terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Ressurreição de Cristo A Nossa Ressurreição na Morte (parte II)

por Leonardo Boff

A Ressurreição de Cristo
A Nossa Ressurreição na Morte
(parte II)




III- O Caminho da Exegese Critica sobre os Textos da Ressurreição

OS ESTUDOS exegético-críticos acerca dos textos da Ressurreição tornaram-se um mare magnum, a ponto de ser difícil para os próprios especialistas poder orientar-se. O que aqui apresentamos quer ser apenas uma indicação das pistas pelas quais caminha hoje a exegese tanto católica quanto protestante.(66) Isso nos ajudará a compreender melhor as várias interpretações acima arroladas e deverá servir de base para nossas reflexões de ordem sistemática.

1. Como era a pregação primitiva sobre a Ressurreição?

Os exegetas estão de acordo que a pregação primitiva da Igreja sobre a Ressurreição não deve ser buscada nos evangelhos nem em S. Paulo, mas sim nas fórmulas pré-paulinas e pré-sinóticas, que através dos métodos morfo-críticos descobrimos assimiladas em S. Paulo, nos evangelhos e especialmente nos Atos.(67) Nos discursos de Pedro nos Atos 2-5 e em Paulo lCor 3-5 encontramos essas fórmulas antigas. Paulo diz expressamente que «transmite aquilo que ele mesmo rece-

66 Veja a bibliografia já arrolada nos nn. 4 e 5.
67 Cf. Delling, G., Die Bedeutung der Auferstehung Jesu für den Glauben an Jesus Christus. Ein exegetischer Beitrag, em Die Bedeutung der Auferstehungsbotschaft, op. cit., 67-90; Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, op. cit, 9-58; Kremer, J, Das älteste Zeugnis, op. cit, 25ss.


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beu» (lCor 15,3). O próprio estilo literário de lCor 15,3-5 trai a antiguidade da fórmula que Paulo já encontrou fixa na comunidade de Jerusalém por volta do ano 35 quando de sua primeira viagem àquela cidade.(68) A estrutura formal rígida é a mesma nos Atos e em lCor 15,3-5: a) Cristo morreu... foi sepultado; b) foi ressuscitado (ou Deus o ressuscitou: At 2,4) ; c) segundo as Escrituras; d) apareceu a Kefas e depois aos doze (ou «E disso nós somos testemunhas»: At 2,32).

Nos discursos de Pedro nos Atos (2-5) a mensagem pascal é anunciada dentro de duas categorias de pensamento: uma apocalíptica e outra escatológica. Na apocalíptica, que florescia no judaísmo pós-exílico, havia a idéia do justo sofredor, humilhado e exaltado por Deus (cf. Sab 5,15s). Isso tornou-se um leit-motiv da cristologia antiga como em Lc 24,26 e Flp 2,611: «Ele se humilhou a si mesmo, por isso Deus também o exaltou». Nos discursos de Pedro encontramos semelhante explicação do acontecimento pascal: «Vós o matastes.. . contudo foi elevado à direita de Deus» (At 2,24.33). Mais adiante: «Deus o exaltou à sua destra como Autor (da vida) e Salvador» (5, 30.31; cf. 3,13-15). Com muita probabilidade esse esquema está ligado ao outro do ocultamento de Jesus (cf. At 3,21) como ao do profeta Henoc e Elias. Assim como Elias foi «arrebatado» ao céu (2Rs 2,9-11; lMac 2,58) da mesma forma Jesus (At 1,9-11.22; Mc 16,19; Lc 9,51; lTim 3,16; lTes 4,16.17 e Apc 13,5) . O emprego desta terminologia pôde certamente ser sugerido pelo fato do desaparecimento do corpo de Cristo (Mc 16,6; Mt 28,5; Lc 24,3.12; Jo 20,2) ao qual os textos dão certa importância. O Jesus de S. João fala a linguagem primitiva do anúncio pascal. A Ressurreição é entendida como elevação, glorificação e um ir para o Pai. Essa concepção está ligada ao tema do Messias, do Filho do Homem e do Servo Sofredor que é exaltado. Assim são nos Atos inter-

68 Kremer, J., Das älteste Zeugnis, op. cit., 25-30.


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pretados os salmos 110 (At 2,34s) e 2 (At 4,26). Os fatos pascais são vistos como a entronização do Messias-Rei como «Senhor e Cristo» (SI 2; At 2,36), sua elevação como «Senhor e Salvador» (5,31). A mensagem pascal é interpretada ainda por uma outra categoria de pensamento, a escatológica. Segundo esta, esperava-se para o final dos dias a ressurreição dos mortos. Os Apóstolos viram na Ressurreição de Jesus a realização de um fato escatológico. Se falam e anunciam a Ressurreição isso significa, nos moldes das categorias bíblicas, Ressurreição real e corporal. Vida sem corpo -- embora glorificado (Mc 13,43) -- é para um judeu impensável. Como as manifestações de Jesus mostravam um Jesus glorificado, no uso da terminología de ressurreição, fazia-se necessário deixar clara a identidade entre o crucificado e o glorificado. Os textos dos Atos (cf. 2,23; 3,15; 5,30) acentuam essa identidade bem como mais tarde, frente aos gregos, Lucas e João. Essa terminologia recalcou em grande parte a outra de origem apocalíptica. Isso por motivos óbvios, porque frente à negação do fato da Ressurreição se devia acentuar a realidade da transfiguração da existência terrestre de Jesus. Por aí vemos que os fenômenos das aparições, das falas de Jesus vivo após a crucificação e do sepulcro vazio não foram logo interpretados como Ressurreição da carne, mas como elevação e glorificação do justo sofredor. Esta interpretação parece ter sido a mais antiga. (69) Evidentemente ela pressupõe também o Cristo vivo e transfigurado e o sepulcro vazio. Mas a isso não se chamou ainda de Ressurreição. Mais tarde, devido às polêmicas e por motivos querigmáticos, os fenômenos acima referidos foram mais adequadamente interpretados como Ressurreição, no sentido de total transfiguração da realidade terrestre de Jesus. Por isso a Ressurreição é sempre referida à história de Jesus: à sua morte e sepultamento.

A interpretação dos fenômenos pascais como Ressurreição já vem testemunhada por Paulo em lCor

69 Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, oP. cit., 17.

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15,3-5, como referimos acima.(70) A expressão: foi ressuscitado ao terceiro dia, pode ser uma reminiscência histórica. Mas é também uma expressão oriental para dizer: Cristo permaneceu só temporariamente na sepultura. Segundo a crença geral após esse espaço de tempo a vida se separaria definitivamente do cadáver. Quatro dias significaria permanência definitiva (cf. Didaqué 11,5). (71) A expressão «segundo as Escrituras» não precisa se referir a nenhuma passagem explícita. Apenas quer exprimir a unidade da ação salvífica: o Deus que agiu outrora no AT agiu agora maximamente ressuscitando a Cristo. A referência aos testemunhos não precisa ser cronológica. A aparição a Pedro aparece já na fórmula, uma das mais antigas de todo o NT: «Jesus Cristo ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34). A aparição a 500 irmãos de uma vez só não precisa ser tomada ao pé da letra.(72) Talvez essa aparição seja a mesma indicada por Mt 28,16ss no monte na Galiléia. A referência de uma aparição a Tiago fala em favor da credibilidade desse testemunho paulino, porque o grupo de Tiago (Gál 2,12) se distanciara desconfiado do evangelho de Paulo acerca da liberdade cristã frente ao culto da Lei do judaísmo bíblico.

As fórmulas de fé em lCor 15 e nos At 2-5 deixam entrever, por sua formulação rígida, que a Ressurreição não é nenhum produto da fé da comunidade primitiva, mas testemunho de um impacto que se lhes impôs. Não é nenhuma criação teológica de alguns entusiastas pela pessoa do Nazareno, mas testemunho de fenômenos acontecidos depois da crucificação e que os obrigava a exclamar: Jesus ressuscitou verdadeira-

70 Além da obra de Kremer acima citada veja-se ainda: Mussner, F., «Schichten» in der paulinischen Theologie, dargetan an 1Kor 15, em Biblische Zeitschrift 9 (1965) 59-70; Gnilka, J.. Das chistologische Glaubensbekenntnis lKor 15,3-5, em Jesus Christus nach frühen Zeugnissen des Glaubens, München 1970, 44-60 com a vasta bibliografia ai citada; Winter, P., lCorinthians XV 3b-7, em NT 9 (1957) 142-150.
71 Cf. Lehman, K, Auferweckt am dritten Tag nach der Schrift, op. cit. 262-290: Gnilka, J., Das christologische Christusbekenntnis 1Kor 15,3-5, op: cit., 55; Metzger, M., A suggestion concerning the meaning of 1Cor 15,4b, em JThSt 8 (1957) 123; Dupont, J., Ressuscité «le troisième jour», em Bíblica 40 (1954) 742--761.
73 Kremer, J., Das älteste Zeugnis, op. cit., 71.


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mente. Esse pequeno credo proclama os magnalia Dei realizados em Jesus e corresponde ao credo do povo judeu no Dt 26,5-11. (73) O sepulcro vazio não é objeto de pregação, mas é antes suposto. As aparições são sempre atestadas como fundamento das duas possíveis interpretações seja como elevação-glorificação do justo de Deus seja como Ressurreição no sentido de uma ação de Deus transfigurando em vida nova de glória o Crucificado. (74)

2. Donde veio a convicção dos Apóstolos na Ressurreição de Jesus?

Ninguém viu a Ressurreição. O evangelho apócrifo de S. Pedro, descoberto em 1886 (surgiu por volta de 150 dC na Síria), narra o modo como Cristo ressuscitou diante dos vigias e dos anciãos judeus. Mas a Igreja não o reconheceu como canônico(73) porque certamente já a consciência cristã cedo percebeu que assim maciçamente não se pode falar da Ressurreição do Senhor. Possuímos apenas testemunhos que atestam duas coisas: o sepulcro está vazio e houve várias aparições do Senhor vivo a determinadas pessoas. Devemos portanto analisar as tradições que falam do sepulcro vazio e aquelas que referem aparições. Grande número de exegetas, independentemente de sua confissão religiosa, chegou à seguinte conclusão: primitivamente ambas as tradições circulavam autonomamente, uma ao lado da outra. (76) Em Marcos 16,1-8, onde se narra a descoberta do sepulcro vazio pelas mulheres, temos já trabalho redacional combinando as duas tradições. A ligação, porém, não se ajustou bem.

