terça-feira, 8 de dezembro de 2009

A Ressurreição de Cristo, A Nossa Ressurreição na Morte (parte III)

por Leonardo Boff

A Ressurreição de Cristo
A Nossa Ressurreição na Morte
(parte III)

II. RELEITURA DA RESSURREIÇÃO DENTRO
DA ANTROPOLOGIA DE HOJE

A fé na ressurreição de Cristo e sua relevância para nós foi pelo Novo Testamento expressa com as possibilidades que a antropologia semita oferecia. Devemos reconhecer com J. Ratzinger que esta mediação se apresenta extremamente arrojada e generosa (25), traduzindo de forma muito adequada a experiência que

24 Le dimensioni antropologische della morte, op. cit., 233-234.
25 Ratzinger, J., Einführung in das Christentum. Munique 1969, 297.


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os Apóstolos tiveram de Jesus como ressuscitado. Como vamos nós, que não somos mais semitas, nem em antropologia nos filiamos às coordenadas de interpretação deles, expressar essa mesma convicção? A ressurreição é para nós certeza alegre e esperança alviçareira a abrir-nos um futuro desanuviado e absoluto porque cremos: o futuro de Cristo é o futuro da humanidade. Ao vivermos nossa fé na ressurreição de Cristo e dos demais homens, que instrumentos antropológicos utilizamos para a nossa própria compreensão e para fazer-nos entender por aqueles que nos pedem as razões de nossa esperança (lPdr 3,15) ? Há algum entrosamento entre ressurreição e a antropologia, como hoje a concebemos?(26) Paulo encontrou na expressão acima analisada corpo espiritual, típica de seu horizonte de compreensão antropológica, semelhante inserção. Nós hoje aonde nos situaremos?

1. Observação metodológica: a tipicidade do pensar teológico

Antes de abordarmos essa questão, impõe-se uma reflexão sobre a metodologia teológica. Teologia é uma reflexão crítica, sobre a experiência cristã de Deus, do homem e do mundo. Portanto, teologia é retrabalhar questionando e refletindo a fé cristã. O positivismo dogmático, que se preocupa simplesmente em re-

26 A literatura antropológica moderna é multidão. Referiremos aqui obras que já fazem trabalho sistemático, lato é, intetizam as grandes linhas da reflexão. Para o nosso problema alio significativas: Hengstenberg, H.-E., Der Lei und die letzten Dinge, Regensburg 1955; WenzI, A., Unsterblichkeit ihre metaphysische und anthropologischc Bedeutung, Berna 1951; van Peursen, C. A., Leib, Seele, Geist, Gerd Mohn 1959; Vários, Geist und Leib in der menschlichen Existenz. Freiburg-Munique 1961, trabalhos e discussões entre cientistas e teólogos; 14itiimgruber, K., Atom und Seele. Ein Beitrag zur Erörterung des Leib-Secle-Problems, Freiburg 1958; Gödan, II., Die Unzuständlichkeit der Seele. Stuttgart 1961; L'âme et le corps. Recherches et Debats 35, Paria 1961; Maler, W., Das Problem der Leiblichkeit bei Jean-Paul Sartre und Maurice Merlau-Ponty, Tübingen 1964; Metz, J. B J. , Caro cardo salutis. Zum christlichen Verständnis des Leibes, em: Hochland 55 (1962) 97.107; Mouroux, J.. Sens chrétien de l'homme, Paris 1945; Vários, A redescoberta do homem. Do mito à antropologia crítica, Petrópolis 1970; Harada, H., Fenomenologia do corpo. Situação como existência corporal, em: Vozes 65 (1971) 21-28; Boff, L., Teologia do corpo. o homem-corpo é imortal, em: Vozes 65 (1971) 61-68.
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construir e sistematizar as declarações oficiais do passado e também do presente com os conceitos nelas implicados e o biblicismo que procede com o mesmo método sem o cuidado de repensar seus dados frente à e dentro da experiência da fé como é sentida hoje constituem os dois grandes perigos da teologia.(27) O perigo não é menor àquele tipo de teologia que, sem ficar ela mesma como teologia, no diálogo com outras ciências humanas, perde sua identidade e se torna serva de outras ciências. Desta forma a teologia não repensa mais sua própria experiência, mas a de outro horizonte e assim se perde como teologia ou se afirma como ideologia. Com propriedade, ponderava Heidegger: «Somente tempos que não mais crêem na verdadeira grandeza da missão da teologia chegam a ter a perversa idéia de que se possa ganhar e até substituir a teologia através de uma pretensa renovação dela com o auxílio da filosofia (nós diríamos das ciências humanas) e assim articulá-la ao gosto das necessidades do tempo». (28) Hoje o dialogante principal da teologia não é mais a filosofia no sentido clássico, mas as ciências humanas. E como estas conheceram nos últimos anos um vertiginoso progresso, o perigo para a teologia de perder sua identidade se torna proporcionalmente maior. A interdisciplinaridade na abordagem dos problemas também teológicos não significa nem exige a perda da identidade de cada ciência. O teólogo verá com olhos de teólogo e a partir da experiência da fé a relevância teológica dos dados sociológicos, antropológicos, psicológicos, etc. Ele não será (não exclui que também o seja) um antropólogo, mas lerá com seus olhos de teólogo a contribuição que a antropologia traz na decifração do mistério humano, donde partem e para onde devem convergir todas as ciências, se não quiserem transformar-se em ideologias. Para o nosso tema isso significa: como a luz da fé na ressurreição e o horizonte antropológico

27 Cf. Rahner, K., Philosophie und Philosophieren in der Theologie, em Schriften zur Theologie VIII,
EinsiedeIn 1967, 66-87, esp. 69.
28 Einführung in die Metaphysik, Tübingen 1953, 6.


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novo, aberto por essa experiência, podem iluminar os dados antropológicos conhecidos e recebidos de outras ciências? De que forma a ressurreição se articula com o princípio-esperança experimentado no homem? Pode a antropologia ver na ressurreição uma relevância para si mesma, no sentido de que a fé articula e explicita aquilo que implícita e latentemente está implicado e já visualizado atematicamente na própria antropologia? Uma teologia que reflete seus próprios conteúdos (e se dá conta em que horizonte hermenêutico são projetados) e a partir daí procura situar-se frente à vasta experiência humana, hoje em dia analisada por tantas ciências, não pode eximir-se de responder ou de preocupar-se com semelhante questionamento. Trata-se de reler a fé na ressurreição dentro de uma outra experiência do mundo e do homem que o teólogo, filho de seu tempo, também faz.

2. A personalidade como unidade de dimensões plurais

A descoberta marcante que causou a grande virada antropológica do pensar moderno se verificou com a tematização e a reflexão sistemática sobre a subjetividade humana. O homem se entende por excelência como personalidade. Ele não é um ser entre outros seres no mundo. Ele é o único que na ordem do mundo existe. Os objetos não existem embora sejam. Existência quer dizer a capacidade que o ser tem de sair de si e regressar para si (reflexão) e de objetivar e distanciar-se do mundo. Mais: o homem não se define tanto por aquilo que recebeu, mas por aquilo que se tornou e de forma responsável quis. Daí que personalidade não é sinônimo pura e simplesmente de pessoa, que é o ontologicamente dado e recebido. Mas é formalmente o exercício livre do ser-pessoa.(29) Personalização é um processo que se efetua na história sob a base dos dados da pessoa e da natureza: o

29 Cf. para uma orientação Libânio, J. B., Modernos conceitos de pessoa e Personalidade de Jesus, em: REB 31 (1971) 47-64; Boff, L., O destino do Homem e do Mundo, CRB, Rio de Janeiro 1972, 43-47.

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existir-no-mundo, em-comunhão-com-outros, com a carga hereditária, cultural e psicológica que herdou e independe dele, etc.

