quinta-feira, 30 de agosto de 2012

CONTRA AS CIMEIRAS E ANTICIMEIRAS I


Tentativas burguesas de canalização das lutas proletárias em escala internacional e a luta invariante pela ruptura proletária

CONTRA AS CIMEIRAS E ANTICIMEIRAS (1)

Nota dos tradutores: Este texto foi publicado na revista Comunismo nº 47, em espanhol, pelo GCI (Grupo Comunista internacionalista). O original está disponível na internet em:

http://www.geocities.com/icgcikg_comunismo/c47_cumbres.htm

Características gerais das lutas da época atual

Em Comunismo nº 33, publicado em julho de 1993, apresentamos um balanço geral das lutas que caracterizam a fase atual do capitalismo, fazendo abstração dos elementos particulares de tal ou qual enfrentamento. Nada de importante mudou desde então nessa caracterização geral. Pelo contrário, vemos atualmente uma afirmação daqueles traços gerais com importantes tentativas internacionais de canalizar as revoltas proletárias e sinais evidentes de rupturas por toda parte, mas caracterizadas, ainda, do ponto de vista proletário, pelo mesmo tipo de forças e debilidades então analisadas. A catástrofe atual da sociedade capitalista, que continua se concretizando e se intensificando (2), e a tendência à radicalização das contradições e enfrentamentos voltam a por na ordem do dia a questão da direção revolucionária e da destruição da ditadura internacional capitalista. Frente à barbárie atual e como única alternativa, ressurge a questão do projeto social do proletariado, a revolução social, a destruição da sociedade mercantil.

Este texto, ao mesmo tempo que analisa brevemente o desenvolvimento da correlação de forças internacionais entre burguesia e proletariado, é uma arma de denúncia das ("novas") tentativas burguesas de canalizar a energia proletária, em particular mediante as cimeiras e anticimeiras, que parecem dominar a realidade internacional, assim como das diferentes ideologias pseudo-radicais que o enfrentamento vai determinando. Simultaneamente, é um produto das discussões atuais entre proletários que se colocam abertamente a questão internacional do poder, da destruição da ditadura internacional do capital e uma contribuição à luta do proletariado mundial por sua autonomia. É, pois, uma arma de luta para forjar uma direção própria em ruptura com todas as ideologias que pretendem nos manter acorrentados ao velho carro socialdemocrata, decorado para a ocasião com novos adornos. No artigo de 1993, já assinalávamos que as formas tradicionais de enquadramento burguês foram perdendo toda atração para o proletariado; e que as formas tradicionais de luta, tanto as "greves" organizadas pelos sindicatos, como as manifestações pacíficas, e o próprio sistema político nacional com seus circos eleitorais, não conseguiam nenhum entusiasmo. E sublinhávamos que "as velhas mediações estatais foram perdendo sua capacidade de válvula de escape, o proletariado, que alguns consideravam já morto e enterrado, quando reaparece, é com tudo: sem aceitar mediações, sem que se possa pará-lo com grevezinhas, manifestações pacíficas ou promessas de eleições".

Isso nos permitia constatar que os tipos de luta que caracterizam o período atual são explosões violentas e incontroladas do proletariado contra a propriedade privada e todas as forças sociais e políticas que a defendem. Essas explosões de raiva proletária contra o capital, caracterizadas pela ação "violenta e decidida do proletariado que ocupa a rua e enfrenta violentamente todos os aparatos do estado", continuaram se repetindo. O conjunto de países onde se produziu esse tipo de explosões - Iraque, Venezuela, Birmânia, Argélia, Marrocos, Romênia, Argentina, Estados Unidos (Los Angeles) - continua se ampliando: Albânia, Indonésia (várias cidades), Bangladesh, Equador, Argentina novamente (Santiago del Estero, Neuquén...), Bolívia, Argélia outra vez (Cabila).

