quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Sobre o ser humano e sua coisificação





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Em primeiro lugar, a sociedade de classes – a alienação dos homens entre si – é inseparavelmente alienação de cada homem para consigomesmo e sua vida, redução de cada indivíduo a um mero fragmento mutilado do outro, de si mesmo e do mundo. Pois, necessariamente, se cadahomem se relaciona consigo próprio por meio de uma mediação estranha, a relação dele com o mundo objetivo, sua própria existência, é tambémmediada por essa medida exterior. Assim, é atribuído a algo extra-humano, o objetivo, a medida e a origem de sua própria atividade vital –tornando esta trabalho – e, ao mesmo tempo, cada homem torna-se incapaz de reconhecer os outros homens como tal, se relacionando entre sicomo se suas relações não fossem entre eles mesmos, mas entre representantes desse algo inumano, criando uma sociedade constituída detrabalhadores e, por conseguinte, não-trabalhadores.

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Mas a alienação não é uma coisa que se basta a si mesma, porém, aparece num movimento essencial, vivo, que a supera: o próprio homem,produzindo a si mesmo na história. Tomar a alienação como uma esfera isolada, seja exclusivamente política, econômica, ideológica, técnica, etc ecombatê-la nesse âmbito exclusivo, na verdade, apenas a consolida, pois, sendo esta posição o simples negativo dela, determina a si mesma porintermédio do universo da alienação, que é justamente o mutilamento, a separação, a fragmentação do humano em político, e assim não-político;em econômico, e assim, em não-econômico, etc. O mesmo se dá com o combate à alienação enquanto mera negação do conjunto dessesaspectos isolados. Afirmar a alienação ou negá-la coincide portanto em aceitar a sociedade de classes. É, pois, necessário ir além: negar a própriacondição de negação.

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A incessante atividade de autoproduzir, de se tornar ele mesmo, de revolucionar o estado de coisas dado é o ser do homem, seu modo de existir,ao contrário da do animal, que se identifica com sua atividade imediata, unilateralmente. Enquanto que o que diferencia o animal do objetoinanimado é que aquele cria respostas novas às circunstâncias objetivas, o homem cria circunstâncias objetivas novas, produzindo a si próprio notempo. Portanto, as relações dos homens entre si (a forma histórica de sociedade em que vivem) e as relações deles para consigo mesmos(concepções do homem e do mundo, razões, sentidos, desejos e necessidades) são inseparáveis do desdobramento de suas atividades vitais notempo, do movimento das suas relações com o mundo. A ampliação dessa atividade essencial do homem - o desenvolvimento das forçasprodutivas - coincide então com as criação históricas das sociedades e das idéias humanas e vice-versa, correspondendo então ao que o homemvem a ser, à história humana.

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Um fato inevitável caracterizava toda existência nas sociedades primitivas: a supressão periódica de toda realização prática do homem por forçasestranhas, a repetição constante das mesmas tarefas que são a cada momento perdidas e recomeçadas – a sobrevivência. Assim, o homem se viaobrigado a se relacionar com o mundo inumanamente, pois todas as suas manifestações eram unilateralmente determinadas; sua preocupação eraa existência imediata. Essa vida determinada por potências onipotentes e misteriosas significava para esses homens que o mundo era governadopor inumeráveis vontades arbitrárias, os deuses, que deveriam receber presentes para se apaziguarem. Em tal situação histórica, a atividadeprodutiva de cada um só pode satisfazer diretamente à própria reprodução física, logo não existem ainda classes sociais.

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Quando a atividade humana começou a produzir um certo excedente em relação às necessidades de mera sobrevivência, surgiram novas relaçõesentre os homens. A divisão da sociedade em classes, o surgimento do estado, a criação de relações autoritárias em toda extensão da sociedadenão apareceram então como algo estranho, mas como uma nova necessidade: a vida quotidiana que permanece sendo uma relação unilateralcom um mundo estranho e onipotente, tornava inimaginável para eles outro emprego deste excedente que não a criação e manutenção de umasociedade que reproduz esta relação de unilateralidade, de não-diálogo, com o mundo na relação entre os próprios homens, produzindo asociedade de classes.

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Desse modo, a praxis humana foi sendo expandida até o surgimento de uma situação objetiva radicalmente nova: o mundo que determina oshomens tornou-se por sua vez ao mesmo tempo determinado pelos próprios homens. O capitalismo (que surgiu no limiar desse fato objetivo) é omomento em que a sociedade de classes cavou a sua própria cova: criou uma circunstância objetiva que torna evidentemente absurda apreservação da sociedade unilateral.

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O capitalismo é a preservação de uma situação que se tornou falsa. Corresponde à criação prática pelo homem de sua própria vida como umavida a ele estranha; o homem se autodeterminando como não-autodeterminante. Em outras palavras: a relação unilateral com o mundo, o trabalho,a mera sobrevivência, é radicalmente negada quantitativamente, ou seja, não é ainda superada, sendo por conseguinte produzida agora pelopróprio homem, que faz então com que os produtos de sua atividade vital se coagulem numa esfera autônoma, voltando-se contra ele mesmo soba forma supra-humana de mercadorias.