73 Cf. Goppelt, L., Das Osterkerygma heute, em Diskussion um Kreuz und Auferstehung, op. cit, 213. 74 Cf. Schnackenburg, R., Zar Aussgeweise Jesus ist (von Toten) auferstanden, em Biblische Zeitschrift 13 (1969) 1-17.
75 Cf. o texto em Seidensticker, P., Zeitgenoessiche Texte, op. cit, 59-62.
76 Cf. Delorme, J- Résurrecticn et tombeau de Jésus: Mare 16,1-8 dans la tradition évangélique, em La Résurrection du Christ et l'exégèse moderne, op. cit., 75-104 com a bibliografia aí citada; cf. ainda Lohfipk, G., Die Auferstehung Jesu und die historische Kritik, em Bibel und Leben 9 (1968) 37-53 ; Schenke, L., Auferstehungsverkündigung und leeres Grab, Stuttgart 1968.


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Os textos revelam tensões, ocasionadas pelos versos que tiram a unidade do relato. Se lermos Mc 16.1-5a.8, a homogeneidade do relato transparece límpida: As mulheres vão ao sepulcro; encontram-no vazio. Fogem. De medo nada contam a ninguém. A aparição do anjo com sua mensagem (5b-7) seria um acréscimo tirado da outra tradição que só conhece aparições e não o sepulcro vazio. Qual a função do relato do sepulcro vazio, testemunhado pelos quatro evangelistas? Qual o seu Sitz im Leben?

a) O sepulcro vazio não deu origem
à fé na Ressurreição

Obviamente a tradição do sepulcro vazio se formou em Jerusalém. A pregação da Ressurreição de Jesus se teria tornado impossível na cidade santa se o povo pudesse mostrar o corpo de Jesus no sepulcro. Ademais a antropologia bíblica implica sempre o corpo em qualquer forma de vida, mesmo a pneumática. Os inimigos, seja nos tempos apostólicos, seja nas polêmicas rabínico-cristãs da literatura talmúdica, jamais negaram o sepulcro vazio. Interpretaram-no de modo diverso, como roubo por parte dos discípulos (Mt 28, 13) ou como quer recentemente D. Whitaker, roubo perpetrado por violadores de túmulos.(77) Exegetas tanto católicos quanto protestantes afirmam um núcleo central histórico, anterior aos evangelhos.(78) As mulheres encontraram o sepulcro vazio. Esse núcleo histórico foi tradicionado em ambientes cultuais. É sabido que os judeus veneravam os túmulos dos profetas.(79) Assim semelhantemente desde cedo os cristãos começaram a venerar os lugares onde se realizou o mistério cristão em Jerusalém. Dramatizavam-no em três

77 What happened to the body of Jesus, em The Expository Times 81 307-310 esp. 310.
78 Especialmente Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 77-83,90; Pannenberg, W., Grundzüge der Christologie, op. cit, 97-103; Fuller, D., The Ressurrection of Jesus and the Historical Method, em Journal of Bibel and Religion 34 (1966) 18-24.
79 Cf. Jeremias, J., Heilige Gräber in Jesu Umwelt, Göttingen 1958.


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momentos principais: uma recordação (anamnese) da última noite de Jesus, por ocasião do ágape fraternal; uma liturgia da sexta-feira santa na hora em que se celebravam as orações judias; e uma ação litúrgica na manhã de páscoa com uma visita ao sepulcro de Jesus.(80) Por isso os textos do relato do encontro do sepulcro vazio mostram um interesse especial pelo lugar: «Ele não está aqui. Vede o lugar onde o depositaram» (Me 16,6b). Essa tradição porém não se preocupou em dar exatamente os detalhes. Basta comparar os paralelos sinóticos e João para se observar as divergências (no número de mulheres; no número de anjos; divergências nos motivos por que as mulheres foram ao sepulcro; diferença de horário; diferença na mensagem do anjo; diferença na reação das mulheres frente ao sepulcro vazio). O relato contudo atém-se ao essencial: O Senhor vive e ressuscitou. O sepulcro está vazio. O fato do sepulcro vazio porém não é feito, em nenhum evangelista, prova da Ressurreição de Jesus. Em vez de provocar fé originou medo, espanto e tremor, de sorte que «elas fugiram do sepulcro» (Me 18,6; Mt 28,8; Lc 24,4).(81) O fato do sepulcro vazio foi imediatamente interpretado por Maria Madalena como roubo. (Jo 20, 2.13.15). Para os discípulos ele não passa de um diz-que-diz-que de mulheres (Lc 24,11.22-24.34). O sepulcro vazio por si só é um sinal ambíguo, sujeito a várias interpretações. Somente a partir das aparições sua ambigüidade é dilucidada e pode ser lido pela fé como um sinal da Ressurreição de Jesus, As aparições são concedidas a testemunhas escolhidas. O sepulcro vazio é um sinal que fala a todos e leva a refletir na possi-

80 Cf. Schille, G., Das Leiden des Herrn: die evangelische Passionstraditíonen und íhr Sitz ím Leben, em Zeitschrift für Theologie und Kirche 52 (1955) 161 205; Delorme, J., Résurrection et tombeau de Jésus, op. cit., 125.129; Bode, E. L., A Liturgical Sitz im Leben for the Gospel Tradition of the Wornen's Easter Visit of the Tomb of Jesus?, em The Catholic Bíblical Quarterly 32 (1970) 237-242 afirmando a tese, como «very possible» (242).
81 A visita de Pedro e João ao sepulcro vazio em Jo 20,8 parece não ser uma reminiscência histórica mas uma construção teológica do autor do evangelho de João, no sentido de colocar o chefe do grupo joaneu junto do chefe da Igreja, Pedro: cf. Benoît, P., Passion et Résurrection die Seigneur, op. cit., 284-286.


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bilidade da Ressurreição. É um convite à fé. Não leva ainda à fé.

Um problema à parte oferece a aparição dos anjos junto ao sepulcro. A interpretação tradicional vê de fato neles seres supraterrestres e verdadeiros anjos. Contudo, sem questionarmos a existência dos anjos, deve-se dizer que esta interpretação, mesmo dentro dos critérios bíblicos, não é a única possível. O anjo (mal'ak Jahwe) está no lugar de Javé, cuja transcendência o judeu reafirmava absolutamente, de sorte que em vez de dizer Javé dizia Anjo de Javé (Gên 22,11-14; Êx 3,26; Mt 1,20). Outra interpretação poderia ser a seguinte: as mulheres encontram o sepulcro vazio e logo atinam com a Ressurreição de Jesus. Esta idéia é interpretada como uma iluminação de Deus. Exprimem-na na linguagem literária da época como sendo uma mensagem do anjo (Deus). Outra interpretação possível, e que se coaduna melhor com a análise que expusemos acima, se articularia da seguinte forma: as mulheres vão ao sepulcro. Encontram-no vazio. Estão desapontadas e com medo. Nesse entretempo regressam os apóstolos da Galiléia, onde tiveram aparições do Senhor. O testemunho deles é unido ao das mulheres. A mensagem dos Apóstolos: «O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34, talvez a fórmula mais antiga) é considerada como uma revelação de Deus e expressa na linguagem da época, colocando-a na boca de um anjo (Deus). A fé na Ressurreição não encontrou sua origem na descoberta do sepulcro vazio e no testemunho das mulheres mas nas aparições dos apóstolos. Por isso a preocupação de Mc 16,7 de fazer as mulheres irem a Pedro e aos discípulos e comunicarem-lhes a mensagem do anjo. Eles souberam do sepulcro vazio primeiro pelas mulheres. Por isso eles podem responder às calúnias dos judeus -- de que tinham raptado o corpo de Jesus -- que por si mesmos nada sabiam do sepulcro vazio. Mt 28,11-16 (o conluio dos vigias com o sumo sacerdote) revela uma

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clara tendência apologética de Mateus. Na forma de uma estória ele quer tornar ridícula a calúnia dos judeus acerca do roubo do corpo de Jesus.(82)

b) As aparições de Cristo,
origem da fé na Ressurreição

A profissão de fé na Ressurreição de Jesus é a resposta às aparições. Só elas tiraram a ambigüidade do sepulcro vazio e deram origem à exclamação dos Apóstolos: Ele ressuscitou verdadeiramente! Os evangeIhos, ao nível redacional, transmitem-nos os seguintes dados: as aparições são descritas como uma presença real e carnal de Jesus. Ele come, caminha com os discípulos; deixa-se tocar, ouvir e dialoga com eles. Sua presença é tão real que pôde ser confundido com um viandante, com um jardineiro e com um pescador. Contudo, ao lado destas representações maciças, há afirmações que não se coordenam mais com aquilo que conhecemos do corpo: o Ressuscitado não está mais ligado ao espaço e ao tempo. Aparece e desaparece. Atravessa paredes. E nós nos perguntamos: quando isso acontece podemos falar ainda com propriedade de corpo?

Se considerarmos as aparições ao nível da história das tradições (das quais se originaram os evangelhos como os temos hoje), o problema se apresenta bem mais complexo. Aqui se verifica o seguinte fenômeno: de uma representação espiritualizante da Ressurreição como em lCor 15,5-8; At 3,15; 9,3; 26,16; Gá1 1,15 e Mt 28, passa-se para uma materialização cada vez mais crescente como em Lc e Jo, nos evangelhos apócrifos de Pedro e aos Hebreus.(83) A necessidade apologética obrigou os hagiógrafos a tais concretizações. Ademais as aparições, quanto mais recentes são os textos, tanto mais se concentram em Jerusalém e mais

82 Cf. Kremer, J, Die Osierbotschaft, op, cit., 25-28.
83 Cf. Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, op. cit, 94-112; 186-232.