Geneticamente o homem procede da evolução animal, mas deixou atrás de si o animal e o ambiente circunstante típico do animal. Está em busca de seu lugar na natureza e ainda não o encontrou. Resume em si todas as camadas do ser e por ele passa o eixo da evolução ascendente. Mas possui um princípio ou dimensão que continuamente contesta o Bios. (30) Como espírito não está amarrado aos condicionamentos biológicos, mas liberta-se pela liberdade e espontaneidade e quando impossibilitado sublima-os. É um ser-carência: não possui, biologicamente, nenhum órgão especializado. Contudo faz desta desvantagem biológica sua arma principal: cria instrumentos para modificar o mundo circunstante e assim elabora culturas e o mundo de segunda mão. (31) Carrega em si um mundo inconsciente pessoal e coletivo, onde se acumulam todas as experiências bem sucedidas e frustradas da raça e do processo evolutivo anterior. Leva dentro de si também as experiências que fez no encontro com o Numinoso e o Divino, aquele mistério tremendum et fascinosum experimentado com a fascinação do fenômeno Deus. (32) Sua vida consciente revela no compreender, no querer, no sentir e na experiência fundamental do amor e da esperança uma transcendência a todos os atos concretos, experiência essa que se verifica em cada ato. Seu horizonte natural é o

30 Cf. Scheler, M., Die StelIung des Menscheti im Kosmos, Berna 6 1862, 36ss.
31 Essa perspectiva foi desenvolvida por toda urna corrente de antropologia especialmente por Gehlen, A., Der Mensch. Seine Natur und seine StelIung in der Welt, Frankfurt-Bonn 81966; Id., Anthropologische Forschung, Hamburg 1961; Portmann, A., Zoologie und das neue Bild des Menschen, Hamburg 1956; Buytendijk, F. J. J., Mensch und Tier, Hamburg 1958; Plessner, H., Die Stufen des Organischen und der Mensch, 1928. Veja também a elaboração teológica de W. Pannenberg, que sem abandonar o horizonte próprio da teologia e sem fazê-la serva de outras ciências conseguiu um aprofundamento antropológico-teológico digno de nota: Was ist der Mensch? Die Anthropologie der Gegenwart ira Lichte der Theologie, Göttingen 1968, esp. 5-13; de forma semelhante para a filosofia, sem tornáIa com isso urna sucursal de outras ciências humanas; Rothacker, E., Philosophische Anthropologie, Bonn 1966; Rombach H., Die Frage nach dem Menschen. Aufriss einer philosophischen Anthropologie, Freiburg 1966, de Ia Pefia, J. R., El hombre y su muerte, op. cit. (nota 1) 69-116.
31 Cf. Strauss, C. - L., La pensée sauvage, Paris 1962; Neumann, E., Ursprungsgeschichte des Buwusstseins, Munique 1964.


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ser total e o correspondente à sua radical abertura não é o mundo mas Deus. (33) Historicamente através do mito, do logos e do saber científico mostrou a capacidade de sempre elaborar novas sínteses, conservando a mesma identidade humana.(34) Sociologicamente é um ser criador de culturas e sistemas de convivência. Mas não se identifica jamais com eles totalmente nem se esgota em semelhantes concretizações. Há nele uma possibilidade permanente de dinamismo contestatório do realizado e alcançado em vista de um futuro melhor. (35)

Em tudo o homem revela um caráter excêntrico e assintótico. É contudo na reIação com o mistério absoluto que descobre seu próprio mistério e as verdadeiras dimensões de sua dignidade. Deus se insere não como um alheio dentro do sua experiência. Mas é sua máxima profundidade. Todas as ciências verificam o fenômeno: o homem é um ser aberto à totalidade da realidade. Ele é abertura. Para quem e para que está aberto? Para o mundo? Mas ele se mostra maior que o mundo; modifica-o constantemente em paisagem humana e fraterna; ele não é a resposta adequada ao seu perguntar. Para a cultura? Mas ele cria sempre novas e as utopias constituem o fermento permanente da contestação criadora. A abertura do homem se orienta para um vis-à-vis, para uma meta que lhe seja correspondente. A linguagem cunhou a palavra Deus para significar a meta total e absoluta da busca insaciável do homem. Deus, nesse sentido, possui um significado antropológico imponderável. (36)

33 É a antropologia de Rahner e de seus discípulos elaborada sob a inspiração do método transcendental: Hörer des Wortes, München 1963; Metz, J. B., Christliche Anthropozentrik, München 1962; na filosofia italiana característico dessa orientação é M. F. Sciacca, Acta et Être, Aubier 1958; ld., L'uomo questo squilibrato. Bocca, Roma 1956; uma tentativa de sistematização do pensamento antropológico de Sciacca veja: Boff, L., A filosofia da integralidade de M. F. Sciacca, em: Vozes 1964 em quatro artigos sucessivos.
34 Cf. Jaspers, K., Psychologie der Weltanschauungen. Hermeneutik des Daseins ira Sinne einer existentiellen Anthropologie, 1919; Id., Vom Ursprung und Ziel der Geschichte, Hamburg 1955, 14ss.
35 Behrendt, R. F., Der Mensch im Licht der Soziologie, Berlin 1962; Bloch, E., Prinzip Hoffnung, 2 vol., Frankfurt 1959.
36 Cf. Pannenberg, W., Was ist der Mensch? em: Disputation zwischen Christen und Marxisten, München 1966, 179-194, esp. 182ss; Id., Die Frage nacht Gott, em: Grundfragen systematischer Theologie, Goettingen 1967, 361-386.


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Estar aberto para o mundo significa portanto estar aberto para Deus. A situação assintótica e excêntrica do homem como um-ser-a-caminho-de-Deus é decifrada, pelas religiões, como um-ser-que-procede-de-Deus e por isso dentro da história um homo viator em busca do Absoluto, porque vem dele.

Formalizando o que acabamos de expor, podemos dizer: o homem é um ser em tensão constante entre uma abertura realizada e uma abertura absoluta. Ele está dimensionalizado para a totalidade e contudo sempre preso nas estreitezas da situação concreta. O homem se experimenta feito e simultaneamente sempre ainda por fazer; ele é finito e infinito. Essa experiência profunda foi expressa pela filosofia platônica por corpo e alma. Corpo é o homem feito e dado; alma é seu princípio dinâmico com um tropismo insaciável para o infinito. A tragicidade desta concepção consistiu na entificação e objetivação de corpo e alma como duas coisas no homem. A experiência porém nos convence que o homem é a unidade de todas as suas dimensões: é o mesmo homem que guarda a sua identidade e unidade de eu em cada uma das dimensões referidas acima. Podemos reter a terminologia corpo-alma, porque entrou para nossa linguagem e para o inconsciente de toda nossa cultura. Contudo, urge perguntar: o que está atrás dessa expressão?

3. O homem unidade corpo-alma

Atrás da expressão corpo e alma está a experiência radical da unidade fundamental do homem. Isso porém não quer criar uma identificação pura e simples das várias dimensões humanas. Mas afirma-se que, por exemplo, o corpo não é um objeto ou algo no homem. É o homem todo inteiro, porque a corporalidade faz parte da própria subjetividade humana: «na realidade eu jamais encontro em mim um espírito puro e concreto. Mas sempre, em todo o lugar e em cada momento um espírito encarnado... Pertence à

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essência do espírito humano como espírito sua corporalidade e com isso sua relação para com o mundo».(37) O estar-no-mundo do homem não é um acidente, mas exprime sua realidade essencial. Daí que podemos dizer com Gabriel Marcel: corpo e alma não exprimem o que o homem tem mas aquilo que ele é.(38) Em sua totalidade o homem é corporal. Em sua totalidade é também espiritual. Os mais sublimes atos espirituais e místicos vêm por isso marcados pela corporalidade. Da mesma forma as mais primitivas ações corporais são penetradas pelo espírito. Porque no homem só existem um espírito corporalizado e um corpo espiritualizado, podemos dizer com razão: quanto mais o espírito é espírito mais se manifesta e penetra a matéria. Quanto mais o corpo é corpo tanto mais se exprime espiritualmente. A unidade corpo-alma no homem é uma das evidências de todas as ciências antropológicas hoje, até da biologia(39), mas especialmente da psicologia das profundezas. Quando o homem diz eu, exprime a unidade total de sua realidade corpo-alma e de todas as dimensões de sua existência. Corpo e alma não são portanto duas coisas no homem, mas, como a tradição tomista o viu com muita nitidez, dois princípios, apenas metafisicamente separáveis e distinguíveis do único ser humano. Alma é a subjetividade do ser humano concreto, o que inclui também a dimensão corpo. Corpo é o próprio espírito se realizando dentro da matéria. Não é apenas um instrumento do espírito. É o espírito mesmo em sua excarnação e expressão no espaço e no tempo materiais. Nesse sentido podemos dizer que a alma é visível. Quando olhamos um rosto humano, não vemos apenas olhos, boca, nariz e o jogo dos músculos. Surpreendemos simultaneamente traços finos ou rudes, brutalidade ou humor, felicidade ou angústia, sabedoria ou estulticie, resignação ou confiança. O que se

37 Rahner, K., num simpósio sobre Geist und Leib in der menschlichen Eristenz da Görres-
Gesellschaft, Freiburg, München 1961, 196-198.
38 Marcel, G., Étre et Avoir, Paris 1935, 225; Id., Le mystère de l'être, Paris 1951, 91-118.
39 Cf. Portmann, A., Biologie und Geist, Freiburg 1963, 112-113.


