para um passado longíquo, longe das paixões e perigos do passado, repete as frases que encarnam os lampejos mais elevados de suas experiências, e tece suas recordações no contexto de uma vida plena. Há um senso de perfeição na mensagem resultante; a penitência por ter perseguido a Igreja, a pungência de sua lamentação para com Israel, a tensão das suas lutas contra o mal e seus assaltos que, embora ainda evidentes, já não quebram a calma do seu espírito. Se não atingiu ainda, pelo menos alcançou a visão de sua meta: ele pode ver sua vida de trabalho como um todo e pode recapitular e consumá-la proclamando a universalidade e a unicidade em Cristo na ordem cósmica como um todo. Ele é uma pessoa que está agora entrando dentro dessa ordem, na paz de Deus, e convocação seus discípulos a agir conforme essa paz.

Depois de uma saudação simples a Epístola começa com um parágrafo de vinte e quatro linhas impressas em grego, sem um único ponto final, exigindo uma cuidadosa leitura. A primeira seção é um ato de adoração que parte para o louvor a Deus em três títulos, cada qual introduzido por um particípio. «Deus, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos abençoou com todas as bênçãos do céu porque nós pertencemos a Cristo! Muito antes de criar o mundo, Deus nos escolheu para Lhe pertencermos, por meio do que Cristo faria por nós; naquela época Ele decidiu fazer-nos santos aos seus olhos, sem uma única falta - a nós, que nos encontramos diante dele cobertos com o seu amor. Seu plano imutável sempre foi adotar-nos em sua própria família, pelo envio de Jesus Cristo para morrer por nós. E Ele fez isto porque quis! [...] Deus nos revelou sua razão secreta para enviar Cristo, um plano que Ele em misericórdia traçou há muito tempo; e este era o seu propósito: quando o tempo for propicio, Ele nos reunirá a todos, onde

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quer que estejamos - no céu ou na terra - para estarmos com Ele, em Cristo, para sempre» (cf. Ef. 1.3-10). A novidade aqui está na ênfase de que o propósito de Deus já estava determinado, um tema tocado em Romanos 8 mas que é aqui relacionado ao conjunto total do movimento da vontade de Deus. Nossa vocação é uma expressão do plano divino para o mundo; não em termos de predestinação no sentido da seleção individual, mas controlado pelo amor universal de Deus e isto necessariamente envolve nossa liberdade como filhos e não como escravos ou robôs. Isto não implica, como declarado aqui, que outros não sejam selecionados, ou que sejam destinados à danação. Pelo contrário, Paulo vê todo o processo criativo como um propósito, não mais vedado ao conhecimento público, rumo a uma completa expansão do tempo e descobre sua unidade e sua plenitude em Cristo. Ele vai nessa direção, e define seu próprio estado em Cristo. «Além do mais, devido àquilo que Cristo fez, nós fomos oferecidos a Deus como dádivas nas quais Ele se compraz, pois como parte do plano soberano de Deus fomos escolhidos desde o princípio para sermos dEle, e todas as coisas estão acontecendo tal qual Ele decidiu desde o princípio do mundo. O propósito de Deus nisto era que louvássemos a Deus e déssemos glória a Ele por ter feito estas coisas poderosas por nós, que fomos os primeiros a confiar em Cristo» (Ef. 1.11-12). He concludes by direct reference to his readers. «E por causa daquilo que Cristo fez, todos vocês também, qua ouviram a Boa Nova sobre a maneira de ser salvos e confiaram em Cristo, foram marcados pelo Espírito Santo como pertencentes a Cristo, o qual há muito tempo havia sido prometido a todos nós, os cristãos. Sua presença em nosso íntimo é a garantia de que Deus realmente nos dará tudo quanto prometeu; e o sinal do Espírito dobre nós significa que Deus ná nos comprou e que Ele garante levar-nos para Si mesmo. Esta é justamente mais uma razão para que louvemos o nosso glorioso Deus» (Ef. 1.13-14).

Isso é seguido por uma sentença quase que igualmente longa que expressa suas orações àqueles aos quais Deus dará por completo o espírito de sabedoria e da revelação de Seu conhecimento. «Oro para que seus corações sejam inundados de luz, a fim de que vocês possam ver alguma coisa do futuro que Ele os chamou a partilhar. Quero que vocês compreendam que Deus enriqueceu porque nós, que somos de Cristo fomos dados a Ele! Oro para que vocês comecem a compreender como é incrivelmente grande o seu poder para ajudar aqueles que crêem nele. Foi esse mesmo grandioso poder, que levantou a Cristo dentre os mortos e O fez sentar-Se no lugar de honra no céu, à mão direita de Deus, muitíssimo acima de qualquer outro rei, governador, ditador ou líder. Sim, sua honra é muito mais gloriosa do que a de qualquer um outro, seja neste mundo, seja no
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mundo futuro. E Deus colocou todas as coisas debaixo de seus pés e O fez o Cabeça da igreja que é o seu corpo, repleto dEle mesmo, que é o Autor e Doador de todas as coisas em toda parte» (Ef. 1.18-23). Então ele lembra que antigamente eles percorreram maus caminhos «seguindo a multidão e eram bem iguais a todos os outros, seguindo o poderoso príncipe do poder da presunção que está operando agora mesmo no coração daqueles que estão contra o Senhor» (Ef. 2.2), mas que agora foram salvos pela graça através da fé, não pelas suas próprias obras, mas pela obra de Deus gerada em Cristo e que resultou em boas obras que Ele preparou para nós.

Eles sempre têm que se lembrar que foram gentios um dia, aparte de Cristo, alienados da comunidade de Israel, estranhos à convenção das boas notícias, sem esperança e sem Deus no mundo. A morte de Cristo mudou tudo os trouxe também para perto dele. Ele é nossa paz; ele fez isso por judeus e por pagãos, demoliu o muro que os dividia, e por essa incorporação anulou a inimizade entre eles, isso é, a lei dos mandamentos e dos decretos, para fazer dos dois um novo homem. «Agora vocês já não são mais estranhos a Deus e estrangeiros no céu, mas sim membros da própria família de Deus e cidadãos do país de Deus, e pertencem à casa de Deus como todos os outros cristãos. Vejam o alicerce sobre o qual vocês se encontram agora; os apóstolos e os profetas; e a pedra de esquina do edifício é o próprio Jesus Cristo! Nós, os que cremos, somos cuidadosamente colocados juntamente com Cristo como partes de um templo a Deus, belo e em constante crescimento. E vocês também são unidos a Ele, e uns aos outros, pelo Espírito, e formam parte desta morada de Deus» (Ef. 2.19-22).

A primeira metade do tratado fecha com uma nota pessoal moral. Paulo, o prisioneiro do Senhor, suplica-lhes perceber como ele acabou recebendo o segredo aberto de Cristo, previamente desconhecido mas agora descoberto aos seus apóstolos e profetas, de que realmente os gentios agora compartilham plenamente da herança, do corpo e da comunidade das boas notícias em Cristo. «Imaginem só! Embora eu nada tivesse feito para merecê-lo, e ainda que eu seja o cristão mais inútil que há, ainda assim fui escolhido para ter esta alegria especial de falar aos gentios da Alegre Nova dos tesouros infindáveis acessíveis a eles em Cristo» (Ef. 3. 8). Assim, a igreja levará ao conhecimento dos altos governos e poderes as «mais variadas colorações» da sabedoria de Deus. E então faz sua grande oração:
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«Quando penso na sabedoria e na extensão do seu plano, eu caio de joelhos e rogo ao Pai de toda a grande família de Deus - alguns deles lá em cima no céu e outros aqui embaixo na terra - que de seus recursos gloriosos e ilimitados Ele conceda a vocês o poderoso fortalecimento interior dado pelo seu Espírito Santo. E oro para que Cristo se sinta mais e mais à vontade em seus corações, morando em vocês à medida que confiarem nEle. Que vocês aprofundem suas raizes no solo do amor maravilhoso de Deus; e que possam ser capazes de sentir e compreender, como devem todos os filhos de Deus, quão extenso, quão largo, quão profundo e quão alto é, na realidade, o seu amor; e por si mesmos experimentar este amor, embora seja ele tão grande que vocês nunca verão o seu fim, nem o poderão conhecer ou compreender completamente. E desta maneira, finalmente, vocês ficarão repletos do próprio Deus» (Ef. 3.14-19). Assim ele celebra a universalidade e a majestade do divino, a eficácia da realidade de sua presença em nós, e por conseguinte a perfeição da comunidade que é nossa. «Agora, glória seja dada a Deus, que pelo seu grandioso poder operando em nós é capaz de fazer muito mais do que nós jamais ousaríamos pedir ou mesmo imaginar, infinitamente além de nossas mais sublimes orações, anseios, pensamentos ou esperanças. A Ele seja dada glória por todo o sempre, pelos séculos sem fim, por causa de Seu plano soberano de salvação para a igreja por meio de Jesus Cristo» (Ef. 3.20-21).