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são aproximadas ao tema do sepulcro vazio. Um problema à parte é o das indefinidas tentativas de harmonização entre as aparições relatadas em lCor 15 . 5-8 e as narradas nos evangelhos.(84) Paulo refere cinco aparições do Senhor vivo. Mc 16,1-8 não conhece nenhuma aparição, mas diz claramente que Cristo se deixará ver na Galiléia (7b). O final de Mc (16,9-20) condensa as aparições relatadas nos outros evangelhos e, com boas razões, pode ser considerado um acréscimo posterior. Mt 28,16-20 conhece uma só aparição aos Onze, na Galiléia, «sobre o monte que Jesus lhes indicara». A aparição às mulheres, às portas do sepulcro vazio (28,8-10), é vista pelos exegetas como uma elaboração ulterior sobre o texto de Mc 16,7: as palavras do Ressuscitado são notavelmente semelhantes às do anjo.(85) Lc refere duas aparições, uma aos discípulos no caminho de Emaús e outra aos Onze e a seus discípulos em Jerusalém (24,13-35; 36-53). Jo 20 refere três manifestações do Senhor, todas elas em Jerusalém. Jo 21, considerado como um apêndice posterior ao Evangelho, refere outra aparição no lago de Genesaré, na Galiléia. Contudo a interpretação desse capítulo é mais coerente se admitirmos que seja a reelaboração de uma tradição pré-pascal acerca do chamamento dos discípulos (Lc 5,1-11), agora recontada à luz da novidade da Ressurreição com a clara intenção de relacionar o ministério de Pedro com o poder do Cristo ressuscitado. Os relatos revelam duas tendências fundamentais: Mc e Mt concentram seu interesse na Galiléia enquanto Lc e Jo em Jerusalém, com a preocupação de ressaltar a realidade corporal de Jesus e a identidade do Cristo ressuscitado com Jesus de Nazaré. A harmonização, feita geralmente pela exegese católica, afirmando que primeiro Cristo teria aparecido em Jerusalém e depois na Galiléia, está sendo abandonada. As dificuldades dos textos, da maneira das aparições e o melhor conhecimento das tradições e do trabalho redacional dos hagiógra-

(84) Cf. Kremer, J, Das älteste Zeugnis, op. cit., 65-82.
85 Kremer, J, Die Osterbotschaft, op. cit, 3941.


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fos, induzem a concluir pelo seguinte: as aparições na Galiléia têm mais fundamento histórico; as de Jerusalém seriam elaboração de caráter mais teológico das vivências na Galiléia, com a intenção de relevar o significado histórico-salvífico da cidade e da comunidade primitiva aí formada. «A salvação vem de Sião» (SI 13,7; 109,2; Is 2,3; cf. Rom 11,26). Is 62,11 diz: «Eis que o salvador vem para ti, filha de Sião». A história da salvação atinge em Jerusalém seu termo e sua plenitude. Lc tanto no evangelho quanto nos At frisa esse motivo teológico ligado à cidade: páscoa e pentecostes se realizam aí. O Ressuscitado será anunciado, começando em Jerusalém até os confins do orbe (Lc 24,47; At 1,8). Essa tendência é mais acentuada ainda no evangelho de S. João: o Cristo joaneu age de preferência em Jerusalém por ocasião das festas do povo. A tradição da Galiléia interpretara a páscoa de Jesus não tanto como Ressurreição da carne mas como a elevação, glorificação e manifestação do Filho do Homem (cf. Dan 7,13ss), agora sentado à direita de Deus, utilizando a linguagem do mundo apocalíptico. Mt 28,16-20, representante da tradição da Galiléia, apresenta o Cristo ressuscitado constituído em Poder como Filho do Homem, transmitindo esse mesmo poder à sua Igreja enviando-a à missão. O Reino imperecível (Dan 7,14) é «traduzido» pela presença constante de Cristo na Igreja (Mt 28,19). A Ressurreição é vista como a Parusia do Filho do Homem agora presente na comunidade (cf, 2Pdr 1,16ss). (86)

A pregação e a catequese da páscoa de Cristo, elaboradas no horizonte da compreensão dos leitores e ouvintes gregos, obrigaram a uma tradução desta interpretação, na linha da Ressurreição da carne. O querigma fundamental agora na tradição do tipo de Jerusalém (Lc e Jo) soa da seguinte forma: «Eu estava morto. Mas eis que agora vivo pelos séculos dos séculos. Eu tenho as chaves da morte e do inferno»

86 Cf. Seidensticker, P., Zeitgenoessische Texte, op. cit, 43-50; Id., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 43-66.

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(Apc 1,18; cf Rom 6,10). O problema que surge reside em salvaguardar a realidade da Ressurreição. Cristo vive realmente e não é um «espírito» (Lc 24, 39) ou um «anjo» (At 23,8-9). Daí a preocupação em relevar a identidade do Ressuscitado com Jesus de Nazaré, descrever e tocar suas chagas (Lc 24,39; cf. Jo 20,20.25-29) e acentuar que ele comeu e bebeu com seus discípulos (At 10,41) ou que ele comeu diante deles (Lc 24,43). Os relatos de vivências do Ressuscitado por pessoas privadas, como Maria Madalena (Jo 20,14-18; cf. Mt, 28,9-10) ou dos jovens de Emaús (Lc 24,13-35), são cercados de motivos teológicos e apologéticos dentro do esquema literário das legendas para deixar claro aos leitores a realidade do Senhor vivo e presente na comunidade. Exemplo clássico de tal preocupação é o relato dos jovens de Emaús.(87) O modo como os dois jovens chegaram à fé no Ressuscitado é apresentado como modelo para os leitores: deixar-se instruir pelas Escrituras que falam de Cristo e deixar que os olhos se abram pela «fração do pão», isto é, pela Eucaristia. É o caminho pelo qual nós ainda hoje chegamos à fé na novidade pascal, pela palavra e pelo sacramento. O relato de Emaús (Lc 24,13-35) segue um estilo literário típico de Lucas, utilizado também nos Atos (8,26-39) ao narrar a conversão do camareiro etíope por Filipe. Em ambas as narrações encontram-se os seguintes paralelos: o Ressuscitado ou Filipe inspirado pelo Espírito explica o AT e o relaciona a Cristo. No final o camareiro ou os dois jovens externam um pedido. O ponto culminante do relato reside na recepção de um dos sacramentos que na Igreja primitiva eram fundamentalmente dois, a Eucaristia e o Batismo. Assim a fé na Ressurreição, para os tempos pós-apostólicos, se baseia na pregação e nos sacramentos da Igreja, que testemunham e tornam presente e visível o Cristo

87 Cf. Dupont, J, Le repas d'Emmaus, em Lumière et Vie 31 (1957) 77-92; Orlett, An Influence of the Early Liturgy upon the Emmaus Account, em Catholich Biblical Quarterly 21 (1959) 212-219; Kehl, M., Eucharistie und Auferstehung. Zur Deutung der Ostererscheinungen beim Mahl, em Geist und Leben 43 (1970) 90-125, esp. 101-105.

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Ressuscitado. Mesmo que não houvesse sepulcro vazio e aparições, seria ainda possível e válida a fé na Ressurreição. Por causa da Igreja. Esse é o sentido último intencionado pelo relato da dúvida de Tomé em Jo 20 com a conclusão: «Felizes os que não vêem e apesar disso crêem» (20,29).

3. Tentativa de reconstrução
dos acontecimentos pascais

Do exposto acima, dois fatos resultam claros e indiscutíveis: o sepulcro vazio e as apariçoes aos discípulos. Esses porém foram tradicionados e revestidos de várias tendências, conforme as necessidades do momento: necessidades de ordem teológica, apologética, catequética e cúltica. Reconstruir por isso os acontecimentos pascais constitui uma tarefa arriscada com resultados muito fragmentários e questionáveis. Contudo a fé que não se baseia num mito mas numa história sempre mostrará interesse pelo «como foi» a fim de eruir mais profundidade para «o que isso significa para mim». Os relatos da Ressurreição, como os temos agora, teriam como pano de fundo histórico os seguintes pontos: (88)

a) A prisão de Jesus que fez realizar o que ele prevenira: «todos irão escandalizar-se de mim» (Mc 14,27; Mt 26,31). Os discípulos fogem (Mc 14,50; Mt 26,56).

b) Eles o revêem ressuscitado primeiramente na Galiléia (Mc 14,28; Mt 26,32; Mc 16,7; Mt 28,7.16-20). Muito possivelmente, o relato dos jovens de Emaús está subordinado ao regresso dos discípulos à Galiléia, após o fracasso de Jesus em Jerusalém.

(88) Cf. especialmente Seidensticker, P., Die Auferstehung Jesu, op. cit., 77-83.

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c) Um dia depois do sábado as mulheres têm as primeiras vivências pascais. O nome e o número das mulheres variam nos quatro evangelhos. Só Maria Madalena ocorre em todos eles. Elas vão ao sepulcro levar aromas (Lc 24,1; Mc 16,1). Nada sabem da sepultura selada (Mt 27,66). Encontram o sepulcro aberto e sem o corpo de Jesus (Jo 20,1; Mc 16,4; Mt 28,2; Lc 24,2). Fogem com medo e vão informar os apóstolos (Mt 28,8; Lc 24,9ss.23; Jo 20,2ss; Mc 16,7).

d) Um fato determinante para a fé na Ressurreição deu-se algum tempo depois (cf. «depois de seis dias»: Mc 9,2; Mt 17,1 ou «uns oito dias depois»: Lc 9,28) (89) na Galiléia (Mc 16,7; Mt 28,7.16-20; cf. Mc 14,28; Mt 26,32). Cristo ressuscitado se deixa ver aos seus discípulos. Esses interpretam as aparições como encontros com Jesus de Nazaré agora elevado junto a Deus em vida eterna e em glória. Sobre as circunstâncias especiais de lugar, de modo e de número de discípulos pouco se pode, no atual estado da pesquisa, determinar exata e historicamente. Em todos os casos os discípulos viram nos acontecimentos pascais um fato escatológico, como realização plena e acabada da história de Jesus agora manifestado Messias e Filho do Homem e de toda a História da Salvação. Anunciar Jesus como o Salvador e Juiz universal e seu reinado sobre todas as coisas constitui a missão dos Apóstolos e da Igreja.