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vê, pois, não é pura e simplesmente corpo, mas corpo vivificado e penetrado pela alma. Espírito humano é sempre espírito encarnado; não se esconde por detrás do corpo: no gesto, no olhar, numa palavra e mesmo no silêncio pode estar toda a profundidade e o mistério da alma. Com isso, repetimos, não se afirma um nivelamento das plúrimas dimensões da realidade humana, mas sua unidade plural que não significa uniformidade nem unicidade. Essas dimensões do homem se estendem não só às relações com sua própria subjetividade ou às relações eu-tu; elas envolvem o mundo e as coisas (40), de sorte que só na totalidade dos relacionamentos o homem experimenta sua verdadeira espiritualidade e corporalidade.

4. Aproximação bíblica: o homem, unidade
de situações existenciais

Embora não se devam passar por alto as diferenças de concepções antropológicas de nosso tempo com as da Bíblia, podemos contudo notar, em sua intuição fundamental, notável semelhança e parentesco. Nossa visão antropológica, parece-nos, está mais próxima à da Bíblia que a da tradição grega, da qual a teologia ocidental se fez herdeira.

A Bíblia vê o homem numa grande unidade.(41) Ele é todo inteiro em cada uma de suas concretizações fundamentais. As Escrituras não possuem um termo para alma sem corpo, nem para corpo sem alma. Cada conceito que elas se fazem do homem compreende o homem todo inteiro. Existem as seguintes situações existenciais que são de modo particular refletidas no Antigo e Novo Testamento:

40 Este aspecto foi especialmente analisado por Merleau-Ponty, M., Phénoménologie de Ia perception, Paris 1945, 293ss; cf. Sartre, J. P., L'être et le néant, Paris 1943, 418-427; 365-427; van Peursen, C. A., Leib, Seele, Geist op. cit., 127-147.
41 Cf. a principal literatura recente sobre o tema: Dussel, E. D., El humanismo semita, B Aires 1969; Gelin, A., L'homme selon Ia Bible, Paris 1968; Pidoux, G., L'homme dans l'Ancien Testament, Neuchâtel-Paris 1953; Dubarle, A. A., La conception de l'homme dans VAT, em: Sacra Pagina I. Paris 1959, 522-536; Kürnmel, W., Das Bild des Menschen im AT. Zurique 1948.


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a) O homem-carne (em hebraico basar, em grego sarx): é o homem em sua existência terrestre empírica, gerada em contacto com duas carnes que se fazem uma (Gên 2,24). Homem-carne é o homem biológico dos órgãos e dos sentidos que está em contacto com a terra. É um ser-carência, sujeito aos sofrimentos e à morte, às tentações e ao pecado (cf. Rom 7). Fala-se em homem-carne quando o homem quiser se realizar só nessa dimensão terrestre, sem sair de si para os outros e para o Grande Outro. É o homem fechado sobre si mesmo em seu orgulho e autocontemplação. Uma existência carnal é para a Bíblia uma existência inautêntica. «Tudo isso é carne» (cf. Gál 5,18-21; lCor 1,26; 2Cor 10,5; Rom 8,6ss; 10,3).(42)

b) O homem-corpo (em hebraico basar, em grego soma): designa o homem todo inteiro enquanto é pessoa-em-comunhão-com-outros (cf. Rom 12,1; lCor 7,4; 9,27; 13,1; Flp 1,20). Em muitas passagens «corpo» pode ser traduzido simplesmente por «eu» (p. ex. a fórmula de consagração na missa: «Isto é o meu corpo (eu) que será entregue por vós»: lCor 13,3; 9,27; Flp 1,30; Rom 12,1). Pertence à pessoa o ser para outra pessoa; por isso homem-corpo designa o homem em seu relacionamento social e político. Porque significa a pessoa humana em sua totalidade não se pode pensar em sobrevivência do homem sem incluir o corpo. Não há igualmente ressurreição sem corpo. (43)

c) O homem alma (em hebraico nefesh, em grego psiqué): aqui não se pensa em alma enquanto se distingue do corpo. Mas no homem todo inteiro como ser vivente. Alma para a Escritura é sinônimo de vida. Por isso o texto de Mc 8,36 deve ser entendido

42 Cf. Carne no ThWNT VII, Stuttgart 1964, 98-151 (E. Schwelzer-R. Meyer) ; Scharbert, J., Fleisch, Geist und Seele im Pentateuch, Stuttgart 1966; Pidoux, G., L'homme, op. cit., 9-23; Dussel, E. D., El humanismo semita, op. cit., 28-30.
43 Cf. Robinson, J. A. T., The body. London 1965; Gelin, A., L'homme selon Ia Bible, op. cit., 9-16.


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assim: «Que aproveita ao homem ganhar o mundo se vier a perder sua vida (alma) ? Pois que dará o homem em troca de sua vida (alma) ?» O homem não tem vida. É vida. Por isso após a diluição da vida (alma) biológica, permanece ainda o homem-vida, embora sob outra forma. Homem-alma pode significar ainda a pessoa em sua vida consciente como eu. Por isso pode substituir o pronome pessoal (Gên 2,7; 12,5; 46,22; Êx 13,8-9). Daí que homem-alma e homem-corpo são equivalentes. Corpo e alma não se opõem mas exprimem o homem inteiro.(44)

d) O homem-espírito (em hebraico ruah, em grego pneuma): designa o homem-corpo-alma enquanto sua existência se abre para Deus, para valores absolutos e se entende a partir deles. Como espírito o homem extrapola os limites de sua existência como carne-corpo-alma para se comunicar com a esfera divina. Por isso é um sinal da transcendência e da destinação divina do homem. Para o Novo Testamento viver no espírito é viver uma existência humana nova no horizonte das possibilidades reveladas pela Ressurreição de Jesus, o Senhor. Pela Ressurreição o Senhor é o Espírito (2Cor 3,17; cf. At 2,32s), isto é, Jesus Ressuscitado vive uma existência humana (por isso também corporal) totalmente determinada e repleta de Deus e em total comunhão com a realidade. Daí que Paulo chama o ressuscitado de homem-corpo espiritual (lCor 15,44). Pela Ressurreição o homem-carne (indigente e inautêntico) é transfigurado em homem-corpo espiritual. Por ela o homem-corpo é totalmente atualizado em suas possibilidades de comunicação não só para com os outros mas com toda a realidade.

44 Cf. Lys, D., Nèphès. Histoire de l'âme dava Ia Révélation d'Israel ou sein des Religions procheorientales, Paris 1959; Schmid, J., Der Begriff Seele im NT, em: Einsicht und Glaube (publ. por J. Ratzinger e H. Fries) Friburgo 1962, 112-131; cf. também Kümmel, W., Das Bild des Menschen im NT, op. cit., 11-12.
45 Cf. Bieder, W., Pneuma, em: ThWNT VI (1959) 357-373, esp. 357-360; Mehl-Koehnlein, H., L'homme selon l'apôtre Paul, Neuchâtel-Paris 1951, 31-38; Grabner-Haider, A., AuferstehungsIeiblichkeit, em: Stimmen der Zeit 181 (1968) 217-222, esp. 221.


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e) Conclusão: O homem, pois, na antropologia biblica forma uma unidade: todo ele inteiro é carne, corpo, alma e espírito. Pode viver duas opções fundamentais: como homem-carne e como homem-espírito. Como homem-carne contenta-se consigo mesmo e fecha-se em seu próprio horizonte. Como homem-espírito abre-se para Deus, de quem recebe a existência e a imortalidade. Ele é desafiado a viver uma destas possibilidades existenciais. O Antigo Testamento é a história do ir-e-vir do homem oscilando entre uma e outra opção. Só aquele que sair de si como Abraão que abandona tudo, como Moisés que com seu povo deixa as panelas do Egito e se abrir para o desconhecido de uma aventura, encontra a terra prometida. «Se o grão de trigo não cai na terra ficará só; mas, se morrer, dará muito fruto» (Jo 12,24). «Quem quiser salvar sua vida perdê-la-á; e quem perder sua vida por mim achá-la-á» (Mt 16,25). Por aqui se vê que para a Bíblia tudo no homem é de alguma forma corporal. Pertence ao ser-hornem a corporalidade. Pode significar fraqueza mas também transcendência; pode designar fechamento sobre si mesma (carne), mas também abertura e comunhão (corpo) e radical referência para com Deus (espírito). O corporal é um sacramento do encontro com Deus. Em Jesus Cristo se mostrou que o corpo constitui o fim dos caminhos de Deus e do homem. (46) Em Cristo «habita a plenitude da divindade em forma corporal» (Col 2,9).