A segunda metade da Epístola é uma versão alongada e fortalecida do que foi dito em Cosossenses, na medida em que lida com os mesmos assuntos, na mesma ordem e freqüentemente com as mesmas palavras. Determina assim um esboço geral da expressão prática da fé universal e de como ela funciona nas simples circunstancias das vidas humanas e nas condições do primeiro século cristão. Não apela para detalhados comentários; não toca na grande questão da obediencia civil discutida em Romanos, nem acrescenta conselhos aqui ou ali. Mas é precedido por um dos mais familiares, e durante os últimos cem anos um dos mais amados temas de tudo quanto Paulo escreveu, a rapsódia na unidade e da integração no Corpo de Cristo, uma passagem que assume e completa o hino do amor cristão de 1 Coríntios, e é o pleno desenvolvimento da idéia da simbiose ou da materialização da vida esboçada naquela carta.
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Seguir em frente permanecendo merecedor de tal chamado significa não apenas paciência mútua, mas o esforço contínuo para a manutenção da unidade espiritual na sociedade da paz. Há apenas um corpo e um só espírito; unidos em sua vocação e em sua esperança: há apenas um senhor, uma fé, um batismo, um Deus e um Pai de todos que está acima de todos, por todos e em todos.

A cada um de nós foi dado determinado dom e graça: cada um de nós tem sua função na amálgama dos santos em seu trabalho e em seu serviço, construir o corpo de Cristo, «até que finalmente todos creiamos do mesmo modo quanto à nossa salvação e ao nosso Salvador, o Filho de Deus, e todos nos tornemos amadurecidos no Senhor. Sim, crescermos a ponto de que Cristo ocupe completamente todo o nosso ser. Então não seremos mais como crianças, sempre mudando nossa idéia a respeito daquilo que cremos porque alguém nos disse uma coisa diferente, ou habilmente nos mentiu, e fez que a mentira soasse como verdade. Em vez disso, seguiremos com amor a verdade em todo tempo - falando com verdade, tratando com verdade, vivendo em verdade - e assim nos tornaremos cada vez mais, e de todas as maneiras, semelhantes a Cristo, que é o Cabeça do seu corpo, a igreja. Sob sua direção o corpo inteiro se ajusta perfeitamente, e cada um dos membros em sua maneira particular auxilia os outros membros, de tal modo que todo o corpo saudável, está em crescimento e cheio de amor» (Ef. 4.13-16).

Finalmente, nesta grande sentença, o princípio biológico da simbiose, um novo princípio ao nível da divina comunidade humana universal, encontra expressão. Para nós ele

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significa co-pertinencia, ou cristificação, do gênero humano em uma única personalidade orgânica. Como os átomos na molécula, como as células na criatura viva, como os cromossomos no zigoto, como os elementos analisáveis no indivíduo integrado, como os vários membros na vida-familiar de nossos sonhos, os sujeitos homens e mulheres assim combinados pela energia unificadora do amor de Deus em Cristo emergindo como uma verdadeira encarnação de seu Espírito no mundo. Da mesma maneira que amor foi descoberto como capaz de libertar das distorções gêmeas da exploração e do sentimentalismo, como um novo cumprimento da aspiração passada e da criatividade presente, e como o atributo do próprio Deus, manifesto a nós em termos de nossa própria humanidade por Jesus e tornado universalmente disponível na medida em que nós compartilhamos seu Espírito, agora repentinamente se descortina diante de nós os vastos e diferentes povos do mundo transformados em Cristo na irmandade de uma verdadeira comunidade, na medida em que compartilham a mesma lealdade, servindo a mesma causa, e inspirados pelo mesmo amor.

Assim, vemos como Paulo apresenta nossa total humanidade cumprida em Cristo, uma humanidade focada, representada e encarnada em Jesus. Um breve lampejo do arquétipo humano, universal expandido na visão do Apóstolo até ser consumado em uma manifestação cósmica da humanidade divina que a tudo engloba.

Mas isso não é tudo. O mesmo processo, agora reconhecido, ocorreu nas fundações desse nosso universo como uma história ordenada, com origem e desenvolvimento, e que pode ser investigada - uma história na qual pela sua imensidão e complexidade temos apenas recentemente prestado a devida atenção. Agora, finalmente, estamos em posição de ver sua continuidade embora ainda não seja possível fornecer explicações mais detalhadas das fases anteriores. Podemos pelo menos rejeitar as relíquias dos velhos catastrofismos e da tendência por representar a criação como vários atos intrusivos onde cada qual representa uma nova e independente época. Podemos afirmar que os velhos dualismos, matéria e mente, necessidade física e psíquica, inanimado e animado necessitam de um cuidadoso escrutínio, e que ao invés sucessões de fases contrastadas de progresso procuremos por evidências não meramente de analogias mas de identidades, como simples manifestações coordenadas de uma crescente consciência
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e cooperação. Agora que começamos a compreender por quais princípios a incrível complexidade da molécula de ADN atinge sua completa estrutura e função, não tardará até que penetremos na relação, no sentido e no significado das classificações físicas, químicas, psíquicas e conscientes de nossa natureza. Logo estaremos em condições de mostrar como a coordenação, sob estímulos primários de atração e repulsão, elaborou tipos simples de consciência ao longo das especializadas linhas de interpretação, que por sua vez conduziu aos métodos expressos do desenvolvimento orgânico-sensitivo, e como a precisão e a comunicação possibilitaram a expansão e a diversificação, embora de uma forma limitada e distorcida, do range original da experiência.

Quando Paulo insiste que o amor é o verdadeiro cimento da vida madura, e que na medida em que é livremente exercitado ele dá origem a sua própria expressão em termos do verdadeiro conhecimento que é objetiva e proporcionalmente a compreensão de Deus e de nosso próximo. Isto, por sua vez, conduz a uma atividade controlada e coerente dentro da comunidade como um todo, que projeta para nós um quadro de todo o processo criativo não em termos de um sistema acadêmico de pensamento ou de um código legalizado de comportamento, mas em termos de um modo de vida cujas condições nos permitem solucionar antíteses entre indivíduo e sociedade, liberdade e ordem, diversidade e unidade, pela espontânea e intricada atividade coordenada de toda a comunidade na qual a totalidade de sua vida universal cumpre-se em si e por si mesma. Esta visão, como ele a apresentou, significou a gama e a escala de um novo conceito, na medida em que cumpria a aspiração grega relativa à unidade na diversidade e sua tradução em termos humanos por Platão em sua República, e que foi pressagiado ainda com mais clareza pelo próprio Paulo na tradição profética de Israel da missão e do triunfo do povo de Deus, mas estabelecendo a homologia do microcosmo e do macrocosmo e a complexa harmonia

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do todo com uma concreção e uma consistência que nenhum profeta anterior jamais revelara.

Se por enfatizar a universalidade da comunidade parecemos sugerir uma plana e monótona sublimação de todas as peculiaridades, nunca devemos nos esquecer que toda vez que Paulo menciona a unidade do organismo ele tem o cuidado de insistir na necessidade e na importância da diversidade das funções executadas por suas múltiplas partes. Muito mais que em qualquer igreja institucional partidária, inclui o Corpo de Cristo e é dependente das atividades distintas mas cooperativas de cada um dos vários membros que o compõe. À primeira menção do Corpo em 1 Coríntios 12, quando ele vindica a importância de cada elemento que participa dele, ele lista oito grupos separados de trabalhadores-apóstolos, profetas, professores, especialistas, médicos, ajudantes, guias e poliglotas. Em Romanos 12, onde omite apóstolos, ele menciona sete «dons» não exatamente idênticos à sua lista anterior. Em Efésios 4, quando está especialmente preocupado com a expansão missionária, ele nomeia cinco tipos de trabalhadores.

O fato é que todo seu conceito é moldado em torno da idéia de relações. Ele recusa o engano do analista que divide um todo coerente em uma multiplicidade de partes separadas para depois afirmar que estes componentes individuais são os elementos originais e verdadeiros, e ele recusa outro erro, o de fundir todas as especialidades em uma massa composta e igualmente uniforme, para depois afirmar que tal combinação envolve identidade. Assim, em sua comunidade há lugar para as infinitas variedades da capacidade e da atividade humana individual, contanto que seja desenvolvido e exercitado dentro do contexto do organismo complexo integral, para seu total bem-estar e coesão, e na plena harmonia da simpatia e do serviço mútuo. Ele está atento ao duplo risco que envolve reivindicações particulares, seja para deveres específicos seja para vantagens secionais, que podem ser coercitivas ao provocar discussão, ou que no
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interesse de conformidades externas, genuínos «insights» acabem sendo negados ou criativas aventuras acabem sendo abortadas. Por mais que o amor presuma o direito de melhorar a amistosa associação com os vizinhos ou aumentar a complascencia para com eles, não falar a verdade coloca em perigo tanto a associação como a complascencia. O amor é dirigido não apenas ao próximo mas também a Deus, e seu Cristo ganhará sua verdadeira perspectiva, sua verdadeira proporção, e seu verdadeiro reconhecimento tanto nos direitos como nas nessessidades de todos os demais membros da comunidade.

Dentro da energia integral do Corpo de Cristo há lugar para uma larga e flexível versatilidade de funções, há uma gama de particularidades que constantemente encantarão e enriquecerão aqueles que, sem inveja ou enfado, as apreciam, e para uma fusão criativa de talentos e de descobertas que constantemente se renovam e inspiram o desenvolvimento total da vida do coletivo. Todos serão de Deus e Deus operará tudo em todos, com cada qual em seu devido lugar, compartilhando a aventura humano-divina.