Em todos esses casos, constatamos a mesma incapacidade da burguesia para dar um enquadramento às lutas: o enfrentamento violento contra tudo que representa a sociedade atual, incluindo sempre os partidos e os sindicatos da oposição democrática; a expropriação, mais ou menos organizada por grupos de vanguarda, da propriedade burguesa. "Varrendo preconceitos ancestrais, desafiando o terrorismo de estado, os proletários tomam o que necessitam, tentando destruir todas as mediações a que o capital os condena: dinheiro, salário, trabalho..."

Diante dessa tendência do ser humano de se reapropriar diretamente de sua própria vida, constatávamos, no texto de 1993, que a burguesia contra-ataca invariavelmente com "suborno, porrada e desinformação", com a manipulação informativa e o ocultamento sistemático do conteúdo universal de todas essas revoltas, apresentando as mesmas como "de estudantes", "de mineiros", "de palestinos", "dos curdos", "dos muçulmanos", "dos berberes"...(3). Víamos que o contra-ataque burguês se baseia em algumas concessões e em desenvolver uma repressão seletiva, mas que em todos os casos busca isolar o proletariado de seus elementos de vanguarda. Naquele texto, analisávamos também as debilidades das lutas proletárias atuais (curta duração das revoltas, derrota das mesmas, carência de associacionismo proletário permanente, ausência de imprensa operária, de memória histórica, desconhecimento do programa revolucionário...), assim como as necessidades e possibilidades de combater tais debilidades e de transformar esse processo descontínuo de revoltas e derrotas num processo ascendente para a revolução social (4).

A necessidade de reorganização da esquerda burguesa: tentativas de renovação

A esquerda burguesa atual tem o mesmo programa de sempre da socialdemocracia: mal menor, democratismo, populismo, parlamentarismo, sindicalismo, pacifismo, ajuda ao denominado "terceiro mundo"... Mas nesta sociedade onde a desvalorização do capital leva um ritmo desenfreado, onde as mercadorias devem trazer a etiqueta de novas para serem vendidas, onde a produção ideológica é parte da produção de mercadorias, as velhas idéias da classe dominante devem ser permanentemente recicladas para poder fazer seu papel de contenção social. A essa tendência obedecem, antes de tudo, as tentativas de renovação da esquerda burguesa, assim como a moda de usar "neo": "neo" esquerda, "neo" marxismo, anti "neo"liberalismo... (5).

No entanto, a razão imediata para tal renovação provém, além do mais, da necessidade geral do capital de responder a esse vazio sentido pela burguesia ante cada grande revolta proletária na qual os proletários atuam diretamente, fora dele e contra todas as mediações tradicionais de contenção da luta de classes. O terceiro elemento, decisivo para a obrigação da esquerda burguesa de se reciclar e assumir novos adornos para esconder seu corpo putrefato e assustador focinho, constitui a catástrofe socioeconômica dos países que a burguesia chamava de socialistas e a conseqüente deterioração geral de sua imagem: nem mesmo o apoio crítico típico do trotskismo e do maoismo radical ficou de pé. Tendo ficado tão em evidência que o sistema que tanto defenderam (criticamente ou não) tinha sido sempre a mais brutal exploração para o proletariado e sem que mediasse nenhuma revolução nem contra-revolução social - que tanto anunciavam! (6) - a mesma classe dominante declarava abertamente preferir "o capitalismo e a democracia", todo esquerdismo burguês internacional se viu obrigado a esquecer seus amores de sempre e teve de buscar outros versos para ser crível. Só algumas frações esquerdistas do espectro socialdemocrata (7) continuam maniacamente aferradas à defesa (crítica ou não) desse monstro stalinista que foi o "socialismo em um só país", mediante o apoio ao castrismo.