5. A consciência histórica da Igreja:
o homem é uma unidade imortal

Essa concepção unitária existencial do homem foi interpretada pelo Cristianismo encarnado dentro da cultura e língua gregas, de diversas formas. (47) A primeira delas foi pela fórmula natureza-graça. Natureza é

46 Cf. Metz, J.-B., Caro cardo salutis, op. cit., 7.
47 Cf. um excelente histórico em: Mysterium Salutis II, op. cit., 602-614.


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o homem como criação, diverso de Deus, em suas potencialidades e com sua sede de infinito. Graça é a situação do homem inteiro inserido no amor de Deus e polarizado na resposta que encontra na comunhão com Deus, em total liberdade e gratuidade. A graça pressupõe a natureza, não no sentido de ser um andar sobreposto ao outro mas de exprimir a mesma realidade a partir de uma ótica diferente: a natureza exprime o homem inteiro enquanto se distingue de Deus e está frente a frente a Ele ou até separado dele por uma segunda natureza (como dizia Pascal) rebelde que ele foi criando ao longo de sua própria história cultural. Graça significa essa mesma natureza histórica, redimida de sua situação encurvada e rebelde, penetrada pelo amor de Deus, não mais num frente a frente com Deus mas num diálogo de amor gratuito, de mútua interpenetração divinizante, de sorte que podemos dizer: a divinização do homem humaniza a Deus e a humanização de Deus diviniza o homem. Essas duas situações existenciais -- natureza-graça -- da mesma e única realidade humana corresponderiam ao que hebraicamente a Bíblia diria do homem como carne e como espírito. Nunca existiu uma natureza humana histórica sem a ordenação à graça. Não existe graça senão graça de uma natureza. O homem concreto constitui essa unidade natureza-graça. Por outra fórmula exprimiu a consciência do Cristianismo histórico, a unidade existencial do homem retratada na Bíblia: corpo-alma. A tradição agostiniana, assumindo as categorias de pensar da filosofia órfica, pitagórico-platônica, interpretou o homem constituído de duas realidades diferentes, corpo e alma. O homem tem um corpo mortal e uma alma imortal, como que castigada a viver no corpo. Santo Tomás de Aquino, assumindo e transformando as categorias da filosofia aristotélica (matéria e forma), formula uma concepção que afirma a radical unidade plural do homem, em consonância com o modelo bíblico. O homem não é constituído pela adição de duas essências díspares

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corpo-alma. O homem é totalmente corpo e totalmente alma. Corpo e alma ou espírito e matéria não são dois elementos no homem, mas dois princípios que constituem o homem inteiro. O corpo é a realidade do espírito presente e se exprimindo.(48) O espírito é subjetividade do corpo dando-se conta de si mesmo. O magistério da Igreja defendeu sempre a unidade essencial e a totalidade do homem. No Concilio de Vienne (1313) utilizando conceitos tomistas estabeleceu-se que a alma racional é a forma do corpo. Com isso se queria dizer que o espírito da matéria emerge na forma de corpo e que o corpo é a realização e expressão do espírito.(49) No quinto Concílio do Latrão (1513) contra o filósofo neoaristotélico Pomponazzi (1464-1525) que afirmava ser o espírito não algo de pessoal mas de universal, em comum, reafirmou-se que o espírito é a forma singular e individual de cada corpo, fundando uma unidade pessoal. A essa alma que pertence ao corpo o Concílio atribui o caráter de imortalidade. Como J. B. Metz comenta: «A imortalidade é atribuída à alma, porque o homem índividual em sua concreção histórica é imortal».(50) A morte biológica não pode portanto significar a diluição total da realidade humana. Já o Novo Testamento entende a morte como uma outra foirma de estar-com-Cristo (Flp 1,23).

6. O homem-corpo, nó de relações
com todo o universo

Concebido sempre como corpo vivo e por isso como momento essencial da alma, o homem-corpo apresenta-se como um centro ou nó de relações que de círcu-

41 Cf. Rahner, K., Der Leib als Symbol de.q Menschen, em: Schriften zur Theologie IV, EinsiedeIn 1967, 304-311 aqui 305.
49 Cf. Lang, A., Der Bedeutungswandel der Begriffe «fides» und «haeresis» und die dogmatische Wertung der Konzilsentscheidungen von Vienne und Trient (Festgabe f. F. Seppelt) Munique 1953, 133-146; Fiorenza, P. FMetz, J-B., Der Mensch aIs Einheit, op. cit., 616-617.
50 Metz, J. B., Der Mensch, aIs Einheit. op. cit., 617. Cf. em: Geist und Leib, in der menschlichen Existenz (CoIeção Ciência e Teologia, 4) Friburgo 1961, 196-198.


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lo em círculo abarca todo o universo. (51) Esse centro é personalizado, isto é, com característicos físico-psíquicos irrepetíveis e próprios a cada subjetividade. Embora particularizado pessoalmente pode universalizar-se: os sentidos, os meios de comunicação permitem-lhe estabelecer uma comunhão com todas as coisas: «o nosso corpo se estende até às estrelas». (52) A personalidade (não a pessoa) é criada na história pessoal e se desenvolve nessa comunhão com os outros homens, com o mundo hominizado e com todo o universo. É o campo onde exerce sua liberdade e vai moldando sua história pessoal responsável. Em sua situação terrestre o homem-corpo-nó-de-relações está sujeito às coordenadas do espaço e do tempo. Essas coordenadas possibilitam a comunicação e a comunhão; mas também a limitam: o espaço e o tempo nos separam e a presença é sucessiva e não simultânea a todas as coisas. Os símbolos e códigos de comunicação ao mesmo tempo que comunicam impedem a comunicação porque apresentam-se inevitavelmente ambíguos. Não obstante essa indigência, a personalidade é essencialmente comunhão para fora e o simples fato de o homem ser corpo vivo o coloca necessariamente numa situação de abertura, contacto e relação com o mundo circunstante humano e cósmico.

7. A morte como evento biológico e como evento pessoal

À luz desta concepção unitária do homem corpo-alma, que significa a morte? A definição clássica da morte como separação da alma do corpo caracteriza-se por uma grave indigência antropológica, porque apresenta a morte como algo que afeta somente a «corporalidade

51 Esse terna é central no pensamento de A. de Saint Exupéry: veja por exemplo, em: Citadelle, Oeuvres, Gallimard 1959, 958-962 et passim.
52 Cf. Pousset, E., La résurrection, em: NRTh 91 (1969) 1031, mas também 1031-33.


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humana», deixando a «alma» totalmente intacta. (53) Essa descrição considera a morte como um fato biológico: quando as energias biológicas do homem atingirem o ponto zero, então entra a morte. Ademais essa concepção sugere que a morte é algo que sobrevém extrinsecamente à vida: ambas, morte e vida, se opõem; não existe entre eIas nenhuma interiorização recíproca. Por isso que, na definição clássica, morte é um evento que acontece no fim da vida biológica somente. Contudo, na visão antropológica acima exposta, a morte surge como um evento não tanto biológico mas como um fenômeno especificamente humano. A morte atinge a totalidade do homem e não seu corpo somente. Se o corpo é atingido e ele faz parte essencial e constitutiva da alma, então também a alma é envolvida no círculo da morte. Ademais a morte humana não é algo que entra como um ladrão no fim da vida: ela está presente na vida do homem, em cada momento e sempre a partir do instante em que o homem emergiu no mundo.(54) As forças vão se desgastando e o homem vai morrendo em prestações até acabar de morrer. A vida humana é essencialmente mortal, ou como dizia Santo Agostinho: no homem há uma morte vital.(55) A morte não existe. O que existe é o homem moribundo, como um-ser-para-a-morte. Ela não vem de fora, mas cresce e se madura dentro da vida do homem mortal. Desta forma a experiência da vida coincide com a experiência da morte. Preparar-se para a morte significa preparar-se para uma vida verdadeiramente autêntica e plena. Daí que a escatologia não é isolada da vida e projetada para um futuro distante. Mas é um evento de cada instante da vida mortal: a morte acontece continuamente e cada instante pode ser o último.
53 Veja asd críticas articuladas por K. Rahner, Sentido teológico de ta muerte, Barcelon 1965, 15-35; Boros, L., Mysterium mortis, op. cit., 83-90; Troisfontaines, R., Je ne meurs pas, op. cit., 71-96.

54 Conhecida é a frase de Heidegger: «Quando o homem começa a viver já é suficientemente velho para morrer»: Sein und Zeit, Tübingen 1953, 329.
55 Confessiones 1,6: «dicam mortalem vitam an morten vitalem nescio».