Muitos cristãos podem pensar que Paulo nunca defendeu, nem tampouco sustentou, dessa forma tão madura e com tão apaixonada convicção, uma teologia tão universal, tão integrativa e tão brilhante. Podem pensar que este mundo, falido, corrupto, perverso dificilmente virá a ser um dia o cenário da vinda do Reino onde Deus fará sua vontade «na terra como no céu». Podem pensar que isso certamente é algo não apenas manifestamente utópico como teologicamente errôneo. Geralmente, tais pessoas consideram as explicações de Paulo, como relata o autor de 2 Pedro, «difíceis de entender» (2 Pedro 3.16), embora talvez raramente tenham se dado ao trabalho de lê-las. Mas como é que o homem pode transplantar a simplicidade e a bondade de Jesus para um sistema dogmático e institucional? Como o homem pode usar de autoridade para confundir cristãos em doutrinas totalmente depravadas, doutrinas que negam a religião natural e não dão qualquer valor ao esforço humano, em troca da obediência a toda espécie de autoridade civil estabelecida que vai desde Hitler até o Senador McCarthy - não dando outra alternativa exceto a aceitação da predestinação,
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da danação, e da literal e final Segunda Vinda? Será que tais idéias não apenas contradizem explicitamente o cristianismo, como também progressiva e definitivamente o abandonam, mudam e substituem?

Precisaria de vários volumes para provar capítulo-a-capítulo, verso-a-verso quão freqüentemente todos estes erros - e outros - tem sido imputados ao grande apóstolo, e traçar os efeitos que isso teve e ainda têm na cristandade e no mundo. Nossa preocupação aqui não é discutir detalhadamente tais passagens, como muitos fazem, para provar esta ou aquela doutrina, mas partir do princípio que qualquer leitor que estude o texto, o faça não como um oráculo infalível, divorciado de seu contexto e freqüentemente mal traduzido, mas como cartas genuínas, fazendo assim, poderá conhecer a mensagem que o autor queria transmitir. Ele descobrirá logo que embora Paulo estivesse profundamente preocupado com o pecado e o sofrimento, ele quase nada teve a dizer sobre diabo ou inferno, sobre julgamento final ou danação perpétua, nada sobre credos ou direito canônico. Ele é realista naquilo que conhece e é perspicaz e honesto sobre a guerra em nossos membros, sobre a maldade do gênero humano, e sobre a dificuldade e as demandas do caminho cristão. Mas ele também sabe, e sempre da maneira mais clara possível, sobre a supremacia de Deus, sobre o poder e sabedoria do amor dele, sobre a total suficiência da encarnação dele em Jesus Cristo, e sobre a presença e energia disponível do Espírito Santo que Ele enviou. Embora os homens o desapontem - como ele desaponta a si mesmo - ele nunca se desespera. A longa lista de experiências contrastantes e correlatas que ele narra detalhadamente (veja especialmente 2 Cor. 6. 1-10; 11.16 e 12.10) não deixa dúvidas, ele jamais subestimou o custo e a dor de nossa lida, nem jamais cedeu ao mórbido abandono da confiança e da esperança.

O fato é que - por mais difícil que seja dissociar Paulo dos complexos e múltiplos embaraços do paulinismo e das inúmeras controvérsias sobre justificação
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pela fé, fé e obras, determinismo e livre vontade, o significado de apocalipse, a relação do Cristo Ressussitado com o Espírito Santo, e do próprio Paulo com Jesus - o resultado dessa dissociação, embora longe de ser simples, não deixa de ser pertinente, e - quem pode honestamente negar isso? - bem mais inteligível. Nele nós temos o mais claro e melhor documentados de todos os registros do impacto qie Jesus exerceu sobre seus contemporâneos. Vem, e neste respeito é único, de alguém que revelou o próprio caráter e habilidade, temperamento e interesses com uma eficácia digna de admiração por parte qualquer psicólogo - revelou a si mesmo não em um ou outro momento, mas em uma série de cartas ao longo de vários e atribulados anos, desnudando-se em uma variedade de colocações e circunstâncias. O retrato resultante, embora revele muitas mudanças de perspectiva, devidas tanto ao crescimento do auto-conhecimento como em seu notável poder em responder as lições da experiência, mostra um consistente e evidente crescimento tanto no entendimento como na concentração.

Ele é um homem confrontado com uma súbita e tipicamente revolucionária conversão quando uma forte mas inconfessa convicção foi resolutamente reprimida e oculta por ações diretamente opostas a ela, até que por fim sua validade é repentinamente estabelecida para ele de uma forma visível e audível. Então ele não só reforma sua carreira mas - por ser Paulo, alguém que não pode deixar sua mente insatisfeita - toda sua filosofia, mentalidade e centro de interesse. Normalmente somos tentados a supor que isto envolve um exame especulativo de possíveis teorias, no sentido de uma investigação escolástica visando à substituição da teologia e da ética aceita por sistemas mais apropriados às novas perspectivas. Mas a mente de Paulo em vez de acadêmica é prática: o interesse dele está nas pessoas e na maneira como elas agem, não em problemas e soluções para esses problemas. O centro de interesse de Paulo é como responder a Cristo e encontrar nele um modo de vida em substituição ao Torah. Um homem com
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grande poder de concentração, que depois de sua conversão, centrou toda sua atenção em Jesus e, como vimos, a partir daquele momento deu início um contínuo desenvolvimento, mas não em termos de um processo completamente ordenado. Tratava-se de um homem dotado de uma extensa educação, mas totalmente dedicado no sentido de alcançar o que mais tarde chamou de plenitude em Cristo. Ele tenta interpretar uma pessoa conhecida, seu Senhor; não criar um culto, uma lenda ou uma teologia.

Esta é uma questão de importância. Houve muitas tentativas de tratar o Apóstolo como um sincretista e de sugerir que a estima que ele tinha por Jesus foi influenciada por religiões misteriosas ou tendências originárias de cultos e idéias, demonologias e teosofias muito comuns em seu tempo. É inegavel que, como notaram os atenienses, ele estava pronto a pegar termos correntes dos lugares onde discussava, termos relacionados a práticas esportivas ou a conferências de intelectuais, e que usava-os para ilustrar seus discursos de forma a torná-los compreensíveis e suficientemente claros, mesmo com suas metáforas nem sempre se encaixando de uma forma exata, mas daí concluir que ele era dotado de uma espécie de imaginação criativa e original em sua apresentação de um retrato sintético de seu Mestre, é atribuir-lhe qualidades que definitivamente não possuia. Agir assim não estaria de acordo com seu caráter e apenas poderia ser aceito se pudéssemos provar que ele nunca vira nem se preocupara com Jesus, mesmo depois de sua conversão, se ele não tivesse nenhum contato com outros que o tinham conhecido, se podemos localizar a assimilação das suas idéias ou histórias em fontes não cristãs, ou se o quadro dele discrepasse com o que conhecemos de Jesus em outras partes e mostrasse sinais de contradições internas. Nada disso é consistente enquanto prova. A semelhança entre o Jesus dos Evangelhos e o Jesus Cristo de Paulo, tanto em caráter como em eventos, é significativamente forte demais para para ser acidental. João Marcos e Barnabás foram seus companheiros de viagem e ele passou muitos anos na companhia de cristãos. Ele não mostra nenhum conhecimento explícito de qualquer culto misterioso e uma provável insinuação em Gal. 5.12
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é violentamente contemptuosa. Com excessão de uma citação de Aratus,(1) e outra de Menander,(2) não há qualquer referêcia a estas coisas sobre qualquer literatura grega ou mitológica. E nós vimos que sua crescente compreensão da estatura e do significando de Cristo é o resultado natural de sua própria crescente experiência e devoção. Ele chama a si mesmo de escravo de Cristo; e leva isso a sério. Ele segue, estuda e imita o grande Original. Qualquer um que leia sobre o ministério e o impacto de Jesus apreciará a maneira como Paulo intimamente respondeu àquele impacto depois dos primeiros discípulos. Jesus viveu na terra a vida do Reino: Paulo viu e descreveu sua visão do que tal vida poderia ser.

Se, para nós nestes dias de oportunidade e de responsabilidade quando a comunidade mundial se tornou uma necessidade, as boas notícias de Paulo parecem uma incrível Utopia, seguramente há duas coisas para ser dito.

Não temos nenhum direito de enfrentar a evidência argumentando que esta interpretação da vida «em Cristo» não é o que ele disse ou o que ele queria dizer. Não seria justo ele agarrar-se na escatologia de Tessalonisseses, que ele manifestamente descartou como um elemento secundário e temporário em seu pensamento, e usá-la rejeitando o conceito do Corpo e do Espírito que tomou o lugar daquela escatologia, tornando-se claramente sua convicção madura e dominante. Nem temos que seguir o conselho dele sobre obediência aos poderosos, que soa como abrir mão de todas nossas responsabilidades políticas e econômicas, se fizermos isso hoje ficamos ao lado de César, e subordinamos nossa religião às exigências do poder poder político ou na defesa de nossos padrões de vida. Se somos constrangidos a rejeitar o ensino claro da Oração do Senhor ou dos quadros do amor e da comunidade de Paulo,

(1) Atos 17.28, onde ele cita um estribilho de Phenomena.
(2) 1 Cor. 15.33: cf. A. Koerte, Menander Fragmenta, vol. ii, p. 74, atribuído a Thais.

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não nos resta outra coisa senão admitir que renunciamos o próprio Cristo. Ou seja, que retiramos aquilo que é essencial na mensagem das boas novas, que «o Reino de Deus está próximo» e torcer ou descrer disto. Browning estava certo quando disse «como é duro ser cristão». Vamos admitir que realmente seja muito difícil: mas isso não significa que devemos negar sua natureza, nos acomodar ou por causa disso nos escondermos detrás de nossas necessidades estratégicas ou materiais, ou de nossas próprias pressuposições apocalípticas e teológicas.