(89) Já aludimos acima que a frase «ressuscitou ao terceiro dia» não contém uma reminiscência histórica mas é antes uma proposição dogmática. Cristo apareceu alguns dias após. A transfiguração de Cristo, colocada no tempo da vida terrestre de Cristo, contém traços claros de ser uma aparição do Ressuscitado reprojetada para o tempo antes de sua morte e ressurreição; agora como está, revela o processo de catequese da Igreja primitiva ainda em andamento onde elementos históricos de Cristo são retrabalhados com outros acontecidos depois da Páscoa do Senhor (anúncio da paixão com o convite a seguir a Cristo no caminho da cruz: Mc 8,31-38 par): cf. Seidensticker, P., Zeitgenoessische Texte, op. cit., 48-50.

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Essa reconstrução é certamente precária. Porém ela contém os dados históricos fundamentais a partir dos quais emergiu a fé na Ressurreição de Jesus como escândalo para muitos (cf. lCor 1,23; At 17,32; 23, 6-9) e esperança e certeza de vida eterna para outros tantos (cf. lCor 15,50ss).

Resta saber o que significa para a teologia e para a existência humana de fé, hoje, a Ressurreição de Jesus.

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IV- Reflexões de Ordem Sistemática:
o Emergir do Novo Adão

COMO anunciar e viver a fé na Ressurreição de Jesus hoje dentro de nossa compreensão da existência? Se a Ressurreição é a verdade fundamental do Cristianismo e o motivo de nossa esperança onde situá-la dentro de nosso horizonte? Para que problemática nossa, hoje, a fé na Ressurreição seria uma luz e um ponto de orientação? Deve haver sempre uma correlação entre as verdades da fé e as experiências da vida. Sem isso a fé não se legitima e corre o risco de transformar-se numa ideologia religiosa.

1. Nosso horizonte de compreensão
e fé na Ressurreição

O homem essencialmente é homo viator; está em busca de si mesmo. Quer realizar-se em todas as suas dimensões. Não só na alma. Mas no homem todo, unidade radical corpo-alma. O pensar utópico é uma das constantes em todas as culturas, desde as mais primitivas, como entre nossos índios Tupiguaranis e Apapocuva-guaranis(90), até nossos dias como num Teilhard de Chardin ou A. HuxIey.(91) O homem quer superar

90 Cf. Linding, H., Wanderungen der Tupi-Guarani und Eschatologie der Apapocuva-Guarani, em Mühlmann, W., Chiliasmus und Nativismus. Studien zur Psychologie, Soziologie und historischen Kazuistik der Umaturzbewegungen, Rerlin 2 1964, 19-40.
91 Veja-se o enorme material acumulado nos três tomos de E. Bloch, rinzip Hoffnung, Frankfurt 1959; Eliade, M., Dimensions religieuses du Renouvellement cosmique,) em Eranos Jahrbuch 1959, 241-275; cf. A Utopia em Concilium jan (1969) 130 45.


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todas as alienações que o afligem como a dor, a frustração, o ódio, o pecado e a morte. Quer plenitude e vida eterna. O princípio-esperança é uma estrutura existencial do ser-homem. «Quem me livrará deste corpo de morte?» (Rom. 7,24). Todos os homens sonham com a situação descrita pelo Apocalipse «onde a morte não existirá mais, nem mais luto, nem prantos, nem fadiga, porque tudo isto já passou» (21,4). O homem de hoje se coloca mais que em outras gerações perguntas radicais acerca de seu futuro. A pergunta que mais lhe interessa não é tanto Quem é o homem? mas Que será do homem? Que futuro lhe está destinado? Nietzsche sonhou com o Super-Homem, com um corpo de César e alma de Cristo(92), um santo de uma espécie nunca dantes existente, capaz de dominar com suma responsabilidade o mundo por ele mesmo criado. A ânsia de realização pessoal e cósmica do homem é sempre frustrada pela morte. Ela é uma barreira para todas as utopias. Que resposta dá o Cristianismo a semelhante questionamento? É aqui que a fé na Ressurreição, como o futuro absoluto do homem, ganha ressonância especial, como a teve outrora, no tempo de Jesus. A teologia judaica pós-exílica elaborou a utopia do Reino de Deus (nos seus vários modelos: político, profético e sacerdotal) como a transformação radical dos fundamentos deste mundo e irrupção do novo céu e da nova terra, uma realidade totalmente reconciliada com Deus e consigo mesma.(93) O tempo de Cristo se caracteriza por essa efervescência e expectativa messiânico-escatológica (cf. Le 3,15). O mundo helênico da mesma forma era pervadido por doutrinas de libertação. A gnose prometia redenção para a existência alienada do

92 Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre, em F. Nietzsche III. Darmstadt 1960, 422; cf. o histórico da idéia do Super-homem que tem origem cristã; depois foi secularizada por Jean Paul e aplicada a Napoleão em E. Beriz, Der dreifache Aspekt des Ubermenschen, em Eranos Jahrbuch 1959, 109-192. 93 Cf. Schnackenburg, R., Gotteslierrschaft und Reich, Freibury 2 1961 com a enorme bibliografia ai trabalhada esp. 1-48; cf. Brunner, P., Elemente einer dogmatischen Lehre von Gottes Basileia, em Die Zeit Jesu (Fest. para H. Schlier) Freiburg 1970, 228-256.

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homem perdido no mundo. Coube a Hans Jonas mostrar em suas minuciosas pesquisas o quanto o mundo gnóstico se assemelha por sua temática e preocupações com o moderno existencialismo. (94) Num contexto assim foi anunciada a novidade absoluta do triunfo da vida sobre a morte, e como são verdadeiras aquelas palavras do Cântico dos Cânticos: «Tão forte como a morte é o amor» (8,6). Não só o evangelho da Ressurreição se situa num tal horizonte de compreensão mas principalmente a mensagem toda de Jesus, da qual a Ressurreição constitui o dado central.

2. A Ressurreição de Jesus: uma utopia
humana realizada

Um homem se levanta na Galiléia. Jesus de Nazaré, que mais tarde se revelou como sendo o próprio Deus em condição humana, ergue sua voz e anuncia: «Esgotou-se o prazo. O romper da nova ordem está próximo e esta será trazida por Deus. Revolucionai-vos em vosso modo de pensar e agir. Crede nessa alviçareira notícia» (cf. Mc 1,15; Mt 4,17). Com isso Cristo assume um elemento de utopia presente em todos os homens: a superação deste mundo alienado, levada a efeito por Deus. Reino de Deus, palavra que ocorre 122 vezes nos evangelhos e 90 vezes na boca de Cristo, significa uma revolução total e estrutural dos fundamentos desse mundo, introduzida por Deus. Reino de Deus não significa tanto algo de interior ou espiritual ou mesmo que vem de cima ou que se deva esperar fora deste mundo ou depois da morte. Em seu sentido pleno Reino de Deus é a liqüidação do pecado com todas as suas conseqüências no homem, na sociedade e no cosmos, a transfiguração total deste mundo no sentido de Deus.(95) Os milagres de Jesus,

94 Jon, H., Gnosis und apatantiker Geist I, II, Goettingen 1934.
95 Cf. Bornkamm, G., Jesus von Nazareth, Stuttgart 1956, 59; Bultmann, R., Theologie des Neuen Teatamentes, Tübingen 5 1965, 3; Decker, J., Das Heil Gottes. Heil-und Sündenbegriffe in den Qumrantexten und im Neuen Testament, Goettingen 1964, 388-390; Boff, L., Jesus Cristo Libertador, Vozes, Petrópolis 2 1972, 62-75.


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mais que provar sua divindade, visam mostrar o reino presente em nosso meio.(96) Cristo mesmo diz: «Se eu com a mão de Deus expulso demônios, sem dúvida o reino de Deus chegou até vós» (Lc 11,20). É um enfermo curado, então se manifesta aí a presença do reino de Deus (Lc 10,9). Por isso grita ele: «Bemaventurados vós pobres, porque a vós pertence o reino de Deus. Bem-aventurados vós que tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados os que agora chorais porque ireis rir» (Lc 6,20-21), Cristo mesmo já é a presença do novo homem na nova ordem. Aos seus olhos doenças são curadas (Mt 8,1617; Mc 6, 56). Aplacam-se tempestades (Mt 8,23-27) e o mar é posto a serviço do homem-rei (Lc 5,4-7), a fome é vencida (Mc 6,30-40), pecados são perdoados (Mc 2,5; Lc 7,48) e existe misericórdia para os lábeis (Jo 8,1-11), mortos ressuscitam e o luto se transfigura em alegria fraterna (Lc 7,11-17; Mc 5,4143).(97) Ao se levantar na Galiléia anunciando a nova do reino, Cristo lê na sinagoga um tópico de Isaías, que diz: «Para evangelizar os pobres, Ele me enviou, a pregar aos cativos a liberdade, aos cegos a recuperação da vista, para pôr em liberdade os oprimidos e para anunciar um ano de graça do Senhor». E comenta Jesus: «Hoje se cumpre essa escritura que acabais de ouvir» (Lc 4,18-19.21). S. João Batista no cárcere, em dúvida se Cristo era o Enviado de Deus para trazer o Reino da total libertação dos homens e de seu mundo, manda seus discípulos a ele para perguntar-lhe: «És tu aquele que há de vir ou devemos esperar por outro?» A resposta não podia ser outra, pois que constitui o conteúdo de sua mensagem: «Cegos vêem, coxos caminham, leprosos são purificados, surdos ouvem, mortos são ressuscitados e a boa noticia da libertação é anunciada aos pobres» (Mt 11,5). Aqui está o sinal da reviravolta total e estrutural. Aquele que conseguir introduzir isso será o libertador

96 Cf. Fuller, R. H., Die Wunder Jesu in Exegese und Verkündigung, Düsseldorf 1967, 21; 121 etc.
91 Veja o excelente artigo de Mesters, C., Jesus Cristo Deus conosco, em Grande Sinal 24 (1970) 93-100 esp. 94-96.