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8. A morte como cisão

O último instante da morte vital ou da vida mortal tem o caráter de uma cisão, não do corpo e da alma (porque estes não são duas coisas que podem ser separadas, mas apenas dois princípios metafísicos), mas entre um tipo de corporalidade limitado, biológico, restrito a um pedaço do mundo, isto é, ao «corpo» e outro tipo de corporalidade e relação com a matéria ilimitado, aberto e pan-cósmico. Com a morte o homem-alma não perde sua corporalidade, porque esta lhe é essencial, mas adquire outro tipo de corporalidade mais aperfeiçoado e universal. O homem-corpo como nó de relações para com a totalidade do universo pode agora, finalmente, pela primeira vez na morte, realizar a totalidade que já na situação terrestre podia vislumbrar e sentir parcialmente. O homem-alma na morte é introduzido na unidade radical do mundo; não deixa a matéria, nem pode deixá-la. porque o espírito humano se relaciona essencialmente com ela. Antes pelo contrário penetra-a muito mais profundamente numa relação cósmica total, desce ao coração da terra (cf. Mt 12,40). A morte é semelhante ao nascimento. Ao nascer a criança abandona a matriz nutritora que aos poucos se foi tornando sufocante. Passa pela crise mais penosa de sua vida fetal, ao termo da qual irrompe para um mundo novo e numa nova relação com ele: é empurrada de todos os lados, apertada, quase sufocada e ejetada para fora, sem saber que após essa passagem a espera o ar livre, o espaço, a luz e o amor.(56) Ao morrer, o homem atravessa semelhante crise biológica como ao nascer: enfraquece-se, vai perdendo o ar, agoniza e é como que arrancado do corpo. Não experimenta ainda o que vai irromper em horizontes mais vastos que o fazem comungar de forma essencial, profunda e perfeita com a totalidade deste mundo. (57) A placenta do recém-nas-

56 Cf. Troisfontaine, R., Je ne meurs pas, op. cit., 109.
57 Boros, L., Mysterium mortis, op. cit., 88; Id., ErIöstes Desein, op. cit., 92-93.


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cido na morte não é mais constituída pelos estreitos limites do homem-corpo, mas pela globalidade do universo total. A cisão assume ainda um outro aspecto: marca o termo da vida terrestre do homem, não apenas no seu sentido cronológico, mas principalmente humano. A morte estabelece um termo ao processo de personalização dentro das coordenadas deste mundo biológico e espácio-temporal. A teologia dirá: o último instante de vida e a morte instauram o fim do status vitae peregrinantis e o encontro pessoal com Deus.

Se a morte significa um aperfeiçoamento do homem por causa de sua relação mais íntima com o universo, então ela possibilita também a plenitude do conhecer, do sentir, do amar, enfim, da consciência. Como M. Blondel bem o viu, nossa vontade em seu dinamismo interior não se esgota e satisfaz plenamente em nenhum ato concreto: ela não quer só isto e aquilo (volonté voulue) mas a totalidade (volonté voulante).(58) A morte significa o nascimento do verdadeiro e pleno querer. O homem conquista enfim sua liberdade, desinibida dos condicionamentos exteriores, da própria carga arquetípica inconsciente, do superego social, das próprias neuroses ou mecanismos coatores. A personalidade, com aquilo que ela em sua história terrestre construiu, pode exercer sua liberdade no vastíssimo campo operacional do universo. Joseph Maréchal e Henri Bergson(59) relevaram a mesma estrutura do querer também no conhecer, sentir e recordar. Reina um dinamismo insaciável no homem que o leva a jamais esgotar sua capacidade de conhecer, sentir e recordar. Nenhum ato concreto apresenta-se adequado ao impulso interior. A morte abre a possibilidade para a total reflexão e a imersão no infinito horizonte do ser. A sensibilidade humana, em vida terrestre limitada pela seleção natural dos obje-

59 Blondel, M., Exigences philosophiques du christianisme, Paris 1950; Boros, L., Mysterium mortis, op. cit., 37-42.
60 Maréchal, J., Le point de départ de Ia métaphysique, Louvain-Paris 1922/26 esp. Cahicr V; Bergson, H., La perception du changement, Paris 1959, 1365-1392 reelaborado em Boros, op. cit., 43-52.


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tos sensíveis, liberta-se enfim destas peias e pode desabrochar numa capacidade inimaginável de percepções. A morte é o momento da intuição profunda do cerne do universo e da total presença no mundo e na vida. Gabriel Marcel(60) chamou a atenção para o dinamismo imanente do amor humano. Ele define-se como doação e entrega, de tal sorte que no amor só se possui o que se dá. Na condição terrestre o amor jamais pode ser total doação, devido à autoconservação congênita do ser viajor. Morte implica total entrega de nosso modo terrestre de existência. Esse fato possibilita à personalidade entregar-se totalmente na mais pura liberdade. Na morte o homem entra na radical comunhão com toda a realidade da matéria. Os filósofos E. Bloch e G. Mareel(61) tematizaram principalmente a dimensão esperança no homem, que não deve ser confundida com a virtude; é um verdadeiro, princípio no homem que dá conta do extraordinário dinamismo de sua ação histórica, de sua capacidade utópica e de sua orientação para o futuro. Não o que é emerge como verdadeiro, mas aquilo que virá. O homem jamais é uma síntese completa; seu futuro que vive como dimensão não pode ser manipulado e totalmente revertido num ato concreto. E contudo pertence à própria essência humana. A morte criaria a possibilidade para o ser e o será se tornarem um é pleno: um futuro realizado. A morte como cisão se revela especialmente no momento em que a curva da vida biológica se cruza com a curva da vida pessoal. A primeira curva é constituída pelo homem exterior, que nasce, cresce, amadurece, envelhece e biologicamente vai morrendo em cada momento até acabar de morrer. A outra curva é vivida pelo homem interior: à medida que vai envelhecendo biologicamente, cresce nele um núcleo interior e pessoal, a personalidade.

60 Marcel, G., Présence et immortalité, Paris 1959; Troisfontaines, R., De l'existence à l'etre. La philosophie de G. Mareei (vol. III), Paris 1953.
61 Elaborado principalmente por E. Bloch, Prinzip Hoffnung, 2 vol. Frankfurt 1959; Moltmann, J., Theologie der Hoffnung, München 1966; Alves, A. R., A Theology of Human Hope, Washington 1969. Orientador é também o volume coletivo Diskussion über die Theologie der Hoffnung, München 1967.


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A doença, as frustrações e as outras energias do homem exterior podem até servir de trampolim para um maior crescimento e amadurecimento da personalidade. Inversamente da curva biológica que vai decrescendo, a curva da personalidade vai crescendo e se abrindo cada vez mais para a liberdade, o amor e a integração até acabar de nascer. A morte entra quando ambas as curvas se cruzam e cortam. O pleno desenvolvimento do homem interior (personalidade) exige até a morte do homem exterior (vida biológica) para que possa se desenvolver adiante. É por isso que a morte para os santos e os homens de grande individualização da personalidade é vista como irmã, como a passagem necessária para um outro nível de vida pessoal e livre em maior plenitude. Como os cristãos antigos a morte surge então como o vere dies natalis: como o verdadeiro nascimento onde o homem realiza plenamente seu ser autêntico para sempre. No decurso da vida, os atos de nossa liberdade pessoal possuem um caráter preparatório e nos educam para a verdadeira liberdade. «Morrendo, -- dizia Franklin -- acabamos de nascer».(02)

9. A morte como de-cisão

Se o momento da morte constitui por excelência o instante no qual o homem chega a uma inteira maturação espiritual e a inteligência, a vontade, o sentir e a liberdade podem ser exercidos sem qualquer empecilho e em conformidade com seu dinamismo nativo, então deu-se, pela primeira vez, a possibilidade de uma decisão totalmente livre que exprima a totalidade do homem frente a Deus, a Cristo, aos outros homens e ao universo. O momento da morte rompe com todos os determinismos; o verdadeiro ser do homem escolhe as relações com a totalidade que o constituirão como personalidade aberta para todos os seres. Imerso no espaço e tempo terrestre o homem era