De qualquer forma deveríamos pelo menos nos lembrar de uma das mais significantes inspirações para a fé e prática cristãs dos tempos modernos. Os homens e mulheres que fundaram o World's Student Christian Federation, que lançaram o Conselho Missionário Internacional em Edimburgo em 1910 e que planejaram o Movimento Ecumênico. Eles tiraram sua inspiração precisamente desta convicção da comunidade cristã universal. Foi com esperança e comprometimento, não com loucura ou arrogância como é sugerido tão freqüentemente hoje, que eles assumiram a meta de «evangelizar o mundo de sua geração». Com tal ideal, e uma teologia cristã conectada com um conjunto de idéias e doutrinas visando assegurar a liberdade individual na política, moral ou religião, dentro da sociedade, eles trabalharam poderosamente, muitas vezes e em muitos aspectos enfrentando barreiras mais difíceis do que aquelas que encontramos em nossas práticas convencionais. Não podemos nos esquecer também que por trás deles havia uma grande sucessão dos professores, estudiosos e santos que encontravam e compartilhavam das mesmas fontes para a vida e para o trabalho que realizavam. Foi de Efésios 4 que Frederick Denison Maurice extraiu a base que submeteu à primeira Conferência das Sociedades Cooperativas presidida por ele em 1854, que resultou em uma das principais influências formativas do movimento operário e da revolução social. Maurice, «um homem feito para a unidade», empenhou-se de tal forma que fez seu próprio o ideal do Corpo de Cristo em termos de uma teologia e de uma visão social diretamente derivada de Paulo e dos Evangelhos. Os homens o saudaram como um profeta ou o despediram como um sonhador: mas a influência dele nesses mesmos homens foi bem mais forte do que ele pudesse
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perceber em sua humildade, e cresceu continuamente com os anos. Como Paulo, mesmo se fosse um sonhador, seus sonhos pelo menos se tornaram realidade. Poucos outros homens, cristãos ou não, tiveram uma realização tripla tão valiosa. Ter fundado a primeira escola de nível superior para mulheres, ter iniciado a produção cooperativa e presidido a primeira conferência cooperativa, e ter sido o criador da primeira universidade para trabalhadores - isso é evidência da eficácia do sonho dele; e se nós consideramos a multidão de atividades sociais criadas e desenvolvidas pelos homens e mulheres que se inspiraram diretamente nele, reprová-lo chamando-o de utópico é evidentemente absurdo.

Paulo o sonhador é também Paulo o corajoso. Junto com sua perspicácia religiosa e dom da interpretação ele teve também o desejo de colocar a visão dele em ação, a energia para iniciar e levar a cabo esforços práticos, e algo do gênio do estrategista em agarrar oportunidades inesperadas e adaptar seus recursos às demandas imediatas. Ele se manteve adaptado para qualquer emergência, seus planos ajustáveis e seu programa elástico. Se o Espírito o guiasse para entrar na Ásia, ele entraria por Mísia; se novamente ele fosse guiado para entrar na Bitínia, ele voltaria pela costa via Troas e assim receberia o chamado na Macedônia. O labuta que empreendeu e os sofrimentos que suportou lhe deram experiência e criaram o aumento em suas perspectivas que nutriram seu crescimento na escala e na proporção de sua fé.

Suas qualidades foram emparelhadas pelas circunstâncias de seu tempo. Aqueles que se contentam em traçar as providenciais seqüencias da história, e que percebem que o tempo e lugar da Natividade tiveram uma conveniência divina, proclamará que nenhuma outra data o trabalho missionário de Paulo teria sido tão corretamente planejado ou empreendido com tanto sucesso. Durante aqueles anos três condições, se não completamente essenciais, foram pelo menos importantes para o
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cumprimento de seus objetivos. O mundo estava em paz e bem governado: os mares estavam livres dos piratas e as estradas limpas de salteadores: viajar, especialmente para um cidadão romano, era fácil, e toda área desde Gibraltar ao Eufrates e do estreito de Dover ao deserto da Líbia e ao Alto Nilo estava aberta. Um único idioma, o «commod» grego das cartas que escreveu, era a língua franca da bacia mediterrânea e que na metade do século tinha quase que substituído o latim: havia pouca necessidade em falar muitos idiomas e todo o incômodo das traduções. Finalmente em todo núcleo populacional um visitante judeu poderia facilmente encontrar um ajuntamento de famílias de sua própria raça e uma sinagoga como ponto de encontro e referência. Nós, os povos de lingua inglesa podemos apreciar em uma balança mundial as vantagens que Paulo foi ligeiro em agarrar e esperto em usar.

É surpreendente a carreira registrada pelo Apóstolo dos gentios e cujas cartas temos considerado. Provavelmente nenhum único indivíduo fora seu Mestre tenha influenciado a religião e a vida da Europa, ou realmente de todo o mundo, tão profundamente. O Evangelho, como ele interpretou, proveu as bases para o pensamento e a prática cristã, afetando todo o desenvolvimento intelectual, moral, legal e político da civilização. Curiosamente combinado com a grande tradição humanista e estóica do mundo greco-romano tornou-se a filosofia pública do gênero humano; a filosofia que deu às raças brancas as características dominantes que agora influenciam, para melhor ou para pior, toda a terra. O humanismo cristão desde o século XVI perpetrou não apenas a exploração mas a transformação do globo; e a ameaça de divórcio desses dois parceiros é de uma ou outra forma responsável pela maior parte de nossa ética moderna e confusão filosófica.

Talvez nenhum exemplo mais claro da grandeza de Paulo
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possa ser encontrado do que aquele apresentado brevemente em Atos 18 de seu aparecimento diante de Gálio de Corinto. Este primeiro encontro de duas culturas na pessoa de representantes tão eminentes é significante e simbólica.

Gálio, proconsul da província de Acaia, não foi apenas a fina flor da melhor estirpe do oficial romano. Ele era irmão do maior homem daquele período no mundo romano, Sêneca, o estadista e filósofo, o ministro supremo do Imperador e o maior pensador e escritor de seus dias. Sêneca foi o primeiro dos estóicos imperiais que desde seu tempo até a morte de Marcos Aurélio deu ao império um século de governos iluminados e ao mundo uma série de homens e escritos que chegaram perto do sonho de Platão, o príncipe dos filósofos.

O próprio Gálio compartilhava da filosofia do irmão, entretanto faltava-lhe suas pretenções, auto-asserção e estatus político. O gentil Gálio parece ter sido um homem de personalidade genuína e excelência intelectual, um bom representante do humanismo no período de seu maior poder. Se tal humanismo fosse capaz de prover uma inspiração para o gênero humano, se tivesse uma criativa e transformadora influência, poderia ter dado alma ao Império romano. Como vimos, produziu Comodus, lque representou o prelúdio para um século de trágica desintegração.

A história do julgamento de Paulo mostra a razão. Trazido diante do proconsul pela comunidade judaica com a acusação de perverter sua religião que era legalmente reconhecida e aprovada pela lei romana, Gálio deu um típico juízo, e eminentemente correto do ponto de vista estóico. «Se isto fosse um caso envolvendo algum crime, eu seria obrigado a escutar vocês, mas já que é simplesmente um punhado de questões sobre sentido de palavras, sobre personagens, e sobre as tolices dessas suas leis judaicas, cuidem vocês mesmos disso. Eu não estou interessado, e não quero tratar disso». (Atos 18.14-16). Assim, ele
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os expulsou da sala do tribunal. E até mesmo a agressão a Sóstenes, o novo líder da sinagoga e aparentemente um discípulo de Paulo, não o moveu à ação. De acordo com a filosofia e a lei romana, o magistrado não estava autorizado a interferir em assuntos pertinentes a religiões legalizadas.

Mas a história - a avaliação popular das crises do passado - emitiu seu julgamento. O Apóstolo de Cristo, e a possível vítima de Gálio, fez pender a balança do futuro. O humanista, por uma estranha ironia, ficou marcado pela sua típica e superficial petulância e indiferença. Embora agisse corretamente, ignorou a questão vital: a religião era (e é) muito mais importante que a ética.

Isto é naturalmente, muito pertinente para nós hoje quando o estoicismo na forma do Humanismo Científico torna-se um forte atrativo. Como muitos de nós, os grandes estóicos do império romano tinham deixado para trás a cosmologia dos seus antecessores, a tensão sobre o fluxo, o movimento cíclico e as repetições infinitas do tempo. Sêneca em sua obra Quaestiones tentou operar fora da idéia do progresso procurando dar um significado ao esforço humano; mas isto quase não exerceu, em termos gerais, qualquer influencia na ética e na filosofia daquela escola. O desprendimento - ou como eles mais precisamente chamaram esta imunidade diante do sofrimento, «apatia» - ainda era a meta do homem sábio: enfrentar impávido a ruína mundial, e estar pronto, como Sêneca provou estar, a evitar o desastre ou a desonra através do suicídio, e aproveitar todas as mudanças e chances para preservar sua integridade e auto-suficiencia. Diante da produção e da expressão de um tipo tão elevado de valor moral, acrescentando-se o fato da ética cristã ser profundamente penetrada por idéias derivadas de Sêneca e Boethius, pode-se admitir prontamente que o moderno estoicismo tornou-se a alternativa favorita para aqueles que não aceitam a linguagem e a doutrina das religiões institucionais. Mas isto não esconde a diferença fundamental entre Gálio e Paulo. O amor centrado em Deus e no próximo realiza
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a libertação da escravização dos laços físicos e temporais: eles podem ser tanto desatados como podem ser descartados. Mas em nenhum dos casos isto pode ser levado a efeito pela auto-confiança ou pelo culto do isolamento. Enfim, o cristão pode esperar plenitude de vida na comunidade madura onde o amor funciona como a argamassa. Quando ao estóico ou o budista tanto um como o outro aspiram por um Nirvana que nenhuma consciência cósmica ou terrenal poderá proporcionar.