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A mercadoria surge do fato de que o homem não reconhece sua vida como sua própria produção. Desse modo, as coisas que os homensproduzem, o mundo que eles transformam, aparecem como que com vida própria diante deles, não surgindo elas para eles como as coisasmesmas, não como realização de sua própria atividade vital, mas impregnadas de uma abstração absoluta, o preço, tornando-se um poderestranho, onipotente e misterioso. Então a existência humana aparece para os homens com uma origem, uma medida e um fim estranhos a elesmesmos: tudo, todo o mundo sensorial dos homens – tudo o que eles são, sua atividade – é negado, tornando-se medido, justificado, isto é,trocado, por pedaços de papel e metal. Assim, algo abstrato, fugidio aos sentidos humanos, paira sobre a humanidade e o mundo, tomando aforma de uma força natural imutável e inelutável, determinando a sobrevivência e a morte de toda e cada existência humana na Terra: o mercadomundial. Essa cisão radical do homem de si mesmo, dele para com seu produto é também cisão do homem para com o outro homem, a alienaçãoda humanidade em proletários e capitalistas.

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Geograficamente, o capitalismo é a construção pelo homem de um mundo a ele estranho, é a produção pelos indivíduos do alheamento radicalentre o universo que eles produzem e vivem e eles mesmos por meio de cercas, muros e armas, tornando sua própria vida, o próprio mundo, umapropriedade privada a eles, o capital. O mundo geográfico no qual o homem existe e onde ele se realiza aparece como algo dado de uma vez parasempre, como uma força hostil e absoluta. Ruas, bairros, cidades, países ao se tornarem capital assumem uma existência que foge totalmente aospróprios homens que neles habitam e os criam. Além disso, a preservação dessa unilateralidade que não corresponde mais à objetividade dasforças produtivas faz o próprio homem agir de modo unilateral sobre o mundo em que vive, dominando-o, e assim, poluindo-o.

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Porém, apesar (e por conseqüência) dos homens se autodeterminarem como estranhos, alienando-se, o fato objetivo é que os homens seautodeterminam. Desse modo, é no âmago do estado de coisas existente que existe a exigência revolucionária de sua própria superação. Aextrema transformação quantitativa da vida humana alienada ocasionada pelo capitalismo exige naturalmente um salto qualitativo, isto é, orompimento da lógica da alienação – a abolição do trabalho. Uma teoria se faz revolucionária se elucida o fato de que tudo o que existe, tudo o quese supõe dado, fixo e imutável, é atividade humana, incessante autoprodução dos homens, evidenciando, por conseguinte, a necessidade de umatransformação radical do estado de coisas dado, retirando a máscara de absoluto das coisas ao fazer deliberadamente delas manifestação históricada essência do homem, poesia.

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Com as forças produtivas atuais, os homens poderiam suprimir a alienação ao gozarem suas vidas como atividade vital. Isto é, criando um modode existência humana (social, isto é, individual) no qual o próprio homem age e se reconhece como produtor de si mesmo, onde o sentido daexistência é reconhecido no gozo da própria vida, então os homens vivos reais se reconheceriam como única medida legítima do mundo quetransformam, suprimindo o capitalismo.

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Os sujeitos históricos dessa transformação social (e os únicos que podem imaginá-la) só podem ser aqueles que são a essência do própriocapitalismo, isto é, aqueles que produzem a totalidade de suas próprias vidas como negação de si mesmos, os trabalhadores, uma vez que aclasse dominante (seja a burocrática, como em Cuba, a extinta URSS e China, ou a clássica como nos EUA, Brasil, etc) é um mero produtopassivo da auto-produção alienada dos proletários, sendo portanto totalmente impotente para superar a sua própria condição de classe.

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É cada vez maior a preocupação das ciências do conhecimento fragmentado, a base ideológica da sociedade atual, com relação aos trabalhadores:seus setores ditos humanos tentam desenvolver e divulgam para os administradores e gerentes técnicas de integração do trabalhador noambiente de trabalho, com a finalidade de “tornar agradáveis a relações humanas na empresa” contra os “terríveis distúrbios do comportamentodos empregados”. A última dessas ideologias argumenta que “o trabalhador satisfeito rende mais”, deduzindo disso que os capitalistas “devempromover conforto ao trabalhador”. Além disso, tecnologias e ambientes são desenvolvidos para a obtenção do mesmo resultado (por exemplo, acada dia mais comum instalação nos locais de trabalho de câmeras, gravadores de som, grampos telefônicos, aprimorando meios de proteção dapropriedade privada, e criando unidades arquitetônicas “agradáveis e seguras”, etc).Estes estudos apologéticos do capital não surgiram de divagações vazias, sua razão de ser só pode ser encontrada no gigantesco, porém aindasubterrâneo e negativo, movimento que agita o quotidiano da sociedade da alienação e que se intensifica a cada período que ela continuaexistindo: o fato de que em todo o lugar onde há trabalho, onde há a redução prática do homem à coisa, estes homens se organizam entre si,mesmo inconscientemente, contra a própria condição, sabotando e desviando para si mesmos parte da produção que lhes é expropriada comomercadoria. Esta luta está a um passo de superar a sua mera negatividade, isolamento e inconsciência: os trabalhadores começam a perceber quea própria condição de trabalhadores é a única raiz do estado de coisas que os determinam como tal, fazendo de sua luta não uma humilhante lutapara aumentarem seus salários ou “satisfação no trabalho”, mas uma revolução para se reapropriarem de sua condição humana, suprimindo-secomo trabalhadores, e assim, o próprio capital.

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Somente se os trabalhadores se auto-organizarem contra sua própria condição, afirmando na prática a si mesmos como seres humanos aonegarem objetivamente toda a medida ilusoriamente extra-humana de seus próprios atos e assim daquilo que produzem eles se suprimirãoabolindo todas as classes e o estado, criando então uma sociedade fundada na participação igualitária nas decisões que dizem respeito aatividades objetivas comuns, ao objeto delas e seus frutos, superando o trabalho e seu triste complemento, o lazer, pelo gozo da própria vidaautêntica e infragmentável, pela atividade conscientemente autoprodutiva ao mesmo tempo individual e social.


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