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da humanidade. E Cristo se apresenta como o salvador do mundo. Como transparece, Reino de Deus não pode ser privatizado para uma zona do homem como seja sua alma, os bens espirituais ou a Igreja. Reino de Deus abarca toda a realidade humana e cósmica que deve ser transfigurada e liberta de todo o sinal de alienação. Se o mundo permanecer como está, não pode ser a pátria do Reino de Deus. Deve ser transformado em suas estruturas totais. Daí o Logion do Jesus joaneu: «Meu reino não é deste mundo» (Jo 18,36), isto é, não é das estruturas ambíguas e pecadoras deste mundo, mas de Deus em sentido objetivo de: é Deus que irá intervir e sanar em sua raiz a realidade total, elevando este mundo em novo céu e nova terra. Já Santo Agostinho comentava: Meu reino não é deste mundo mas está neste mundo. Elemento essencial do reino é a aniquilação da morte como o maior inimigo do homem em sua ânsia de realização e vida plena. São João traduz a temática jesuânica de reino dos céus exatamente como vida eterna.

A rejeição, por parte dos judeus, de Jesus e de sua mensagem frustrou a realização cósmica do reino de Deus. Deus, porém, que triunfa na fraqueza e na infidelidade dos homens, realizou o reino de Deus na pessoa de Jesus. Já dizia Orígenes: Cristo é a auto-basiléia tou Theou, isto é, o reino de Deus realizado em sua pessoa. Nele foram vencidos a morte, o ódio e todas as alienações que estigmatizam a existência humana, Nele se revelou o homem novo (homo revelatus), o novo céu e a nova terra. Paulo bem o compreendeu quando feliz exclama: «ó morte, onde está a tua vitória? Onde está o espantalho com que amedrontavas os homens ... A morte foi tragada pela vitória» (cf. lCor 15,55a.b). Cristo ressuscitou, não para a vida biológica que tinha antes, mas para a vida eterna. O Bios está sempre sob o signo da morte, a Zoé (vida eterna) se situa no horizonte do Pneuma de Deus indestrutível e imortal.(98) Ressurreição se de-
98 Cf. Bultmann, R., Theologie des Neuen Testamentes, op. cit., 331.

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fine então como a escatologização da realidade humana. A introdução do homem como totalidade corpo-alma no reino de Deus. A presença da Zoé eterna dentro do Bios finito e humano. A realização total das potencialidades que Deus colocou dentro da existência humana. Com isso se realizou uma utopia que dilacerava o coração humano. Em Jesus Cristo recebemos a resposta definitiva de Deus: não a morte mas a vida é a última palavra que Ele, Deus, pronunciou sobre o destino humano. Para o cristão não mais uma utopia mas uma topia: a vida eterna possui um lugar dentro de nosso mundo, sagrado para a morte, Jesus Cristo ressuscitado. O nosso futuro está aberto, e o fim da história do pecado-graça tem um fim bom, já garantido e atingido. Com isso entrou para a história da consciência humana aquilo que o mundo antigo todo não conhecia, o sorriso da esperança. O mundo antigo conhece sim as gargalhadas de Pan ou de Dionísio embriagado. Retratou o sorriso triste de quem vive sob a Moira. Mas não conhece o sorriso de quem já venceu a morte e goza das primícias da vida eterna. «Porque Jesus ressuscitou dos mortos como primícias dos que morrem» (lCor 15,20). «Ele é o primogénito entre muitos irmãos» (Rom 8,29). O que é presente atual para ele será para nós futuro próximo. (99)

A Ressurreição não é um fato privado da vida de Jesus. É a realização em sua existência da mensagem de global libertação que ele pregou e prometeu. Ele é a nova humanidade, o novo Adão «no qual todos somos vivificados» (lCor 15,22). «O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor ele se consumará», anuncia-nos o Vaticano II (GS n. 39).

99 Esse aspecto de futuro foi revelado de modo especial Por Moltmann, J., Theologie der Hoffnung, op. cit., 173-179; 184-204; Kreck, W., Die Zukunft des Gekommenen. Grundprobleme der Eschatologie, München 2 1966, 91ss e 203ss, Boff, L., Jesus Cristo Libertador, op. cit., 283-285

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3. A novidade do homem novo

A novidade do novo homem, irrompida com o evento-ressurreição, reside, como já acenamos, na plenificação de todos os dinamismos latentes dentro da realidade humana de Jesus. Deus não substitui o velho por um novo, mas faz do velho, novo. Como veremos, no próximo capítulo, a capacidade de abertura, de comunicação e comunhão, próprios do homemcorpo, foram pela ressurreição totalmente realizados.(100) Por isso o Ressuscitado possui uma presença, não mais limitada ao espaço e tempo palestinense, mas se estende à totalidade da realidade. Paulo exprime tal verdade dizendo que o Cristo ressuscitado vive agora na forma de Espírito (cf. 2Cor 3,17; lCor 6,17; 15, 45; Rom 8,9) e seu corpo sárquico (fraco e limitado pelo espaço e pelo tempo) foi transformado em corpo pneumático-espiritual (cf. lCor 15,44).(101) Afirmando que Cristo é Espírito, Paulo não pensa ainda em termos de Terceira Pessoa da Santíssima Trindade mas, dentro da compreensão judaica, quer fazer entender as reais dimensões da realidade da ressurreição: assim como o Espírito enche todas as coisas (SI 139,7; Gên 1,2) da mesma forma, agora, o Ressuscitado. Ele é o Kyrios, o Cristo cósmico (cf. Col 1,15-20; Ef 1,10) e o pleroma (Ef 1,23; Col 2,9), isto é, aquele elemento pelo qual a totalidade do mundo atinge sua plenitude e o termo de sua perfeição. Esse tema foi com inusitada paixão desenvolvido por Teilhard de Chardin, embora estivesse bem presente no pensamento paulino e em suas comunidades. (102) A fé da comunidade primitiva numa «ubiqüidade cósmica» do Ressuscitado foi expressa num ágrafon do evangelho de S. Tomé (grego) : «Diz Jesus: onde dois estive-

100 Kässemann, E., na Zeitschrift für Theologie und Kirche apreciando o livro de Bultmann, Theologie des NT, 59 (1962) 282; Grabner-Haider, A., Auferstehungsleiblichkeit, em Stimmen der Zeit 181 (1968) 217-222; Id., Ressurreição e Glorificação, em Concilium Janeiro (1969) 58-72.
101 Herrade Mehl-Koehnlein, L'homme s elon l'apôtre Paul, Neuchatel-Paris 1951, 31-37; Boff, L., Jesus Cristo Libertador, op . cit., 226-230.
102 Cf. Boff, L., O Evangelho do Cristo Cósmico. A realidade de um mito e o mito de uma realidade, Vozes, Petrópolis 1971.


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rem, não estão sem Deus. Onde alguém está só, eu digo: Eu estou junto dele. Levanta a pedra e tu me encontrarás dentro dela. Racha a lenha e eu estarei lá».(103) A promessa feita pelo Ressuscitado: «Eu estarei convosco todos os dias até a plenitude dos tempos» (Mt 28,20; cf. 18,20; Jo 14,23) aqui recebe uma concretização no meio do mundo secular do trabalho. Esse pode parecer sem sentido, e não raro é perigoso e pesado. Para o fiel ele esconde uma glória misteriosa: coloca em comunhão com o Ressuscitado. Ele está presente por tudo e sempre junto dos seus, pouco importa o que façam. O Ressuscitado, existindo em forma pneumática, está livre das cadeias do espaço e do tempo, é total comunhão e presença primeiro em todo o cosmos, de forma mais intensa na Igreja, que é seu corpo (cf. Col 1,18) ; de maneira mais densa ainda quando a comunidade reza e salmodia em seu nome; de maneira especial nas ações litúrgicas e de modo particularíssimo no sacramento da Santíssima Eucaristia (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 7). Com isso viemos a saber que o fim dos caminhos de Deus reside no homem-corpo, totalmente transfigurado e feito total abertura e comunicação.(104)

4. Conclusão

Muitos outros aspectos de ordem sistemática deveriam ser aqui abordados, como fizeram Durrwel(105) ou K. Rahner(106) em sucessivos ensaios, como por exemplo o aspecto soteriológico da Ressurreição, já ressaltado nas primeiras fórmulas cristológicas de Ressurreição (lCor 15,3; Rom 4,25; Lc 24,30ss; At 10,43; lCor 15,17), o aspecto futurístico-escatológico, o que-

103 Jeremias, J., Uwbekannte Jesusworte, Gütersloh 3 1963, 100-104.
104 Cf. Metz, J. B., Caro cardo salutis. Zum christlichen Verständnis des Leibes, em HochIand 55 (1962) 97-107 esp., 97.
105 Durrwell, F. X., A Ressurreição de Jesus, Herder, S. Paulo 1969, capítulos V-IX.
106 Dogmatische Fragen zur Osterfrömmigkeit, em Schriften zur Theologie, Einsiedeln 51967, 157172; ld., Auferstehung Christi, em LThK I, 1038-1041; ld., Sacramentum Mundi I, 403-405; 420-425. Cf. também von Balthasar, H. U., Mysterium Paschale, em Mysterium Salutis III/2, 133-319.


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rigmático e o antropológico, cujas linhas mestras delineamos acima, o sacramental e o eclesiológico. Essa múltipla dimensionalidade está presente nos relatos da Ressurreição, que devem ser hermeneuticamente relidos a partir de nossa existência de fé hoje. Em cada aspecto nota-se uma tônica de fundo: a Ressurreição significa a verdade e a realização da pregação de Jesus. Ele veio pregar o Reino de Deus, que, fundamentalmente, se traduz por vida eterna não mais ameaçada pela morte. A Ressurreição veio mostrar que isso não é uma utopia humana mas uma realidade dentro do velho éon. O futuro já está presente como esperança que é um já agora embora não ainda totalmente realizado. Isso funda um modelo novo de vida para o qual as realidades futuras já se configuram no presente, enchem de um dinamismo novo o homem de fé e lhe permitem ousar tudo porque já sabe que o f im está garantido e este será feliz porque se chama Vida Eterna.