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IX - PAULO NA IGREJA PRIMITIVA

Se, como vimos nós, o impacto de Jesus em Paulo conduziu a um contínuo desenvolvimento e a uma finalmente completa interpretação das boas novas, uma questão precisa ser enfrentada. É um assunto vital tanto para uma apreciação dos princípios básicos da ética cristã como para a relevância destes princípios para a vida da cristandade em nossos dias. Por que foi que esta «perspectiva» do significado de Cristo como imagem do Deus invisível, e da presença universal dele na totalidade da comunidade que é construída nesta nossa terra e dentro da plenitude de seu Corpo, não causa uma impressão mais urgente na Igreja? Nós estudamos como esse registros se desdobram sucessivamente nas Epístolas; e o escrutínio resulta em uma clara e, acredito, consistente exposição. Desde o começo isso foi negligenciado e onde não foi negligenciado foi apenas parcialmente adotado. 'No segundo século', disse o grande Adolf Harnack, «apenas um cristão, Marcion, teve problemas para compreender Paulo; e quando o compreendeu o compreendeu mal». (1)

Não que as Epístolas fossem pouco conhecidas ou, apesar do comentário não admitido posteriormente da inautenticidade da segunda carta de Pedro, houvesse qualquer forma dessuspeição. Elas foram colecionadas e já circularam antes mesmo que qualquer documento do Testamento Novo. Eles são citadas como autorizadas desde o começo do segundo século. As igrejas associadas com elas eram centros da atividade cristã - Corinto, Antioquia, Éfeso, Smirna. Seus líderes estavam orgulhosos de sua ligação com

(1) Esta famosa citação consta em seu artido na Encyclopaedia Britannica, 1 lth ed., vol. xvii, p. 692.

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o grande Apóstolo. Geração após geração seu nome foi celebrado com honra, e suas obras foram entesouradas, citadas e estudadas. Por que, então, sua simples mensagem foi tão pouco aceita?

A primeira e mais óbvia razão é que aceitá-la envolve uma revolução na totalidade da perspectiva mental. O simples fato deste senso de unidade do gênero humano e do real processo criativo ser tão apropriado para nós hoje, é uma prova de que sua extensão estava além da compreensão dos seus contemporâneos. Eles poderiam ver talvez mais claramente que nós em seu significado religioso; Deus era mais familiar no pensamento deles que no nosso; o universo era menor, restrito, menos dirigido e parecendo indiferente; a grande tradição de Israel proveu um ponto de partida e um presságio de boas notícias. Mas na escala e no significado cósmico muito da qualidade e do ensino do Encarnado foi obscurecido pela falta de tudo aquilo que o conhecimento moderno hoje nos propicia nas áreas da química, psicologia, antropologia, sociologia, história e filosofia. Todas essas coisas contribuiram para nosso modo de vida. No primeiro século o meio era incapaz de sustentar o ensinamento paulino sobre o corpo do Cristo cósmico.

Uma causa contributória de dificuldade surge fora do estilo e da linguagem de suas cartas. A velocidade da mente do apóstolo e as mudanças de assunto, a falta de uma ordem rígida e de uma terminologia precisa, que ocasionalmente contrasta com a exposição sistemática do tema principal, torna difícil até mesmo para nós ter clareza sobre o exato conteúdo e ênfase de sua mensagem central. Como a história do paulinismo mostra, sua obra foi constantemente explicada ou em termos de assuntos subsidiários ao seu propósito principal ou substituída por

(1) Para Coríntios, ver 1 Clem. 47; para Inácio da Antioquia, Ef. 12 etc.; para Smirna, Policarpo 3.
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experiências posteriores a ela. Aqueles que querem encontrar um único e universal significado em toda sua correspondência têm que enfrentar o fato de que a interpretação que ele faz das boas notícias em Tessalonicenses não é a mesma em Romanos ou em Efésios, e que ele constantemente usa insinuações, metáforas ou até mesmo argumentos que representam humores e circunstâncias particulares que são impróprias quando aplicados a uma exposição objetiva do seu evangelho maduro.

Junto com estas dificuldades há um obstáculo ao qual se presta pouca atenção. Nós hoje sabemos das relações entre a compreensão paulina e joanina de Jesus - das proclamações de Harnack de que no Quarto Evangelho temos «uma orador, um ator, o Cristo paulino»(1). Qualquer exame minucioso do impacto e pessoa de Cristo conforme apresentado por João ou até mesmo qualquer comparação detalhada entre a posição dele e a posição geral de Paulo seria impossível aqui. Mas é notável que os dois, embora em muitos aspectos bem de acordo com as palavras de Harnack, difira bastante amplamente no ponto de vista e na ênfase. Eles são semelhantes no destaque nas relações pessoais, no amor a Deus em Cristo e ao próximo, na unidade orgânica de todos os que vivem em Cristo, na permanencia desta união, e também de forma semelhante na ênfase dada à importância das obras, do poder divino que os habilita, e da gravidade das escolhas morais que tudo isso envolve. Escrevem do Cristo eterno e para leitores não limitados por qualquer raça ou tradição. Sabemos hoje, pelo fragmento de papiro encontrado na biblioteca de Rylands, que o Quarto Evangelho circulou largamente bem antes do que todos imaginavam,(2)

(1) History of Dogma, vol. i, p. 97.
(2) Este fragmento, e os fragmentos saudados por C. H. Dodd como um Novo Evangelho (cf. Bulletin of the John Rylands Library, 1936) estreitamente ligado a João, prova o amplo conhecimento de seu Evangelho na primeira metade do segundo século.

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e podemos assumir que ambos documentos, o Evangelho e a coleção de Epístolas estavam disponíveis no mesmo período.

Eles eram semelhantes, mas o Evangelho foi lido imediatamente de uma maneira mais universal, mais diretamente impressionante e mais congenial em sua perspectiva. Seu prólogo típico da época com o uso do termo «logos» forneceu a chave à primeiro e maior escola de apologetica e teologia cristã. Sua linguagem - luz, vida, amor, verdade e caminho - era familiar a todos os estudantes helenísticos. Sua interpretação dos sinóticos leva-o a ser reconhecido imediatamente como o evangelho espiritual. Os líderes da Igreja, e os educadores cristãos geralmente, o retratam como o quadro perfeito do divino Salvador.

Assim, as diferenças entre ele e Paulo se tornaram um obstáculo à aceitação completa do ideal paulino. João, em termos comparativos, é bem mais íntimo e individualista. Ele dá uma substância e uma apresentação concreta à adoração do agapé e sua alquimia transformadora. «Deus amou o mundo de tal maneira» é a interpretação dele de Cristo; «o discípulo a quem Jesus amou» é como ele explica sua devoção pessoal: «se vós me amais» é como ele explica a excelência moral. Seguramente sabemos que hoje, por mais difícil que seja aos estudiosos aceitar a autoria e a historicidade desse evangelho, sua qualidade toca os corações e recomenda uma fé como nenhum outro pode fazer. Nós como cristãos vivemos na era joanina.

Mas quando isto é dito, há o outro lado da história. Não podemos mas perdemos a energia da comunidade e do corpo de Cristo. Até mesmo na excelência da imagem da videira e seus ramos a preocupação dele não está no crescimento e na saúde do todo mas na fertilidade ou esterilidade de seus membros particulares. Não há aquela insistência paulina na integração da comunidade e em seu caráter cooperativo, ou o sentido de que a verdadeira vida do homem é muito mais do que nossa própria realização individual. A interdependência do gênero humano em Cristo, e a determinada universalidade do Corpo dele, nunca é
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enfatizada, realmente é dificilmente compatível com o quadro joanino. A luz ilumina todo homem, mas cada um pode preferir a escuridão; este é talvez o limite da visão dele. Os judeus são colocados em oposição a Cristo - e eles sempre são unicamente adversários. Eles são o mundo para ao qual Jesus não pretende revelar-se - e essa abordagem é desestimulante(1). Se a «salvação é dos judeus», com poucas exceções eles a rejeitaram: «vocês são filhos de seu pai, o diabo» (João 8.44). Há aqui o espírito de Boanerges, ansiosos por chamar o fogo do céu para consumi-los (Marcos 3.17; Lucas 9.54).

Este elemento no Quarto Evangelho não teria sido suficiente para contrariar a influência de Paulo se seu autor não tivesse se tornado responsável por uma tradição crescente na Igreja primitiva pelo Apocalipse de João o Divino, e assim en grande parte pelo desenvolvimento da escatologia do Dia da Ira e das câmaras de tortura do Inferno. É irônico que um Evangelho que não contém quase nada da crueza apocalíptica fosse completamente associado a um livro dedicou a isto - especialmente quando a linguagem e o estilo dos dois são amplamente contrastantes no conteúdo. Mas na vasta acreção dos elementos pagãos que construíram a visão de inferno o nome de João foi inevitavelmente incluído; e a visão anterior da irmandade universal da comunidade cristã foi subjugada por ela. O mundo que terminava com o Último Julgamento, como descrito nos afrescos e hinos da Cristandade Católica e Ortodoxa, era um mundo que poderia aceitar a visão de Romanos 11 ou de Efésios 4 apenas como aplicando-se aos eleito exclusivos e institucionalizados. A grande intimidação era preservada, até mesmo às custas da difamação do caráter de Deus, negando a plenitude da revelação em Jesus Cristo e limitando o companheirismo do Espírito Santo aos batizados.