Mas a esquerda burguesa não tem nenhuma autonomia, nem sequer terminológica, com relação à direita, sempre vai na sua cola. Por isso, as vestimentas com que foi se cobrindo estavam determinadas, sem dúvida, pela evolução e as contradições do ciclo do capital mundial; inclusive quando parecem opostas não passam do mesmo, invertido. Com efeito, às ideologias gerais da burguesia mundial vencedora da segunda guerra mundial - democracia, direitos humanos, antiterrorismo, anti-autoritarismo, antifascismo... (8) -, as frações mais prejudicadas pelo livre mercado foram agregando diferentes ideologias que eram a negação simples do que a burguesia dominante e livre-mercantil internacional ia impondo. No mesmo ritmo que a clássica política liberal (que de "neo" não tem nada!) foi adotando uma terminologia diferente (mundialização, aldeia global, globalização...), a velha esquerda burguesa pseudo-antiimperialista foi se definindo com base no prefixo "anti": antineoliberalismo, antimundialização, antiglobalização... Os partidários de sempre da libertação nacional em todos os países, após os resultados catastróficos por toda parte e a caducidade de seu discurso burguês, se reciclam também, é claro, na "anti" globalização...

Na realidade não há nada de novo sob o sol do capitalismo. Tudo isso não passa de simples palavrório barato, ou melhor dizendo, terminologias inventadas pelo capital internacional, seguramente desenhadas por agências de publicidade, para melhorar a imagem do capital e, é óbvio, para impor seus objetivos atuais como algo novo. O capitalismo sempre foi mundial, sempre foi global; mais ainda, historicamente, o ponto de partida do capitalismo não é a nação (como disse Marx: o mercado mundial precede o nacional) mas a revolução do mercado mundial (que já existia muito tempo antes), operada em fins do século XV através da generalização do valor em escala mundial, que se conclui no século XVI, a impossibilidade de acumulação capitalista sem conquistar a produção, enfim, a subsunção histórica da humanidade ao capital. O global antecede sempre, na história do capital, o particular e local. O liberalismo é a política geral da fração hegemônica do capital desde antes da origem do mercado mundial, do dinheiro mundial, o que remonta há mais de mil anos, e tal política se contrapõe, necessariamente desde então, aos interesses das frações protecionistas. Portanto, o liberalismo e o antiliberalismo (tenham ou não o prefixo "neo"), o globalismo e o antiglobalismo, o mundialismo e o regionalismo... não são mais do que diferentes expressões da luta de sempre entre frações burguesas, umas interessadas em manter o protecionismo, fonte de sua acumulação, e outras, mais coerentes com a aplicação irrestrita da lei do valor a nível internacional, em quebrá-lo (9).

Se hoje se faz tanto ruído nos meios de fabricação da opinião pública internacional a respeito dessas tendências, tão bem e caricaturalmente representadas nas cimeiras internacionais e nas anticimeiras burguesas, é precisamente para ofuscar o proletariado com uma luta que não é sua e para responder a essas explosões de raiva proletária onde os explorados do mundo tentam retomar a luta num terreno de classe. A socialdemocracia, como partido histórico da contra-revolução para o proletariado, tenta voltar a tirá-lo da rua e da ação direta, e mantê-lo submetido a um conjunto de mediações que fazem dele uma massa de manobra e uma força de apoio da luta interburguesa (10).

Idéias e personagens da esquerda "neo"

Nos anos setenta e oitenta, eram chamados de "nova esquerda" e reagrupavam um amplo espectro de ideologias socialdemocratas que reclamavam mais democracia, mais socialismo, mais antiimperialismo, mas estatismo, mais populismo e que se queixavam das grandes empresas e monopólios... Agora se chamam antiglobalização, antineoliberais, antimundialização, anti Fundo Monetário Internacional, anti comércio mundial... Falam em nome da sociedade civil e da cidadania difusa e se definem pela luta contra o capital financeiro e multinacional, a maioria deles pela aplicação da "taxa Tobin"... Mas na realidade continuam sendo o mesmíssimo cachorro com uma coleira diferente.