Vejamos porém como a fé na ressurreição de Cristo se articula com nosso próprio futuro e com a nossa própria ressurreição.

V- A Nossa Ressurreição na Morte

A DESPEITO da luz nova trazida pelo clarão do Cristo ressuscitado para o problema da morte humana ela se apresenta como um fenômeno de extrema riqueza antropológica e teológica.(1) Em sua abordagem transparecem com nitidez os reais pressupostos, ainda que inconscientes e até explicitamente negados, implicados em cada modelo de teologia e de antropologia. A compreensão da morte não é sem importância para entender a vida humana, o valor ou o desvalor da situação terrestre, como situar a antropologia teológica em função da pastoral e da catequese sobre o sentido da vida, o destino dos mortos, sobre o significado do juízo, do purgatório, da ressurreição e de nossas orações «pelas santas almas benditas».(2) Esse tema não

1 Sobre o tema refiro apenas a literatura essencial: Rahner, K., Zur Theologie des Todes, Freiburg I.B. 1958; Boros L., Mysterium mortis. Der Mensch ia der letzten Entscheidung, Olten-Freiburg i.B. 1962; Id., Erlöstes Dasein, Mainz 1966, 89-108; Troisfontaines, R., Je ne meurs pas... Paris 1960; Martelet, R. P., Victoire sur Ia mort, éléments d'anthropologie chrétienne, Paris 1962; Volk, H., Das christliche Verständnis des Todes, Regensburg 1957; Gleason, R. W., The World to come, N. York 1958; Id., Toward a Theology of Death, em: Thougth Fordham Univ. Quart. 32 (1957) 39-68; Lepp, L, La mort et ses Mystères. Paris 1966; Jankélévitch, V., La mort, Paris 1966; Bordoni, M., Dimensioni antropologische della morte, Roma 1969, certamente o livro que melhor informa sobre a atual problemática filosófico-teológica juntamente com o de La Peña, J. R., El hombre y su muerte. Antropologia teológica actual. Ed. Aldecoa, Burgos 1971; Bolado, A., Filosofia y Teologia de Ia muerte, em: Selectiones de Libros 3 (1966) 12ss; A vida depois da morte, documentação em: Concilium 26 (1967) ; José-Maria González-Ruiz, A caminho de uma desmitologização da «alma separada», em: Conciliam, janeiro 1969, 73-85; no mesmo a., 86-99 o estudo de Piet Schoonenberg, Creio na vida eterna; Schillebeeckx, E., Leven ondanks de dood ia heden en toekomst (Vida apesar da morte no presente e no futuro, em: Tijdschrift voor Theologie 10 (1970) 418-452.
2 Cf. Lochet, L., Comme annoncer le mystère de Ia mort aux hommes de notre temps, em: Christus 9 (1962) 183ss; Boros, L., Meditationen über Tod, Gericht, Läuterung, Auferstehung und Himmel, em: Lebendiges Zeugnis, Mainz 1963.

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se apresenta como um entre tantos da teologia. Nem como um capítulo importante da escatologia. Mas como um nó que enfeixa a problemática geral da antropologia no seu sentido mais vasto.

Nossas reflexões querem ser de ordem teológico-especulativa e partem do dado fundamental da fé: o homem é destinado à ressurreição para participar, com a totalidade de sua realidade complexa, na vida eterna de Deus. Essa proposição da fé, assim formulada, apresenta-se sem qualquer mediação antropológica prévia. Apesar disso afirmamo-la por causa da ressurreição de Cristo que é o primogênito dentre os mortos e o primeiro entre muitos irmãos. E aqui começa o questionamento: a ressurreição é puro dom gratuito de Deus, como que vindo de fora e surpreendendo nossa própria realidade? Ou ela realiza um estatuto antropológico do homem, gratuitamente criado nele por Deus, de tal forma que a ressurreição vem ao encontro de um profundo anseio do homem, sem cuja realização a vida, vista teologicamente, não atingiria seu sentido pleno para o qual foi criada? Em outras palavras, colocando o problema em termos de morte-imortalidade-ressurreição: a ressurreição pressupõe a imortalidade da alma (ou do homem) ou a imortalidade da alma pressupõe a ressurreição? Ressuscitamos porque somos imortais ou somos imortais porque ressuscitamos?

I. MORTE E RESSURREIÇÃO E SUA LEITURA
NAS ANTROPOLOGIAS BÍBLICA E GREGA

1. A solução conciliadora da teologia católica clássica

De antemão podemos avançar o seguinte dado que parece inquestionável: Não pertence ao querigma fundamental do Novo Testamento o tema da imortalidade da alma.(3) O Novo Testamento conhece e professa sua

3 Cf. Jeremias, J., Ades, em: ThWNT I,146-150; Tremel, Y., L'homme entre Ia mort et Ia résurrection d'après le Nouveau Testament, em: Lumière et Vie 24 (1955) 33-37; Ménoud, P. H., La signification de Ia mort, em: L'homme devant Ia mort, Neuchâtel 1952, 163ss; ld., Le sort des trépassés, Neuchâtel 1966; Grelot, P., La théologie de Ia mort dans I'Écriture Sainte, em : La Vie Spirituelle, Supp. 77 (1966) 143ss; Culmann, O., Immortalité de Fame ou résurrection des morts? em: Des sources de I'Evangile à Ia
formation de la théologie chrétienne, Neuchâtel 1969, 149-171; de Ia Cuesta, I. F., El estado de muerte: inmortalidad o resurrección? em: Liturgia (Burgos) 429-444; Bordoni, M., La morte nella prospettiva biblica, em: Dimensioni antropologische della morte, op. cit., 123-169 com rica bibliografia.


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fé na ressurreição, dos mortos. A filosofia grega, nomeadamente o platonismo, sob cuja influência esteve a jovem Igreja missionária no mundo helênico, conhece a imortalidade da alma. Mas não conhece nem pode imaginar uma ressurreição. A reflexão na teologia cristã conciliando os aut-aut com um et-et formulou a seguinte proposição: a alma é imortal. Depois da morte do justo, separada do corpo, ela é julgada por Deus e goza de sua presença até o fim do mundo quando será novamente reunida ao corpo agora ressuscitado para com ele gozar eternamente da comunhão com Deus. A doutrina da imortalidade da alma dos gregos foi completada com a outra bíblica da ressurreição dos mortos. Com isso se afirma:

a) a morte não é total: atinge apenas o corpo do homem;

b) a ressurreição também não é total: atinge tão somente o corpo;

c) o homem é fundamentalmente um composto de duas substâncias em si incompletas: corpo e alma. Tomás de Aquino dirá: serão dois princípios que unidos formam o homem uno. A alma é a forma do corpo e mantém uma relação essencial com a matéria. Separada retém da mesma forma essa relação transcendental de tal modo que sempre tende a reunir-se ao corpo. Separada do corpo vive um estado contrário à sua natureza e por isso violento.(4) Essa tendência não fundamenta ainda a ressurreição do corpo, como alguns querem, mas apenas sua revivificação.

4 Cf. Pala, G., La risurrezione dei corpi nella teologia moderna, Roma 1963, 47-66 esp. 56.

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Semelhante combinação efetuada dos padres até os escolásticos abandonou, na verdade, tanto o pensar platônico quanto o bíblico. A filosofia platônica não conhece a valorização do corpo nem aceita que a alma, finalmente livre, possa voltar ao corpo-cárcere (soma-sema em grego: Platão, Górgias 47,493 A). Por outro lado, o semita não conhece uma alma sem corpo, nem possui palavra correspondente para isso. Se ela sobreviver à morte sê-lo-á sempre em forma corporal. Por outro lado Platão concebe a morte como ascensão para a liberdade e total espontaneidade da alma. Para a Bíblia a morte significa uma descensio ad inferos (xeol) onde reina sombra e vida imperfeita.

Essa concepção dualista (mitigada porém em Tomás de Aquino) pervadiu toda a antropologia católica(5) com não poucas conseqüências querigmáticas. A práxis eclesial pregou muito mais a imortalidade da alma que a ressurreição dos mortos. Anunciou com mais freqüência um axioma filosófico que uma verdade revelada, que para a Igreja primitiva era indiscutivelmente o centro de todo o anúncio cristão. Esse platonismo depurado entrou nas formulações dogmáticas como a de Bento XII (Benedictus Deus de 29 de janeiro de 1336) e a bula Apostolici regiminis de 19 de dezembro de 1513 do quinto Concilio do Latrão. Bento XII diz que as almas de todos os santos e de todos os que morreram com o batismo e não têm nada a pagar no purgatório «vão imediatamente após sua morte» para o céu para estar com Cristo e mesmo antes da «reassunção de seus corpos vêem a essência divina, com visão intuitiva, inclusive facial, sem a mediação de qualquer outra criatura» (DS 1000). Leão X no Concílio de Latrão canoniza a doutrina platônica da imortalidade da alma contra Pietro Pomponazzi, neo-aristotélico averroísta, com a seguinte afirmação: «Condenamos e reprovamos todos os

5 Cf. o estado da questão da pesquisa histórica e atual em: Francis Fiorenza e J. B. Metz, Der Mensch aIs Einheit von Leib und Seele, em: Mysterium Salutis II, 1967, 584-632, esp. 602ss.