(1) Conforme F. C. Burkitt ousou dizer: cf. The Gospel History and its Transmission, pp. 227-9.

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Porém, foi a atividade de Marcion, seu seguidor mais entusiástico que explica mais claramente porque Paulo foi negligenciado nos primeiros séculos(1). A escola Tübingen, pioneiros na crítica do Novo Testamento, nos familiariza com sua teoria da importância primária da controvérsia entre os judeus e gentios na Igreja primitiva, e usou o contraste entre Gálatas e a Epístola de Tiago como pista para a interpretação integral de Paulo e realmente das origens cristãs. Nós podemos ver em que bela evidência tal exagero foi baseado, e como ela torce o pensamento e a influência do Apóstolo. Mas foi Marcion quem de fato criou a brecha que eles atribuiram ao próprio Paulo. Paulo, na medida em que negava a plena autoridade da Lei, nunca sonhou rejeitar o Velho Testamento, a humanidade de Jesus, ou sua imagem nos Evangelhos. Marcion reduz o Velho Testamento a um patamar inferior, Jesus é tratado como um ser puramente espiritual, nega o nascimento e a morte dele, e recusa todos os seus registros menos uma versão expurgada do Evangelho de Lucas e dez das Epístolas de Paulo (ele bem pode ter sido o primeiro a colecioná-las em um único volume); e deste material ele proclamou uma instituição gnóstica e asceta, separada da Igreja e alimentada com suas próprias regras de vida e de ministério. A seita marcionita foi de fato grande e respeitada ao final do segundo século, e como reivindicava fundar-se completamente no ensino e obras de Paulo, predispôs os ortodoxos contra sua influência. Um estudo das citações do Novo Testamento na literatura patrística mostra que aparte de muitas referências ao seu ensino sobre obediência civil, matrimônio, Segunda Vinda e alguns textos controversos sobre disciplina e doutrina, quase não há qualquer

(1) Marcion, um rico armador que morava em Roma, foi excomungado por heresia em 144 AD. Veja E. C. Blackman, Marcion and his Influence.

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preocupação com ele, sua insistência em amor, comunidade e realização foi esquecida. Infelizmente, mesmo quando os Reformadores o restabeleceram a uma posição central, eles se concentraram quase que completamente em uma versão distorcida da ênfase dele na fé, aceitando como determinação divina suas declarações de que os governantes são ordenações de Deus.

Algumas ilustrações desta falha em apreciar ou manter a visão paulina foram colocadas por John Oman em seu grande livro Grace and Personality, e mais recentemente investigadas em detalhes por Dr T. F. Torrance em The Doctrine of Grace in the Apostolic Fathers. Para Paulo, como vimos, o palavra charis foi especificamente aplicada referindo-se ao gracioso ato do amor de Deus que nos de Jesus Cristo, que nos reconciliou-nos a ele pela fé em Cristo, e integrou-nos pelo seu Espírito no companheirismo cortês do corpo de Cristo. Essa palavra descreve sempre não alguma qualidade ou posse que possa ser dada e possa ser passada mas uma relação vital e pessoal, como nossa resposta amorosa é acelerada pelo amor revelado em Cristo. Oman mostrou como esta relação pessoal fora substituída por doutrinas nas quais a graça se torna algo que pode ser transmitido por atos cerimoniais e que pode operar como uma medicina da alma, um alimento de imortalidade, um talento conferido ao eleito. Dr. Torrance, examinando os escritos da época posterior a Paulo, mostra passo-a-passo como esta degradação aconteceu de fato. É muito significante perceber quão profunda foi a mudança de qualidade que logo tomou lugar. Explica por que a plenitude da visão de Paulo deveria ter que esperar por sua realização até que a mundialização se tornasse uma necessidade ao gênero humano.

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X - Epílogo

A VINDA DA MATURIDADE

QUE a comunidade nasceu no dia de Pentecostes pelo ministério e trabalho de Jesus, que foi proclamada em sua verdadeira estatura e significado pelo seu Apóstolo em sua série de cartas, provendo assim evidentemente o novo modêlo pelo qual em nossa era nuclear estamos seguramente equipados a aspirar, parecerá diante do crítico familiarizado mais uma das muitas excentricidades tão comuns na história da igreja, uma coincidência fantástica ou o resultado de uma engenhosa e fértil imaginação. Que uma época como a nossa, tão manifestamente nova e sem precedente em toda sua perspectiva, deveria encontrar como a resposta a suas perguntas o redescobrimento da Comunhão do Espírito Santo, pela incorporação da pessoa de Jesus em termos de duas palavras intraduzíveis, agapé e koinonia, do primeiro século cristão - este é o tipo de confirmação de fé que parece bom demais para ser verdade.

Não obstante o coração da revelação ter virado o mundo de cabeça para baixo, nos registros mais antigos de Jesus e nos escritos do seu Apóstolo, encontramos precisamente esta evidência de um novo tipo de sociedade orgânica, caracterizada pelo seu amor a Deus e aos irmãos, e constituindo um modo de vida inédito em toda a história da humanidade - e é seguramente isso que deveríamos esperar. «Veja como estes cristãos amam uns aos outros!» foi o testemunho atormentado de seus perseguidores diante dos mártires na arena. E por causa disto o Caminho conquistou adeptos até mesmo na casa imperial e antes do despontar do novo século. A história,

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até mesmo a história tradicionalmente estabelecida por Eusebius e seus sucessores no século IV, nos dá um quadro das múltiplas colorações da igreja primitiva, das contínuas e confusas tentativas do Império em eliminar sua influência e destruir as fontes de seu poder, dos momentos onde as confissões que faziam da vitória de Jesus proclamava a rendição dos adversários. Quando, com a conversão de Constantino, as mais ferozes das perseguições provavam a invencibilidade da Igreja, o cristianismo já demonstrava possuir uma unidade que Roma nunca foi capaz de estabelecer, uma teologia que preservou o vigamento da herança hebraica, grega e latina, uma liturgia que entesourou e sacramentou a adoração e o caráter distinto da comunidade e uma vitalidade versátil em sua adaptabilidade e a solidez de sua força interna. Isolada de todos os domínios da Europa a comunidade cristã sobreviveu ao desarranjo de uma civilização, e desde Bizâncio até Iona manteve suas velhas luzes acesas.

É uma estranha, e à primeira vista freqüentemente trágica e terrível, história. O contraste entre a espontaneidade e a simplicidade do primeiro século e a bajulação, ambições e intrigas do quarto dá uma impressão de degeneração quase universal: a Igreja seguramente ganhara o mundo mas perdera sua própria alma. As facções contra as quais Paulo advertira especialmente os gregos que convertera, dentro de um século e meio depois de Nicea já tinham destruído o mais antigo dos patriarcados orientais, dividido as igrejas de língua grega em várias cismas e rumavam em direção ao Islã. A condenação de Origen, o maior estudioso e teólogo da cristandade, e a canonização de Cirilo da Alexandria igualmente ilustra a degradação moral dos padrões da Igreja. O tráfico de relíquias e hagiologias, de peregrinações e santuários, de fábulas e folclore substituíram os dois mandamentos do Evangelho por um meticuloso aparato de calendários, cargos clericais, lendas,
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superstições e emblemas que repetiram e ultrapassaram tudo aquilo que o Apóstolo e seu Mestre tinha denunciado. Assim, a Igreja sobreviveu à idade das trevas.

Por detrás da transformação da comunidade santificada em uma instituição eclesiástica e dogmática houve uma mudança radical em todo o conceito da relação entre Deus e o mundo. A integração entre o natural e o sobrenatural, onde a Palavra feita carne era símbolo e instrumento, foi abandonada não através de alguma rebelião consciente mas para obrigar o cristão a satisfazer as necessidades da época. O mundo pagão era um mundo entediado; Roma tinha perdido, se é que alguma vez teve, o senso de saudável maravilha: desde as orgias em seus banquetes aos banhos de sangue em suas arenas, e ao seu prazer cru: não teve nenhum olho para a natureza e nenhum deleite pelas coisas comuns: era impaciente para com o sobrenatural. A Igreja foi tentada a atender a demanda. O comércio de milagres foi efetivo e compensador; não demorou muito para que as listas de milagres se tornasse uma prova necessária da santidade e do valor do Evangelho. Jesus descartara tais sinais: seus seguidores os multiplicaram; e como podemos ver no Evangelho de Mateus, e mais obviamente nos escritos apócrifos que estavam muito em voga no segundo século, houve um rápido aumento na amplitude e na importância dessas coisas. Quando o Papa Leo I em seu famoso Tomo contrasta as duas naturezas em Cristo, por um lado a divindade que empolga pelo prodígio, e por outro a humanidade que sucumbe pela danação, dá um exemplo significante da teologia do grande Papa. A ordem natural em cujo valor Jesus fundara suas lições foi degradada e vilificada, até mesmo Agostinho na fase final de sua vida tornou-se um massa perditionis.