Toda burguesia de esquerda constatava sua incapacidade para enquadrar o proletariado de cada país... mas como o lixo ecológico se recicla, como esse papel cinzento que nos propõem, incita a responder ao que chamam "globalização", "mundialização". Tentam focalizar tudo nas reuniões mais importantes do banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, da Organização Mundial do Comércio, assim como de outras instâncias do estado mundial do capital.

Velhos sindicatos e partidos políticos burgueses, ecologistas e feministas queimados, economistas keynesianos, movimentos pela paz, libertários (11) de todos os tipos, filantropos, jornalistas, terceiromundistas e antiimperialistas, organizações não governamentais e estruturas humanistas, agricultores em falência e protetores de animais buscam na convocação desses protestos uma nova virgindade política. Os velhos e desacreditados personagens voltam a aparecer em público, convocando verdadeiras missas cidadãs em oposição às reuniões de cimeira que os representantes oficiais realizam. Verdadeiros cortejos carnavalescos pacíficos e submissos, enquadrados policial e sindicalmente (por exemplo, a Confederação Européia de Sindicatos), coloridos e folclóricos, com personagens tão díspares como os comitês de apoio à pseudoguerrilha de Marcos ou essa caricatura de cidadão radical chamado Bové, que já foi batizado como o Walesa do Roquefort (por ser coerente em seus objetivos burgueses), passando pelos velhos personagens da esquerda champagne, tentam assim constituir uma "opção global" que na realidade não tem nada de original com relação ao velho socialismo burguês do século XIX. É claro que tampouco falta o apoio à "antiglobalização" e à "antimundialização" efetuado por personagens e organizações abertamente de direita, nacionalistas, fascistas e pró-nazis como na França, o ex-ministro da repressão, Charles Pasqua, ou a juventude do partido de Le Pen, a Frente Nacional. O denominador comum de tudo isso é, obviamente, fazer o capitalismo supostamente "mais humano", mais democrático; aprofundar a dominação democrática e a cidadanização da espécie humana. As palavras de ordem contra a globalização, o FMI, o Banco Mundial e o neoliberalismo deixam abertamente em evidência que do que se trata não é destruir o capitalismo, mas perpetuá-lo.

Ideologia da antiglobalização

A Associação ATTAC (Ação por uma Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos), cujo nome inteiro é já todo um programa, é a confluência de velhas estruturas e personagens socialdemocratas do mundo, a quem foram se juntando novas caras e constitui, sem dúvida, a instituição internacional mais importante da chamada antiglobalização. No entanto, existe outro conjunto de redes, federações e organizações no qual se misturam agrupações ideológicas, sindicatos, partidos políticos, sociedades caritativas, organizações religiosas e ONGs como o Centro Tri-Continental, a Marcha Mundial das Mulheres, o Jubileu 2000, o Jubileu Sul, a Aliança Social Continental, a Ação Global dos Povos, o jornal Le Monde Diplomatique, a "Associação Ya Basta", o Movimento de Resistência Global, Via Camponesa... (12).

Essas organizações, apesar de apresentar caras diferentes, plataformas formais distintas, resultam, como dissemos, da reciclagem da esquerda burguesa, que tenta por todos os meios recuperar algo da credibilidade perdida e apresentar, frente à catástrofe do capitalismo atual que o proletariado vive diariamente, uma alternativa reformista que responda às explosões cada vez mais incontroladas do proletariado internacional. Só para fixar idéias e mostrar até que ponto o programa de tais organizações é o velho programa reformista burguês de sempre, citamos alguns pontos básicos da plataforma constitutiva da Associação ATTAC, assim como também do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, por constituírem expressões bem representativas e gerais.

A ATTAC nem sequer pretende lutar contra o capitalismo, mas contra o que denomina de globalização financeira, e propõe como medida a Taxa Tobin e o impedimento da especulação. Tal plataforma começa assim: "A globalização financeira agrava a insegurança econômica e as desigualdades sociais. Menospreza as opiniões dos povos, as instituições democráticas e os estados soberanos encarregados de vigiar o interesse geral... e os substitui por uma lógica estritamente especulativa, expressando os interesses das empresas transnacionais e dos mercados financeiros".