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que afirmam que a alma intelectiva seja mortal ou a mesma em todos os homens» DS 1440; cf. 2766, 3771). Não é aqui o lugar de fazermos a hermenêutica de tais afirmações, situá-las dentro das coordenadas da opção antropológica grega e ressaltar o fato de que só dentro do sistema podem ser entendidas corretamente e ganham sua validade teológica. Se o Concílio de Latrão se movesse dentro do horizonte da antropologia semita poderia fazer a afirmação que fez? Certamente em vez de falar em imortalidade da alma, canonizaria a imortalidade da pessoa humana total e não de uma parte dela. Essa interpretação parece, segundo as mais recentes pesquisas(6), revestir de fato a intenção conciliar. M. Schmaus, no seu recente manual de dogmática, diz: «Não há nenhuma declaração do Magistério que defina obrigatoriamente a morte como separação do corpo e da alma. As declarações oficiais querem garantir a continuidade da vida do homem para além da morte mas não afirmam expressa e formalmente que esta vida deva ser entendida exclusivamente como imortalidade da alma espiritual. Quando os textos do Magistério (especialmente a declaração de Bento XII: DS 1000) afirmam a imortalidade da alma espiritual utilizam uma formulação emprestada do modelo grego de pensar, através do qual era explicada a sobrevivência do homem para além da morte».(6a) Em todos os casos, nota-se aqui a emergência de duas antropologias diferentes.

2. A morte no pensar platônico e no pensar semita

Porque são duas antropologias diferentes, distintas apresentam-se também as concepções da morte. Basta que tracemos um paralelo, já usado outrora pelos filósofos pagãos contra os cristãos, para darmo-nos conta dessa verdade: a morte de Sócrates com a de Cristo.

6 ld, 617: «A imortalidade é atribuída à alma, porque o homem individual em sua concreção histórica é imortal».
6a Schmaus, M., Der Glaube der Kirche II, Munique 1970, 744.


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Platão com maestria inimitável traça no Fédon a figura soberana de Sócrates frente à morte. A morte é «a separação do corpo e da alma». (7) Esta anseia libertar-se do cárcere para estar em si mesma e poder contemplar as idéias eternas. Disso se segue que «o filósofo autêntico é o que se exercita no morrer e para quem nada é menos terrível do que a morte». (8) «Os que filosofam estão em contínua agonia de morrer» (9), «purificando o contacto da alma com o corpo na esperança de que Deus mesmo venha romper as ataduras que os unem». (10) E narra então como Sócrates «tomou o cálice (de sicuta) em seus lábios, e o bebeu com uma tranqüilidade e uma doçura maravilhosas». (11) «Este é o fim de nosso amigo, do homem, podemos dizer o melhor dos homens que tivemos conhecido nesse tempo, o mais sábio, o mais justo de todos os homens».(12)

Em contraposição a Sócrates, temos a morte de Jesus.(13) Ele prevê um fim trágico: «sua alma está triste até à morte» (Lc 26,38). Lucas caracteriza ainda mais: «e cheio de angústia orava com mais instância. E seu suor tornou-se como grossas gotas de sangue, que corriam até à terra» (Lc 22,44). Ele estremece, sente-se só e abandonado pelos seus (Mt 26,40): «Pai, se puderes afasta de mim este cálice» (Mc 14,36). A morte é inimiga do homem a quem tudo está submetido. O autor da epístola aos Hebreus, com tons existencialistas, nota que Jesus «elevou orações e súplicas com grande clamor e lágrimas Àquele que o podia salvar da morte» (5,7). À diferença de Sócrates, não morre sereno, mas quase às raias do desespero: «dando um grande grito, expirou» (Mc 15,37). Para o semita a morte não é libertação, «formoso risco» (14), como diz elegantemente Platão, mas a grande potên-

7 Cf. Platonis Opera, ediç. de I. Burnet, Oxford 1961, 67 d.
8 Id., 67 e.
9 Id., 64 b.
10 ld., 67 a.
11 Id., 117 e.
12 Id., 118; cf. também de Ia Cuesta, El estado de muerte, op. cit., 431.
13 Cf. com a bibliografia aí citada: Boff, L., O sentido da morte de Cristo, em: Jesus Cristo Libertador, op. cit., 113-133.
14 Fédon, op. cit., 114 d.


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cia do mal, que entrou por causa do pecado (Rom 5,12), «o último inimigo a ser reduzido ao nada por Deus» (lCor 15,26).

Essa contraposição releva a diferença profunda entre as duas antropologias e correspondentes concepções da morte. Para o grego platônico o homem não morre totalmente, sua alma é imortal. Para o semita o homem todo inteiro morre ou assume uma forma imperfeita de vida no xeol; porém, para a fé neotestarnentária, ele ressuscita todo inteiro. Isso deveremos ver mais minuciosamente.

3. A experiência da ressurreição de Cristo como novo horizonte para a antropologia
O Novo Testamento jamais prega em seu anúncio central a imortalidade da alma, mas a ressurreição dos mortos como o grande futuro do homem para o após-morte. Essa mensagem não é fruto de uma especulação de ordem antropológica, mas de uma experiência vivida que os levou a exclamar radiantes: «O Senhor ressuscitou verdadeiramente e apareceu a Simão» (Lc 24,34). (15) Esse fato porém trouxe-lhes um enriquecimento antropológico novo: a morte foi vencida e seu poder até agora inquebrantável se revelou ser um espantalho: «ó morte, onde está a tua vitória? A morte foi tragada na vitória» (lCor 15,55). Convém notar muito bem, e nisso nos distanciamos de Willi Marxsen e Heinz Robert SchIette: não foi por causa das categorias antropológicas semitas que os fenômenos das aparições e do sepulcro vazio puderam ser interpretados como ressurreição. A ressurreição foi um impacto que surpreendeu os apóstolos e os dominou. De repente «o que ouvimos, o que com nossos olhos vimos, o que contemplamos e o que nossas mãos palparam tocando», o crucificado, morto e

15 Para a problemática atual e a exegese crítica sobre os textos de ressurreição veja o capítulo precedente e todo o número da Revista Concilium 60 (1970).

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sepultado estava diante deles. Não simplesmente revivificado, como alguém que assumira seu cadáver, mas totalmente transfigurado, glorioso e repleto de Deus. Essa experiência originária, que de início foi interpretada dentro das categorias do pensar apocalíptico como elevação do justo sofredor junto de Deus, foi posteriormente inserida dentro das categorias antropológicas tradicionais do judaísmo.(16) A antropologia semita serviu de material de representação para comunicar aos fiéis a novidade da ressurreição do Senhor. Com isso não se quer dizer que o modelo antropológico semita tenha sido canonizado ou que seja melhor e mais adequado do que qualquer outro antigo ou moderno. Apenas serviu de material representativo com o qual a experiência de ressurreição pôde ser expressa, e assim ter chegado até nós. A novidade antropológica conquistada a partir da ressurreição de Cristo é a seguinte: se Cristo ressuscitou, então nós também haveremos de ressuscitar; Ele é o primeiro e «todos somos vivificados nele» (lCor 15,20.22; Rom 8,29; Col 1,18). Sua ressurreição não emerge como um fato isolado, mas se dimensiona universalmente a toda a humanidade, porque Ele é o novo Adão (Rom 5,14).

a) Categorias antropológicas semitas e Ressurreição

Como o Novo Testamento concretiza essa novidade? Que categorias antropológicas servem de meio de comunicação? Há unanimidade entre os exegetas em afirmar que a ressurreição foi expressa não nas categorias gregas de corpo e alma mas nas semíticas de carne-corpo-espírito.(17) Precisamos deixar isso bem claro. Porque nem sempre quando um semita usa a

16 Elo Cf. Seidensticker, Ph., Die Auferstehung Jesu in der Botschaft der Evangelisten, Stuttgart 1968, 31-58.
17 Cf. Carrez, M., L'hermenéutique paulinienne de Ia résurrection, em: La résurrection du Christ et l'exégèse rnoderne, Paris 1969, 55-74; Grass, H., Ostergeschehen und Osterberichte, Goettingen 1962, 146-173; GrabnerHaider, A., Auferstehungsleiblichkeit, em: Stimmen der Zeit 181 (1968) 217-222.


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palavra corpo ou espírito deve-se entender a mesma coisa, como corpo e espírito, dentro do modelo grego de antropologia. A mesma palavra corpo para um e para outro significa bem outra realidade. Para nós, ocidentais e herdeiros da cultura grega, impõe-se especial atenção, porque em nosso sistema lingüístico as palavras corpo e espírito possuem um significado bem determinado, diverso daquele dos semitas ou do capítulo 15 da primeira epístola de S. Paulo aos Coríntios. Nesta epístola Paulo coloca-se diretamente a pergunta: «Como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam à vida?» E responde: «ressuscita-se um corpo espiritual» (lCor 15,35.44). Que significa essa expressão? Corpo não exclui o espírito? Para o nosso pensar, e também para o grego, espírito se contrapõe ao corpo, porque corpo é material e espírito é imaterial. Por que Paulo une duas coisas contraditórias? Porque para ele, bem como para todo pensar semita, espírito não se contrapõe a corpo. (18) Como veremos pormenorizadamente logo abaixo corpo significa o homem todo inteiro (interior e exterior: 2Cor 4,16; Rom 7,22; corpo e alma) enquanto é comunhão; corpo é o termo mais próximo ao nosso conceito de personalidade. Nesse sentido o homem não tem corpo mas é corpo. O homem-corpo pode transformar-se em carne pelo pecado. Carne significa a situação humana rebelde contra Deus (Rom 2,28-29). «A carne é fraca» (Mc 14,38), e «suas tendências são a morte» (Rom 8,6) que entrou por causa do pecado (Rom 8, 12). Paulo chega a falar em corpo da carne (Col 2, 11), isto é, a personalidade humana (corpo) organizada contra Deus (carne; cf. ainda corpo de pecado [Rom 6,6], ou carne do pecado [Rom 8,3], ou ainda em corpo de morte [Rom 7,24]; corpo de humilhação e de desonra [Flp 3,21; lCor 15,43]). A carne não pode herdar o reino de Deus (lCor 15,50) enquanto que o corpo é para o Senhor (lCor 6,13). Por isso
18 Sobre essa problemática veja: Gelin, A., L'homme selon Ia Bible, Paris 19 68, 9-16; Kümmel, W. C., Das Bild des Menschen im Neuen Testament. Zurique 1948, 20.40; Herrade Mehl Koehnlein, L'homme selon l'apôtre Paul, Neuchâtel 1951, 31-37.