Além disso se o mundo estava entediado estava também devasso. O Satiricon de Petronius pode ser ou não o livro mais imundo jamais escrito: mas uma coisa é certa, os círculos entretidos por ele estavam
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contaminados pelo esnobismo e pelo vício. Entre os esplendores da cristandade houve alguém que trouxe uma limpa fragrância às intimidades humanas: Clemente de Alexandria, que não se sentiu envergonhado de escrever sobre os órgãos sexuais e seu funcionamento «os quais Deus não se evergonhou de fazer». Mas nem todos agiram dessa forma; entre eles há alguns como Tertuliano cuja pureza é tão mórbida quanto o pecado, e para quem o próprio sexo é o caminho para a lascívia. O asceticismo apodrecido e os fantásticos elogios à virgindade, que desfiguram os escritos de Jerônimo, procuram corromper a natureza onde ela é mais criativa. Paulo advertiu seus leitores sobre sobre as conseqüências do vilipêndio à paternidade. Uma dessas trágicas conseqüências diretas foi conduzir à separação do mundo entre «religiosos» e «leigos».

Mesmo diante da hostilidade do mundo, a cristandade suportou heroicamente, deixando suas marcas na vida e no pensamento da Igreja. Os registros dos mártires são testemunho esplêndido da fortaleza e da fé dos homens e mulheres entregues aos leões ou sujeitos às infâmias e tormentos dos seus perseguidores. Mas, como podemos ver, o efeito provocado naqueles que assistiram a agonia deles foi enlouquecedor. Quando Tertuliano escreveu o último capítulo de De Spectaculis ele deu aos cristãos da mesma categoria dele a visão de inferno e exprimiu seu espírito de vingança representando tormentos e maldições eternas como um elemento essencial na beatitude dos redimidos. O fato da Igreja tornar-se obcecada com o Diabo e a retidão ser procurada principalmente como um seguro contra a danação é um aspecto trágico da missão de Cristo que veio buscar o que se havia perdido. E o dualismo que isso nutriu chegou às vezes perto de banir Deus de seu próprio mundo.

Esta segregação entre natureza e graça, secular e sagrado, Estado e Igreja, dominou o mundo ocidental a partir do quarto século. Estabelecendo
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um tempo de rígido apartheid. O poder do império romano foi assumido pelo papado; a educação e a ciência de governar passaram para mãos eclesiásticas; chegando algumas vezes quase a formar uma teocracia nominal. Mas na medida em que as invasões dos bárbaros conduziram à era do feudalismo os leigos começaram a firmar suas reivindicações por uma medida de autogoverno; e eventos como a viagem para Canossa (1) não pôde afiançar ao religioso mais que uma supremacia titular. Na realidade durante toda a Idade Média houve duas ordens com dois códigos de moralidade, dois sistemas de lei, dois modos de vida; e nem mesmo estudiosos como Tomás nem evangelistas como Francisco puderam efetiva ou permanentemente restabelecer a unidade do Corpo de Cristo. No Século XIII houve uma maravilhosa manifestação da aventura apostólica, uma ilustração brilhante daquilo que a unidade e a integridade cristã era capaz de realizar. Produziu o Summa e a Divina Comédia; montou as Escrituras; foi o período florescente do medievalismo ocidental.

Mesmo em seu aspecto mais profundo - a compreensão de natureza, a ordenação da sociedade e as qualidades morais da comunidade - a cristandade falhara em perceber a inteireza e a harmonia, a solidariedade e a integração do mundo de Deus. As obras de Alberto como bom estudioso das plantas e dos animais, pelo menos em alguns aspectos, as realizações dos franciscanos na holística, de Roger Bacon na matemática e nos elementos físico-químicos, enfatizaram e empregaram um método verdadeiramente científico de observação e experiência. Mas a influência deles mesmo em seus contemporâneos não foi grande nem duradoura. A era da fábula e do emblema, da magia e da superstição continuou inalterada. Os adornos alcançaram um alto nível de habilidade técnica, mas não houve nenhuma partilha de conhecimento nem qualquer tentativa de desenvolver uma interpretação coerente da ordem natural. E em todo caso tais assuntos estavam

(1) Quando o Imperador aceitou humilhação pública pelo Papa (1077).
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apenas relacionados ao mundo secular, e não proporcionaram nenhuma contribuição séria ao mundo da religião e ao destino eterno do gênero humano. Um outro mundo possuia e forçava a aprendizagem, dominava a educação, a direção política, e exigia abediência. O Século XIII pressagiou o crescimento dos poderes que mais tarde viriam desafiar e eventualmente reformar a Igreja institucional. Aqui, como das outras vezes, a revolução poderia ter vindo de dentro para fora. Mas a hierarquia que patrocinou a rigidez da estrutura doutrinal e institucional e que a apoiava e era muito forte para ser transformada pela sem violência. O cisma da Igreja sob dois Papas no Século XIV a debilitou; a corrupção do Papado no Século XV a desacreditou, e daí para a frente os abusos se multiplicaram; o Renascimento desafiou sua teologia, o novo nacionalismo sua autocracia; Wyclif e Huss indicaram possíveis alternativas; a Igreja, apesar dos movimentos pela reforma, ignorou o perigo: a ruptura era inevitável.

Infelizmente houve muita reserva nesse ponto. Em sua reação contra o formalismo e a tirania eclesiástica rejeitaram a fraternidade e a solidariedade que o Catolicismo, mesmo quase totalmente corrupto, vinha preservando e proclamando. Os Reformadores individuais recuperaram e expressaram uma profunda devoção pessoal a Cristo, e uma disciplina na oração e no estudo, na obediência e na fortaleza. Mas o Reino de Deus para eles era algo essencialmente voltado para dentro, quase que privado, uma posse, uma bem-aventurança que os livrava do pecado, que lhes assegurava a salvação, tanto no aspecto secular como também no lado espiritual da vida. Fazer parte disso envolvia uma preocupação pelo evangelismo, mas não em grande escala, no sentido da comunidade, e ainda menos no sentido da fraternidade universal. O Estado, ainda que se proclamasse sob orientação divina, era uma ordem basicamente diferente da Igreja, sendo sustentado e mantido por métodos os quais a lei do amor absolutamente não se aplicava. Embora os Reformadores dessem importância ao leigo
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e na realidade grandemente estimulassem atividades científicas, econômicas e industriais, houve poucas tentativas em integrá-las com específicos deveres religiosos ou admitir que a vida de fé tinha algo a ver com a conduta dos negócios mundanos. Entretanto alguns líderes como Melanchton ou Zwinglio situados na tradição de Erasmo e dos humanistas, no bojo dos primeiros Reformadores e em seu zelo pela Bíblia como a única «religião dos Protestantes» consideraram os estudos seculares como irrelevantes, e com a vinda de Calvinismo foram ainda mais longe, condenando os estudos seculares como sabedoria mundana fadada à destruição. Dedicados como eram ao estudo de Paulo e empregando a Epístola aos Romanos como típica da velha aprendizagem que o catolicismo tinha depravado, eles absolutamente não apreciaram a filosofia paulina da história ou da visão do Corpo de Cristo com sua tripla característica de amor, comunidade e perspicácia moral.

Na melhor das hipóteses, sua realização pode ser medida pelo grande aumento que trouxeram à liberdade e à integração do crente individual, à vida variada e aventureira que gerou, pelos princípios democráticos e realizações científicas que encontraram inspiração nestas coisas. Homens como Conrad Gesner no Século XVI ou John Ray no Século XVII marcaram uma nova era na gama dos seus interesses, na excelência do seu trabalho, na generosidade do seu caráter, e na sinceridade de sua religião. Cientistas que eram, livres da perseguição que aprisionara Roger Bacon, queimara Bruno e silenciara Galileo, foram encorajados na Inglaterra por estudiosos e pensadores cristãos, produziram uma atitude completamente nova para com a natureza e deram início a uma longa e brilhante série de descobertas que não só transformaram nossos padrões de vida como também nos deram um unificado, verificável e agora uma compreensão quase que completa do universo físico, um conhecimento crescente da coerência e da interpretação da totalidade de nossa experiência, e um controle de recursos
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que se corretamente direcionado poderia tornar real o sonho de Paulo de um mundo unido e consumado em Cristo.
Nenhum de nós que vimos os horrores do último meio século e compartilhamos os medos e fracassos de hoje recusará admitir que tanto hoje como no passado houve o outro lado da moeda - aquele outro lado que foi o ponto de partida deste livro. Se a Reforma, tivesse recuperado as coisas boas que o catolicismo falhou em desenvolver, e se realmente representasse a passagem da cristandade do berço para a adolescência, não teria nutrido o individualismo na sociedade, nem criado a filosofia que dividiu a religião em seitas rivais e todo o mundo em nações rivais. Se hoje a idéia de coexistência parece utopia senão traição, se hoje desperdiçamos recursos que poderiam eliminar a fome direcionando-os aos armamentos, úteis apenas para eliminar a vida, e se hoje os clérigos nos asseguram que tal assassinato mútuo pode significar a vontade de Deus para seus filhos, é certamente óbvio (mas deveria ser incrível) que estamos mais uma vez repetindo a tragédia do Calvário. Cristo veio aos seus: eles deram-lhe boas-vindas com palmas: ao mesmo tempo em que preparavam uma Cruz onde ele seria dependurado.

O tipo de influências que produziram a deterioração na Igreja primitiva poderia ser claramente comparável ao de qualquer período da história cristã até mesmo em nossos dias. Tais influências surgem no processo de crescimento. As comunidades vivem necessariamente em um ambiente que (pelo menos ainda) não está sob seu completo controle. Elas podem, e realmente devem, se tem qualquer característica ou convicção séria, encarar o desafio de controlar seu ambiente ou adaptá-lo à comunidade, sem reconhecer qualquer incompatibilidade, e não no interesse de sua verdadeira natureza mas no interesse de seu conforto ou de sua sobrevivência. A vida, como podemos verificar, desde o princípio de sua atividade orgânica foi uma questão de adaptação; o elemento novo para nós foi que com a vinda do homem - e realmente até certo ponto antes

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desse evento - a escolha e a consciência do indivíduo começou a influenciar o curso do progresso. Agora, como somos nós que controlamos tudo, o aspecto cultural e intelectual está exercendo um papel mais importante na evolução do que os fatores físicos ou genéticos; o homem, se não se tornar senhor de seu destino, poderá finalmente destruir a vida ou trazê-la a níveis impossíveis, e completamente sem precedentes, de chegar a um bom termo.