62 Troisfontaines, R., Je ne meurs pas, op. cit., 118-119.


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incapaz de exprimir-se totalmente num ato definitivo. Todas as suas decisões eram verdadeiras, mas precárias e mutáveis.(63) Devido à sua ambigüidade constitucional, nenhuma delas podia surgir com caráter definitivo que implicasse por si só céu ou inferno. Na morte (nem antes nem depois), isto é, no momento da passagem do homem terrestre para o homem pancósmico, livre de todos os condicionamentos exteriores, na posse plena de si como história pessoal e com todas as suas capacidades e relações, dá-se uma decisão radical que implica no eterno destino do homem. Nesse momento de total consciência e lucidez o homem conhece o que significa Deus, Cristo e sua autocomunicação, qual é a destinação do homem, suas relações de abertura para com a totalidade dos seres. Agora, então, em conformidade com sua personalidade que ele se criou ao longo da vida, totalizando todas as decisões tomadas, pode decidir-se para a abertura total que implica salvação ou para um fechamento sobre si mesmo que exclui comunhão com Deus, Cristo e a totalidade da criação. Morte significa um penetrar no coração da matéria e da unidade do cosmos. Aqui se realiza um encontro pessoal com Deus e com o Cristo ressuscitado que tudo enche com sua presença, o Cristo cósmico. Agora, numa chance otimal, pode o homem decidir-se igualmente numa forma otimal, totalmente livre de coações exteriores e definitiva. Nesse encontro com Deus e com a totalidade acontece o juizo e também o purgatório como processo de purificação radical.(64) Diante de Deus e de Cristo, o homem descobre sua ambigüidade, passa por uma crise derradeira, cujo desfecho é um ato ou de total entrega e amor ou de fechamento e opção para uma história sem outros e sem ninguém. Essa de-

63 Cf. Bordoni M , L'ipotesi dell'ultima decisione, em: Le dimensioni antropologische della *morte, op. cit., 85-122. Num outro ensaio, em breve, queremos retornar a esse tema, também no meti aspecto histórico e de sua segurança pastoral. Aqui restringir-nos-emos à intuição central; as obra de Boros e de Troisfontaines popularizaram a idéia, inclusive sua espiritualidade.
64 Cf. Boros, L., Mysterium um mortis, op. cit., 138-150; Id., Erlöstes Dasein, op. cit., 97-100; Boff L., Purgatório: processo de pleno amadurecimento, em Vozes maio 1972, 67-70.


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cisão produz uma cisão definitiva entre o tempo e a eternidade e o homem passa da vida terrestre para a vida em comunhão íntima e facial de Deus ou de total frustração de sua personalidade, chamada também de inferno.

10- A morte como fenômeno natural
e como conseqüência do pecado

As reflexões feitas até aqui evidenciaram que a morte pertence ao próprio conceito de vida terrestre. Esta é sempre vida mortal ou morte vital. Muito antes que tivesse emergido, na evolução, o homem mortal, já mirravam as plantas e morriam os animais. Esta constatação tem sua importância porque a Bíblia e a teologia apresentam a morte como conseqüência do pecado do homem. Paulo o diz claramente: «Através, do pecado a morte invadiu o mundo» (Rom. 5,12; cf. Gên, 3). O segundo Concílio de Orange (529) bem como o Concílio de Trento (1546) o relevam com igual clareza: a morte é o preço do pecado (DS 372 e 1511). Como se há de entender isso? Parece que a sentença bíblica e conciliar se opõe ao que temos exposto até o momento. Uma reflexão mais atenta ao sentido desta afirmação nos fará compreender a validade das duas posições, uma que afirma a morte como fenômeno natural e outra que sustenta a morte como conseqüência do pecado. A teologia clássica, à deriva de Santo Agostinho, sempre ensinou que a morte é um fenômeno natural enquanto a vida biológica vai se desgastando até o homem terminar seus dias. Não podemos dizer: o homem não pode morrer (non posse mori). Constitucionalmente ele é um ser mortal. Contudo, em virtude de sua orientação originária para Deus e na sua situação matinal, o homem primitivo (Adão) estava destinado à imortalidade. Ele podia não morrer (posse non mori). «Quando, a fé nos ensina isso», como muito bem diz Karl Rahner

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no seu célebre ensaio sobre o Sentido teológico da morte, «não nos diz que o homem paradisíaco, pelo fato de não haver pecado, teria prolongado indefinidamente a vida terrena. Podemos dizer, sem qualquer reparo, que é evidente que o homem teria terminado sua vida temporal. Teria certamente permanecido em sua forma corporal, porém sua vida teria chegado a um ponto de consumação e plena madureza a partir de dentro... Adão teria tido uma certa morte» (38- 39.48). Isso quer dizer: haveria uma cisão entre a vida terrestre e a vida celeste, entre o tempo e a eternidade. Haveria uma passagem. Haveria, então, morte, no sentido explicado acima. Mas essa morte estaria integrada na vida. Devido à harmonia total do homem, ela não seria sentida como perda, nem vivida como um assalto nem sofrida como um despojamento. Seria passagem natural, como natural é a passagem da criança do seio materno para o mundo, da meninice para a idade adulta. Alcançada a madureza interior e esgotadas as possibilidades para o homem corpo-espírito no mundo terrestre, a morte o introduziria para o mundo celeste. Adão morreria como o Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry: sem dor, sem angústia e sem solidão.

Contudo, devido ao pecado original que afeta todos os homens e também devido ao pecado pessoal, a morte perdeu sua harmonia com a vida. É sentida como um elemento alienador e roubador da existência. É medo, angústia e solidão. A morte concreta e histórica, assim como é vivida (viver a morte e morrer a vida são sinônimos) resulta do pecado. Por um lado, como termo da vida é natural. Por outro, no modo alienador como é sofrida, é desnatural e dramática.

A morte implica uma derradeira solidão. Por isso o homem a teme e foge dela, como foge do vácuo. Ela simboliza e sela nossa situação de pecado que é solidão do homem que rompeu a comunhão com Deus e com os outros. Cristo assumiu esta última solidão hu-

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mana. A fé nos diz que ele desceu aos infernos, i. é, ultrapassou os umbrais do radical vazio existencial, para que nenhum mortal pudesse, de ora em diante, sentir-se só.

O homem pode integrar a morte na vida. Abraçá-la como total despojamento e derradeiro ato de amor como entrega confiante. O santo e o místico, como a história nos mostra, podem de tal modo integrar paradisiacamente a morte no contexto da vida, que não vêem mais nela a ladra traiçoeira da vida, mas a irmã que nos liberta e nos introduz na casa da Vida e do Amor. Então o homem é livre e libertado como um S. Francisco. A morte não lhe fará nenhum mal porque é passagem para uma vida mais plena.

III. A RESSURREIÇÃO DO HOMEM NA MORTE

Até aqui não inserimos ainda em nossas reflexões o pensamento da ressurreição, que para a fé cristã não é revivificação de um cadáver, mas a total realização das capacidades do homem-corpo-alma, a superação de todas as alienações que estigmatizam a existência desde o sofrimento, a morte e também o pecado e, por fim, a plena glorificação como divinização do homem pela realidade divina. A ressurreição é a realização da utopia do reino de Deus para a situação humana. Daí que para o cristianismo não há mais lugar para uma utopia, mas somente para uma topia: já agora, pelo menos em Jesus Cristo, a utopia de um mundo de total plenitude divino-humano encontrou um topos (lugar).

1. Como se articula a antropologia
com a Ressurreição?

Como se articula e relaciona nossa fé na ressurreição com o esboço antropológico acima exposto? Há elementos intrínsecos na antropologia que se ordenam

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a uma possível ressurreição? Parece-nos que podemos afirmar positivamente as duas perguntas e fazê-las proposições: a ressurreição vem responder a um anseio profundo e ontológico do homem por um lado, e por outro, a antropologia revela uma estrutura tal que pode articular-se dentro da fé na ressurreição. Ressaltamos acima o caráter excêntrico da existência humana, seu ser e contínuo poder-ser, o fato de um princípio-esperança no homem, causador do pensar utópico e contestatório dentro da história. O homem não é só um ser, mas principalmente um poder-ser. Existe no homem-ser um homem latente que quer se revelar em sua plenitude total: o homo revelatus. Os cristãos vimos em Jesus o homo revelatus para quem o futuro todo se transformou em presente e se realizou nele a escatologia. Ele é o novo Adão e a nova humanidade. A ressurreição é a resposta ao princípio-esperança do homem. Ela realiza a utopia de total realização do homem da qual sonhava o Apocalipse «onde a morte não existirá mais, nem haverá mais luto, nem pranto, nem fadiga, porque tudo isto já passou», porque todos serão povo de Deus e Deus mesmo estará com eles (21,4). Por outro lado a interpretação da morte, que a antropologia moderna elaborou, se coordena bem com o conceito cristão de ressurreição. A morte significa a plenificação da personalidade do homem e de suas capacidades estendidas à dimensão, do cosmos total. O homem-corpo , como um nó de relações com todo o universo, pode agora realizar-se perfeitamente como comunhão. Ora, pela ressurreição o homem-corpo atinge sua última realidade, porque vem glorificado por Deus. Na ordem concreta não existe destino natural do homem que não seja simultaneamente seu destino sobrenatural. Se a morte é o momento de total redimensionalização das possibilidades contidas dentro da existência humana, então está implicada com isso também sua realização na ordem sobrenatural. Tal fato nos

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sugere dizer: a ressurreição acontece já na morte.(63) Como a morte significa o fim do mundo para a pessoa, nada repugna que também se realiza aí a ressurreição do homem. Depois da morte o homem entra num modo de ser que abole as coordenadas do tempo e passa para a atmosfera de Deus, que é a eternidade. Já a partir deste ponto de vista se pode dizer que não é compreensível afirmar qualquer tipo de «espera» de uma suposta ressurreição no final dos tempos. Esse final dos tempos cronológico não existe na eternidade. Por isso a «espera» pela ressurreição final é uma representação mental inadequada ao modo de existir da eternidade.