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Paulo nunca fala em ressurreição da carne, mas do corpo que deve ser mudado (lCor 15,51) e transformado (Rom 6,6; 8;23; Flp 3,21) em corpo espiritual. Espírito, por seu turno, indica o princípio pelo qual o homem se ordena a Deus. Deus mesmo é espírito (ruah), poder e força de vida e de ressurreição: «o espírito é que dá a vida e a carne para nada serve» (Jo 6,63). Espírito se opõe, não ao corpo, mas à carne: «as tendências da carne são a morte, mas as do espírito são vida e paz» (Rom 8,6). Se Paulo diz que o homem pela ressurreição transformou-se em corpo espiritual, isto significa: a personalidade humana, a partir de agora, é totalmente comunhão, abertura, comunicação com Deus, com os outros e com o mundo. O «corpo de carne» sofredor, sujeito às tentações e ao pecado, é totalmente libertado e feito corpo-espiritual. A ressurreição operou esta transformação. Portanto a verdadeira libertação não reside no abandono do corpo, mas na sua assunção e total orientação para Deus, de tal forma que o homem se torne repleto da realidade divina através da ressurreição. Numa palavra: com a expressão corpo espiritual, Paulo quer dizer o seguinte: pela ressurreição o homem todo inteiro foi radicalmente repleto da realidade divina e libertado de suas alienações como fraqueza, dor, impossibilidade de amor e de comunicação, pecado e morte. O homem não abandonou nada de seu estatuto antropológico, apenas foi totalmente libertado e penetrado da realidade divina. Isso se chama ressurreição, que deve ser fundamentalmente distinguida de revivificação. (19) O homem ressuscita não para a vida biológica, mas para a vida eterna, não mais ameaçada pela morte. A ressurreição se define então como a escatologização da realidade humana. A introdução do homem como totalidade corpo-alma no reino de Deus.

Essa certeza desdramatiza a morte, pois ela não é a última palavra que Deus pronunciou sobre o destino humano. Aqui encontramos também o ponto de
19 Cf. Hengstenberg, H. - E,, Der Leib und die letzten Dinge, Regensburg 1955, 151ss; 249ss.

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convergência entre a concepção platônica e cristã de morte: ambos através de caminhos diversos conseguem a mesma serenidade e confiança frente ao mesmo mistério. Sócrates suspira pela morte como condição para a imortalidade da alma. O cristão, a partir de uma ótica diferente, encara com serena alegria a morte, pois desde que Cristo ressuscitou não há mais a segunda morte; a primeira morte se transformou em passagem para a glorificação do Pai (Jo 13,1).

b) Quando se dará a Ressurreição?

A vida cristã é um estar-com-Cristo, expressão que ocorre 196 vezes no Novo Testamento para exprimir a mais íntima união do fiel com Cristo ressuscitado e pneumático. Isso implica que «aqueles que se revestiram de Cristo são nova criatura» (2Cor 5,17; Gál 3,27). As forças do século futuro já estão agindo dentro do coração do mundo (cf. Hbr 6,5). O batismo, segundo a teologia paulina, nos faz participar da morte e ressurreição de Cristo (Rom 6,1-11; Col 2,12). Mais ainda: Deus não só nos «co-ressuscitou, senão que nos sentou nos céus em Cristo Jesus» (Ef 2,6). Porém essa vida nova com Cristo em Deus permanece escondida e só será visível na parusia (Col 3,1-4), que para Paulo era iminente. No início de sua pregação fala de fato da ressurreição dos mortos em termos de futuro próximo (lTes 4,1517). Ele mesmo espera poder presenciar ao arrebatamento dos vivos nas nuvens, ao encontro do Senhor (v. 17). Depois, devido aos perigos de morte porque passou (lCor 15, 32; 2Cor 1,8-10; 4,712), começa a contar com um possível desenlace. Então coloca-se a questão da existência do homem no intervalo entre a morte e a pa-

2. Cf. Deissmann, A., Die neutestainentliche Formel 'in Christo Jesu',Marburg 1892; Dupont, J., Syn Christó, l'union avec le Christ suivant int Paul, Brugges 1952; Hoffmann, P., Die Toten in Christus. Eine religionsgeschichtliche und exegetische Untersuchung zur paulinischen Eschatologie, Muenster 1966, 301-320; Bordoni, M., Dimensioni antropologische della morte, pp. cit., 210-234.

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rusia. (21) Paulo argumenta da seguinte forma: nossa habitação terrestre é o corpo mortal. Se esta habitação desmoronar (morrer), não nos preocupemos porque temos nos céus uma habitação eterna, isto é, um corpo celeste. Na parusia os mortos que estão no Senhor (cf. Flp 1,23) serão revestidos deste corpo celeste e os que ainda não morreram serão sobrevestidos de tal forma que a nossa mortalidade seja absorvida pela vida (cf. 2Cor 5,1-5). Ele prefere estar entre os vivos e ser sobrevestido a estar entre os mortos já vestidos. Apesar disso «quiséramos exilar-nos do corpo, e tomar morada junto do Senhor» (2Cor 5,8). Como é a vida junto do Senhor, exilado do corpo, não fica muito claro no pensamento de Paulo. Certo é que se apresenta mais desejável que a vida no corpo longe dele (2Cor 5,6-8; Flp 1,23).(23) Paulo parece não ver ele mesmo nitidamente como deva ser a vida dos mortos em relação ao Senhor ressuscitado. Em todos os casos, confessa : «conformemente aguardo e espero, em nada serei confundido; antes, estou inteiramente seguro, como sempre, também agora, de que Cristo será glorificado em meu corpo, ou pela vida ou pela morte. Pois para mim a vida é Cristo, e a morte lucro» (Flp 1,20-22). Ele afirma por um lado que a ressurreição, conforme a doutrina comum dos judeus, se realizará no fim do mundo com a parusia do Senhor, por outro acentua que o essencial já se realizou nessa vida terrestre pela fé, esperança e batismo; este já nos fez morrer, ressuscitar e estar com Cristo nos céus (Rom 6,1-11; Col 2,12; Ef 2,6). Já agora somos possuidores daquele Espírito que ressuscitou a Jesus dos mortos. «Ele dará também a vida aos nossos corpos mortais» (lCor 6,14).

A mesma dialética entre o presente e o futuro surge no evangelho de S. João. Por um lado afirma-se

21 Benoit, P., Ressurreição no fim dos ou logo , depois da morte? em: Concilium 60 (1970) 1289-1298; Carrez, M., Com que corpo ressuscitarão os mortos? em: Concilium op. cit., 1280-1288.
22 Cf. Feuillet, A., La demeure céleste et la destinem des chrétiens. Exégèse de 2Cor 5,1-10 et contribuition à Fétude des fondements de l'eschatologie pauIinienne, em: RSR 44 (1956) 161-192; 360-402.


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a ressurreição para o último dia, como os judeus criam (Jo 11,24; 6,39-40.44.54), por outro precisa-se que quem crer em Jesus já possui a vida (5,24; 6, 40.47), passou da morte para a vida e já não morre mais (11,26; 5,24-25). A escatologia já agora emerge como uma realidade presente, porém ainda não perfeita e acabada: «agora nós somos filhos de Deus, embora ainda não se haja manifestado o que havemos de ser. Sabemos que, quando Ele aparecer, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal qual Ele é» (1Jo 3,2). Como transparece, tanto em Paulo como em João, verifica-se o deslocamento dos acentos, do futuro para o presente, sem contudo absorver totalmente o futuro no presente. A união com o Ressuscitado aqui na terra é tão íntima que significa uma verdadeira libertação da morte. A sobrevivência da alma, tal como a reflexão da teologia posterior tentou eruir destes textos de ressurreição parece não ser afirmada por eles. Falam simplesmente em ressurreição que afeta o homem todo. A ressurreição é obra do Espírito que já agora possuímos. Ele manterá a continuidade entre a vida e a morte: «quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor» (Rom 14,8). Benoit (23) aventa a idéia de que a morada celeste que nós já agora possuímos no céu não seja individual. Antes, tratar-se-ia do corpo do Senhor ressuscitado. Na terra já estamos inseridos nesse corpo. A morte nos faria participar mais profundamente lamente desse corpo. A total transfiguração do homem individual, porém, vii-ia no final do mundo juntamente com toda a criação (Rom 8,23).

O conceito de ressurreição, como sublinha fortemente Marcello Bordoni, num brilhante trabalho sobre as dimensões antropológicas da morte, não possui tanto, para o Novo Testamento, um caráter cósmico-apocalíptico de repristinação corpórea do homem, devido a uma exigência antropológica. Antes possui um caráter religioso concernente às relações do homem com

23 Benoit, P., Ressurreição no fim dos tempos...? op. cit., 1298

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Deus por Cristo, agora totalmente realizadas como amizade, amor e radical reconciliação. A ressurreição corpórea a se realizar no fim dos tempos seria a plenitude daquilo que na terra já começou e se prolongou para além da morte como um estar-com-Cristo. (24) Contudo, urge observar que lCor 15,35-55 não permite semelhante espiritualização do conceito de ressurreição. Os textos abordam ex professo e data opera o problema da realidade terrestre do homem em relação à ressurreição. A solução que Paulo aí formula, embora ele mesmo quiçá não tenha visto todas suas conseqüências se articula na seguinte proposição: «é preciso que este corpo corruptível (a pessoa) se revista de incorrupção, e que este ser mortal (pessoa) se revista de imortalidade» (lCor 15,53). Assim a ressurreição é apresentada como a transfiguração total do homem, de situação terrestre em situação celeste. Deus não substitui o velho pelo novo. Mas faz do velho novo. A ressurreição criou um horizonte antropológico novo para o cristão: não se fala jamais em imortalidade da alma, mas em ressurreição na forma de estar-com-Cristo. Porque estamos em Cristo, já agora a morte é uma das formas de estarmos com Ele (2Cor 5,8; Flp 1,23) ; é uma passagem (Jo 5,24) semelhante à morte de Cristo, passagem deste mundo para o Pai (Jo 13,1) como glorificação (Jo 17,1-2), concernindo o homem todo e não parte dele.

24 Le dimensioni antropologische della morte, op. cit., 233-234.

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