Por conseguinte esta atividade de adaptação do ambiente pode ser analisada, traçada, planejada e deliberadamente ordenada a um grau inpensável a gerações anteriores. Nós deveríamos estar em uma posição, na medida em que descobrimos que há condições para uma boa vida, de aumentar grandemente o poder de compreensão e de ação no sentido de ajustar os meios aos fins e à plenitude do bem-estar humano.

Naturalmente, Isto não significa que o problema - que para nós neste livro é básico - das duas moralidades, nosso dever para com Deus e para com a sociedade, foi resolvido, ou, até mesmo em sua forma presente, está perto de uma solução. Bem pode ser verdade, como Lindsay disse, que o contraste entre aquilo que sabemos de melhor e aquilo que fazemos de melhor e o que na realidade pode ser feito sem desastre social nunca pode ser completamente removido - que como muitos de nós afirmamos muito tempo em nossa vida humana é inevitavelmente a indagação de um horizonte: «nós não podemos compreender Deus». Mas permanece verdadeiro que a maioria dos obstáculos que para Lindsay pareciam irremovíveis podem ser agora sobrepujados. Com as recentes mudanças no significado do espaço e do tempo, com a libertação de um poder quase ilimitado, com o aparecimento de um novo senso da inteireza de vida, da compreensão de nosso mundo, da natureza e da capacidade do gênero humano, podemos perceber a necessidade de reunir nossos esforços para no mínimo conhecer mais sobre esta nova situação, e delinear as implicações de tal esforço.

Não precisamos ficar espantados com as evidências históricas, mesmo se a alguns de nossos contemporâneos digam como aquele ditado popular,
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«nadou, nadou, e morreu na praia». Na medida que olhamos para trás, vemos não apenas os inumeráveis fracassos dos religiosos em suas aventuras particulares, mas observamos também que com freqüência tais fracassos não são tão devidos à maldade humana quanto ao exagero dessas determinadas tendências, apesar de surgirem inspiradas por bons motivos e terem como meta objetivos louváveis. Convem advertir nossos companheiros a não esperar muito, e até mesmo condenar como utópico qualquer coisa que comece e termine em fé, esperança ou caridade. Tal pessimismo, ou realismo como dizem alguns, pode, em tempos de depressão como os recentes anos 30 e 40, substituir tais virtudes pelo medo, pelo desespero e até mesmo pelo ódio - muita literatura cristã anticomunista vai por este caminho. Mas a despeito disso, a história na realidade demonstra que mesmo que o Cristo seja crucificado novamente, jamais será por tais meios derrotado; aquela justiça, a mais abundante justiça, renasce das cinzas, do fracasso; se pudéssemos aceitar isso veríamos que tais ressurreições tem sido e continuarão a ser tão inesperadas como triunfantes.(1)

A cristandade é, acima de tudo, o único elemento em nosso mundo Ocidental que sobreviveu à queda das civilizações; isso pode ser dito com relação a todas as religiões, quanto maiores as trevas maior é seu fulgor. Se os judeus de hoje não repetissem os mesmos erros de Hitler e de seus agentes eles estariam vivendo em paz com os árabes na Palestina. A sobrevivência do mundo hoje depende mais obviamente de excelentes professores de religião e das tradições da humanidade do que de qualquer outro fator na experiência humana.

Semelhantemente nós não devemos ficar deprimidos se a religião ressurgir de repente ou rapidamente, de uma forma inesperada. Estamos acostumados a aceitar a praxis tradicional da evolução como um processo fortuito que precisa de milhões de anos

(1) Vide Story of an African Farm de Olive Schreiner.
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para seu desenvolvimento, tanto que perdemos a capacidade de acreditar que qualquer coisa, exceto o desastre, pode acontecer em um piscar de olhos. Nós vimos como erros cometidos em períodos críticos levam séculos até que possamos avaliar todas suas terríveis conseqüências; e esquecemos que o ponto decisivo do momento atual muitas vezes surge de uma forma repentina e inesperada. Se há algo de permanente valor no apocalipse é o fato dele concentrar e enfatizar um repentino e explosivo caráter catastrófico; o que os legisladores chamam de ato divino é tão instantâneo e imprevisível como um relâmpago, a conversão e transformação envolvida se processa quase que instantaneamente. Em outras palavras: a oportunidade é geralmente dada a nós e de uma forma única: diferente do que ocorre na natureza, quando a rejeitamos, ela não retorna novamente da mesma maneira.

Tais momentos de decisão são talvez especialmente familiares na vida espiritual; e não apenas para o indivíduo. Um dos mais óbvios desses momentos ocorreu na Comunhão Anglicana da Conferência de Lambeth em 1920, quando toda assembléia, a despeito de suas profundas e notórias divisões, mergulhou em uma experiência de visão e de unidade que encontrou sua expressão no momento do Apelo. Após um breve momento de uma completa e intensa expectativa; três líderes das principais divisões na Igreja emitiram um comunicado com fortes recomendações e resoluções. Nada foi feito. Em poucos meses os velhos argumentos destruíram a «paz de Deus». Antes de um ano esses mesmos líderes começaram a recuar em suas posições. Foi exatamente a mesma coisa que ocorreu, embora de uma forma mais lenta, depois do mais famoso de todos os Concílios da Igreja, quando os Pais de Nicéa com apenas algumas exceções abandonaram seu veredito, dedicando à heresia ariana uma nova e mais ampla popularidade.

Assim, o drama do ministério de Jesus se repete - vida abundante, vida plena, vida nova, vida eterna. Estamos preparados
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para nossa crise; ela vem e tomamos nossa decisão; e o resultado nos espera. Mas falhamos; e toda a bonança parece frustrada e acabada, «nadou, nadou, e morreu na praia»; se formos honestos, melhor fora nunca tivéssemos nascido. Isso acontece muitas vezes, e talvez nunca de uma forma tão evidente quanto hoje, este veredito pode ser dado por cada um de nós.

Mas tal veredito é errôneo. Se há alguma é porque falhamos em nossas obrigações; não damos valor à nossa oportunidade; falhamos em avaliar seu caráter, esquecemos nosso alvo, traimos aquilo que acreditamos. Aquela contribuição que poderia ter sido tão valorosa é «deixada de lado». Assim, o trivial conecta-se ao supremo, os discípulos abandonam seu Mestre e Judas entrega-o para a Cruz. Assim como trama é tecida na urdidura do tear, o modelo é elaborado na matéria e na substância de nosso mundo, desde o plano individual ao coletivo, desde o topo à base da espiral da vida.

Há épocas em que a tragédia nos oprime, quando estamos, e com razão, quebrantados pela nossa culpa e vergonha quando olhamos para nós mesmos; épocas inclusive quando o tempo passa tão devagar que nos vemos tomados pela angústia, quando nos convencemos de que de fato todo o progresso é ilusório; e tempos quando, se de alguma maneira o fim é alcançado, nossa própria falha, nada menos do que ela torna-se irrelevante. Mas há também momentos quando o triúnfo de sua Páscoa, a despeito de nossa traição, abastece-nos com uma jubilante e generosa alegria, quando repentinamente, como o clarão de um raio que ilumina uma noite escura, percebemos a contribuição que tais transições tem de fato no avanço do movimento dos propósitos de Deus, e quando seu poder supera o mal com o bem, quando o significado de sua vontade se descortina diante de nossos olhos. O mal cai por terra: não resta mais nenhuma dúvida, e não podemos ignorar ou disfarçar isso. Mesmo que prossigamos aprendendo o completo significado de sua vida, compartilhando seu sofrimento, abrindo cada vez mais espaço para a continuidade de sua obra, não há nenhum mérito de nossa parte. Assim, como o Apóstolo declara, como o restante da criação, podemos viver em esperança. Nossa frustração e desânimo
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significa escravidão, e nossa busca significa a gloriosa liberdade da família de Deus.

Na prática o padrão de seu desenvolvimento pode ser traçado em períodos episódicos no macrocosmo nas vidas que o representam. Em grande escala, os momentos da história cristã seguem o mesmo esquema, na medida em que a espiral de seu progresso ultrapassa sucessivas fases. Estamos claramente passando por um desses momentos de reviravolta; tanto os cientistas como os historiadores concordam que desponta uma nova era para a humanidade. Agora sabemos que depois de um longo período de infância e adolescência chegamos ao tempo em que temos em nossas mãos o controle, a compreensão e o poder de determinar nosso destino, de uma forma que nenhuma outra geração pode alcançar. A humanidade tornou-se madura; e sua primeira tarefa é perceber a extensão e as condições de sua responsabilidade. Tal revelação crítica que é a base da ética cristã precisa ser estudada, apreciada e mais uma vez aceita.


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FIRST PUBLISHED 1961
(C) SCM PRESS LTD 1961
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As versões eletrônicas:
São Paulo e o Evangelho de Jesus - Um Estudo da Base da Ética Cristã (português) e
St Paul and the Gospel of Jesus - A Study of the Basis of Christian Ethics (inglês)
foram produzidas pelo Coletivo Periferia

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