Pela ressurreição o homem-nó-de-relações-com-o-universo é desdobrado totalmente e transfigurado à semelhança de Cristo e como ele possui uma ubiqüidade cósmica. Tudo aquilo que alimentou e tentou desenvolver ao longo de sua existência ganha agora sua melhor florescência. Sua capacidade de comunhão e abertura encontra sua perfeita adequação. Contudo há também uma ressurreição para a morte (segunda), a do homem que se negou à comunicação com os outros e com Deus, ao que se enrolou sobre si mesmo a ponto de constituir seu mundozinho fechado. Sua ressurreição é para a absoluta frustração. Nele se desdobram definitivamente as tendências de negação que nutriu e deixou campear em sua existência. Pela ressurreição o homem se abre ou se fecha radicalmente para aquilo que em vida se abriu ou fechou. Por isso a ressurreição não pode ser definida como algo de meramente mecânico ou automático: ela inclui um aspecto decisional e implica as duas possíveis opções dentro do campo da liberdade humana.

65 Teólogos que se situam positivamente frente a semelhante questão: Troisfontaines, R., op. cit., 248; Boros, op. cit., 205-207; Id., Wann geschieht die Auferstehung? em: Aus der Hoffnung leben, Olten, Freiburg 1968, 31-38; Rahner, K., Zum Sinn des neuen Dogmas (Assunção de Maria) em: Schweitzer Rundschau 50 (1951) 590; Betz. 0.. Die Eschatologie in der Glaubensunterweisung, Würzburg 1965, 96-101; 108; A fé para adultos. O Novo Catecismo, S. Paulo 543-545; veja porém as modificações da comissão cardinalícia, Suplemento, S. Paulo 1970, 74-76; Schoonenberg, P., Creio na vida eterna, em: Concilium, jan. 1969, 86--99; Benoit, P., op. cit., em: Concilium, 60 (1970) 1289-1298 e outros; veja-se especialmente de Ia Peña El hombre y su muerte, op. cit., 379-385.


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2. A ressurreição da identidade corporal
e não material do homem

Pela ressurreição tudo no homem é transfigurado ou frustrado, o corpo e a alma. Convém observar: corpo não é sinônimo de cadáver que fica neste mundo após a morte e que se decompõe. Corpo não é um agregado acidental ao homem-alma mas «uma dimensão indiscernível de mim mesmo», o modo concreto como o espírito se encarna na matéria, acede ao mundo e se auto-realiza. O espírito percebe-se encarnado. Percebe-se contudo não totalmente identificado com a matéria porque pode relacionar-se para além do corpo e com a totalidade dos corpos, nem totalmente distinto dela porque é sempre espírito encarnado. A personalidade é essencialmente também material. Por isso a personalidade que ao longo da existência vai se formando dentro do mundo no contexto de suas múltiplas relações vai também criando sua expressão material. O corpo de ressurreição possuirá a mesma identidade pessoal e não material com aquele que éramos na existência espácio-temporal. Não podemos confundir identidade corporal com identidade material (da matéria do corpo). A biologia nos ensina que a matéria do corpo se transmuda de sete em sete anos. E entretanto temos a mesma identidade corporal. Agora como adultos somos diferentes, materialmente, do que quando éramos crianças. E apesar disso somos o mesmo homem corporal. Pela ressurreição seremos muito mais diversos ainda e não obstante idênticos pessoalmente a ponto de podermos dizer: eu sou eu espírito-corpo. O que ressuscita é nosso eu pessoal, aquilo que criamos em interioridade dentro da vida terrestre, eu esse que sempre inclui também relação para com o mundo e por isso corpo. Diríamos mais: na ressurreição cada qual ganhará o corpo que merece, que corresponde ao seu eu e que o exprime total e adequadamente. Na terra, nosso estar-no-mundo nem sempre é bem

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expresso pelo corpo. Ele pode expressar deficientemente nossa interioridade e constituir um empecilho à sua realização na matéria. Ele vem marcado até as suas últimas fibras pela história do pecado e por isso pode materialmente desaparecer e voltar ao pó. Agora pela ressurreição o homem é desobstaculizado e irrompe (se for para a vida eterna) a perfeita e cabal adequação espírito-corpo-mundo, sem as limitações espácio-temporais e as alienações da história do pecado. Cada qual a seu modo se exprimirá na totalidade da matéria e do mundo porque o homem assumiu uma relacionalidade pan-cósmica. O homem, nó de relações de toda ordem, vem transfigurado e totalmente realizado por Deus e em Deus.

Nessa linha de reflexão podemos dizer: a Assunção de Maria, antes de ser algo de exclusivo dela, é um exemplo daquilo que acontece com todos os que já estão com o Senhor (cf. 2Cor 5,610). A Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1950, exprime a esperança de «que a fé na Assunção corporal de Maria ao céu possa tornar mais forte e mais ativa a fé na nossa própria ressurreição». (66) Embora o documento não tenha a intenção de colocar Maria assunta como exemplar de nossa própria ressurreição na morte, «podemos achar nessa verdade talvez um convite a tentarmos elaborar o sentido da escatologia em geral a partir da verdade concreta e definida da Assunção,». (67) A Constituição Lumen Gentium, propõe de fato «a Mãe de Deus, já glorificada no céu em corpo e alma, como imagem e primícia da Igreja, que há de atingir a sua perfeição no mundo futuro» (n. 68). Comentando a relação entre Maria e a Igreja, opina um teólogo: «Maria não é a personificação dum estado futuro da Igreja gloriosa, mas sim a expressão pessoal do estado presente da Igreja celestial... Maria elevada ao céu exemplifica a vida redimida nos moldes em que ela é já participada pelos santos na glória. Nós que estamos ainda 'prisioneiros do corpo', vemos já à nossa frente o que será a vida

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nova. Este estado final foi atingido em Cristo não só Por Maria, mas também por aqueles que estão já com o Senhor». (68) Maria não é, pois, uma exceção, mas um exemplar. No entretanto aqui conviria repetirmos a reflexão que fizemos acima quando nos referíamos à diferença entre o corpo glorificado do Senhor e o nosso. O mesmo valeria para o corpo transfigurado da Virgem. Seu corpo, à diferença do nosso, não vinha marcado pela história do pecado. Como Imaculada, seu corpo era o sacramento de Deus e da interioridade graciosa de seu espírito. Ele foi o receptáculo da encarnação do Verbo. Embora vivesse no velho mundo, era presença do novo céu e da nova terra. Por isso, parece-nos, por esses motivos teológicos, podermos afirmar que o corpo carnal da Virgem foi transfigurado e não teria passado pelas vicissitudes do cadáver humano que carrega em si a história do pecado pessoal e do mundo e por isso volta ao pó da terra. Nela como em Cristo apareceu o homo matinalis, para quem a morte era passagem transfiguradora para o definitivo e o divinamente realizador. À diferença da declaração dogmática da Imaculada Conceição, a Constituição Apostólica Munificentissimus Deus em nenhum lugar afirma a exclusividade da assunção de Maria. Isso nos permite ver esse dogma com uma brecha de penetração para estendermos a mesma graça aos que morrem no Senhor. E realmente, M. Schmaus, teólogo dos mais eclesiais e moderados, diz em seu recente manual de dogmática A fé da Igreja: «Não há nenhuma verdade da revelação que se oponha à tese de que o homem, logo na morte, ganhe uma nova existência corporal enquanto seu corpo terrestre é levado à sepultura, cremado ou entregue à decomposição. Semelhante transformação imediata não pode ser provada com absoluta certeza. Mas existem argumentos que tornam essa tese provável». (69) (NE)

69 AAS 42 (1950) 770.
67 Flanagan, D., Escatologia e Assunção, em: Concilium, jan. 1969, 125. Também Schmaus, M., Der Glaube der Kirche, 11, 745.
68 Id., 127-129; Cf. Betz, O., Die Eschatologie in der Glaubenswnterweigung, op. cit., 96-101.
69 Schmaus, M., Der Glaube der Kirche, vol. II, Munique 1970, 744.
(NE) O conteúdo de todo esse grande parágrafo que aborda a figura de Maria, e nessa altura do livro, distôa estranhamente do restante dessa obra de Boff. Alguma exigencia de editores (da edição impresa) ou autoridades eclesiásticas às quais Boff está subordinado? Só o autor pode responder.


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Esses argumentos foram aduzidos acima. Fundam uma real probabilidade que é muito mais que uma mera possibilidade. É essa probabilidade fundamentada por argumentos da antropologia e da Escritura que amparam a utilização pastoral de semelhante tese, que para muitos cristãos é motivo de alegria serena, de libertação e de renovado engajamento pela causa cristã entre os homens. O mesmo Schmaus argumentava: «Se respondermos que a ressurreição só acontece no fim dos tempos, então essa verdade de fé se torna cada vez mais vazia e perde sempre mais sua força vital. Se devemos esperar milhões ou bilhões de anos, então essa fé vai se diluindo cada vez mais no horizonte da consciência humana. Ninguém pode se representar conscientemente tal espaço imenso de tempo».(70)

3. O homem ressuscita também na consumação do mundo

Contudo, essa ressurreição na morte não é totalmente plena: só o homem no seu núcleo pessoal participa da glorificação. O homem, porém, possui uma ligação essencial com o cosmos. Este, na morte do homem, não foi ainda totalmente transfigurado. Só podemos falar em radical ressurreição quando sua pátria, o cosmos, também for transformada. Por isso, apesar do caráter de plenitude pessoal que a ressurreição na morte possa assumir e apesar da transformação do nó-de-relações-com-o-universo ter de alguma forma atingido também o próprio cosmos, podemos falar ainda em ressurreição na consumação do mundo. Só então Deus e Cristo serão tudo em todas as coisas (Col 3,11; lCor 15,28), de modo especial no homem essencialmente relacionado com o universo.

70 Id., 743.

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VI- Conclusão

PAULO chamava o homem ressuscitado de corpo-espiritual. Com isso entendia o homem todo inteiro alma-corpo, mas totalmente realizado e repleto de Deus. Como chamaríamos nós ao homem ressuscitado? Utilizando-nos de uma categoria da antropologia baseada no princípio-esperança, talvez pudéssemos dizer: homo revelatus. Com a ressurreição se revelou realizado o verdadeiro homem que estava crescendo dentro da situação terrestre, aquele que Deus realmente quis quando o colocou dentro do processo evolutivo. O homem verdadeiro, em sua radical potência, é só o homem escatológico. Pela ressurreição o poder-ser do homem-ser se realizou exaustivamente; ele saiu totalmente de sua latência; nele, pois, se revelou o desígnio de Deus sobre a natureza humana, de fazê-Ia participar de sua divindade com toda a realidade dela, corpo-espírito-aberta-para-a-total idade. O homo revelatus participa da ubiqüidade cósmica de Deus e de Cristo; possui uma presença total: nasce assim o homo cosmicus.

Agora, na presente condição espácio-temporal, existe o homo revelatus em sua latência: está ainda preso às categorias deste mundo e vive na condição de simul iustus et peccator. A morte liberta-o e lhe possibilita uma penetração mais profunda no coração do cosmos. Pela ressurreição na morte ele participa do
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Cristo ressuscitado e cósmico. Na consumação do mundo-universo, ele mesmo se potencializará ainda mais porque o cosmos lhe pertence essencialmente.

No termo da vida terrestre, o homem deixa atrás de si um cadáver. É como um casulo que possibilitou o emergir radiante da crisálida e da borboleta, agora não mais presa pelos estanques limites do casulo, mas aberta ao horizonte vasto de toda a realidade. À pergunta fundamental de toda a antropologia -- que será do homem? que podemos esperar? -- a fé responde jubilosa: vida eterna do homem-corpo-espírito em comunhão íntima com Deus, com os outros e com todo o cosmos. «Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo pecado», nos adverte o Vaticano II, «mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra. Nela habita a justiça e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos homens. Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo... e toda aquela criação que Deus fez para o homem será libertada da servidão da vaidade... O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se consumará» (GS, n. 39/318.320).

Como soam consoladoras as palavras do prefácio na missa dos mortos (I) que resumem toda a teologia exposta neste estudo: «Em Cristo brilhou para nós a esperança da feliz ressurreição. E aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola. Ó Pai, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada, e desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível».
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SUMÁRIO

I. EM BUSCA DO HOMEM NOVO 9

1. O homem novo no pensamento selvagem 9
2. O homem novo no pensamento científico 12
3. O homem novo na experiência cristã 15

II. A EMERGÊNCIA DO HOMEM NOVO, JESUS RESSUSCITADO, NO CRIVO DA TEOLOGIA CRÍTICA 19

I. INTERPRETAÇÕES DA FÉ NA RESSURREIÇÃO, NA TEOLOGIA PROTESTANTE 21

1. R. Bultmann: A Ressurreição não é um fato histórico mas expressão do significado da cruz 21
2. W. Marxsen: A Ressurreição não é um fato histórico mas uma interpretação das aparições condicionada pelo horizonte apocalíptico 24
3. W. Pannenberg: A Ressurreição é realmente uma interpretação das aparições, porém insubstituível, atingindo o fato histórico 28

II. INTERPRETAÇÕES DA FÉ NA RESSURREIÇÃO, NA TEOLOGIA CATÓLICA 31

1. Tendência tradicional: A Ressurreição é indiferenciadamente uni fato histórico 32
2. Tendência da exegese moderna positiva: A Ressurreição é um fato de fé da Igreja Primitiva 33
3. Tendência da exegese hermenêutica: A Ressurreição é indiretamente um fato histórico anunciado dentro das categorias da época 34
4. H. R. Schlette: A Ressurreição é uma interpretação retroativa sobre a vida de Jesus 38
III. CONCLUSÃO 39

III. O CAMINHO DA EXEGESE CRÍTICA SOBRE OS TEXTOS DA RESSURREIÇÃO 41

1. Como era a pregação primitiva sobre a Ressurreição? 41
2. Donde veio a convicção das Apóstolos na Ressurreição de Jesus? 45
a) 0 sepulcro vazio não deu origem à fé na Ressurreição 46
b) As aparições de Cristo, origem da fé na Ressurreição 49

3. Tentativa de reconstrução dos acontecimentos pascais 53

IV. REFLEXÕES DE ORDEM SISTEMÁTICA: O EMERGIR DO NOVO ADÃO 56

1. Nosso horizonte de compreensão e fé na Ressurreição 56
2. A Ressurreição de Jesus: uma utopia humana realizada 58
3. A novidade do homem novo 62
4. Conclusão 63

V. A NOSSA RESSURREIÇÃO NA MORTE 65

I. MORTE E RESSURREIÇÃO, E SUA LEITURA NAS ANTROPOLOGIAS BÍBLICA E GREGA 66

1. A solução conciliadora da teologia católica clássica 66
2. A morte no pensar platônico e no pensar semita 69
3. A experiência da Ressurreição de Cristo como novo horizonte para a antropologia 71
a) Categorias antropológicas semitas e Ressurreição 72
b) Quando se dará a Ressurreição? 75

II. RELEITURA DA RESSURREIÇÃO DENTRO DA ANTROPOLOGIA
DE HOJE 78

1. Observação metodológica: a tipicidade do pensar teológico 79
2. A personalidade como unidade de dimensões plurais 81
3. O homem, unidade corpo-alma 84
4. Aproximação bíblica: o homem, unidade de situações existenciais 86
5. A consciência histórica da Igreja: o homem é uma unidade imortal 89
6. 0 homem-corpo, nó de relações com todo o universo 91
7. A morte como evento biológico e como evento pessoal 92
8. A morte como cisão 94
9. A morte como de-cisão 97
10. A morte coMo fenômeno natural e como conseqüência do pecado 99

III. A RESSURREIÇÃO DO HOMEM NA MORTE 101

1. Como se articula a antropologia com a Ressurreição? 101
2. Ressurreição da identidade corporal e não material do homem 104
3. 0 homem ressuscita também na consumação do mundo 107

VI. CONCLUSÃO 108

Fim do Livro de Leonardo Boff: A Ressurreição de Cristo, A Nossa Ressurreição na Morte

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