A caracterização que tal organização faz do mundo se baseia no velho método social democrata de ver as conseqüências, negando-se a ver as causas determinantes, e analisar algumas manifestações particularmente nefastas e notórias do capitalismo, ignorando o fato de que as mesmas são o produto necessário e inevitável deste sistema social. Tal como a socialdemocracia baseou seu revisionismo na suposta novidade do imperialismo (13), ATTAC se baseia hoje na suposta novidade da globalização financeira. Tanto ontem como hoje, era preciso encontrar coisas novas para justificar uma política de reformas do capital. Em ambos os casos, do que se trata é de afastar o proletariado de sua luta contra os próprios fundamentos da sociedade capitalista.

A teoria socialdemocrata do imperialismo e ultraimperialismo (Kautsky) constituem sempre a chave dessa manobra. Tanto ontem como hoje, essa teoria imagina o capitalismo como tendo entrado numa fase diferente que faz com que varie sua própria natureza. Segundo ela, o capitalismo em sua fase imperialista se centraliza formalmente em um (ou vários em disputa) centros de decisão mundial sobre a base da concentração do capital financeiro (definido como a fusão do capital bancário e o capital industrial), as grandes empresas monopolistas internacionais, a exportação de capitais e a luta entre as empresas e os governos na repartição do mundo.

Tanto em princípios do século XX como hoje, o novo seria a dominação mundial por parte do capital financeiro e os monopólios, como teorizara então explicitamente o socialdemocrata de direita Rudolf Hilferding. Essa teoria foi mais tarde retomada totalmente por Lenin em seu conhecido panfleto sobre o imperialismo. Tanto nessa época como hoje, com a ATTAC e os outros grupos "antiglobalização", a socialdemocracia pretende se opor a esse capital financeiro reivindicando mais democracia e mais controle estatal do capital: "as opiniões dos povos, as instituições democráticas e os estados soberanos".

Como se pode verificar, atrás destas associações, dessas novas ou velhas caras, atrás dessas plataformas não há absolutamente nada de novo: a não ser o velho e putrefato programa da socialdemocracia, que sempre reivindicou um capitalismo "mais social" (sic), "mais humano" (sic), contra a desumanização notória produzida pelo próprio capitalismo. Também hoje, como ontem, são reivindicadas "as opiniões dos povos", isto é, o populismo contra o classismo proletário, "as instituições democráticas" contra a posição clássica de luta contra as mesmas para impor a ditadura do proletariado, enfim, "os estados soberanos encarregados de vigiar o interesse geral" contra a posição clássica dos revolucionários de destruir o estado burguês, de demoli-lo totalmente e, junto a ele, toda essa merda de soberania do estado (quanto mais soberano é o estado, mais oprimidos são seus súditos!, como disseram Marx e Bakunin), as fronteiras, as nações, as leis migratórias, os passaportes, as guerras...

A ATTAC é uma expressão socialdemocrata aberta que, como tal, denuncia o aumento da riqueza e da pobreza e pretende que a opinião cidadã e a pressão sobre os estados regule os excessos do capitalismo. Em sentido histórico, é uma expressão de direita da socialdemocracia porque não reivindica nenhuma oposição ao capitalismo mesmo, senão, pelo contrário, à liberdade que o capitalismo desenvolve para realizar seus objetivos. Patrocina o controle dessa liberdade (que nem sequer querem abolir!) por parte dos governos. Não critica em nada o capital produtivo, nem, é claro, a própria exploração capitalista (a extorsão de mais-valia é legitimada implicitamente) mas os lucros excessivos do capital, com relação ao aumento inocultável da miséria das massas, e a especulação não produtiva. Como se fosse possível, mais uma vez, atacar as conseqüências sem atacar as causas.

Sua plataforma constitutiva diz: "A liberdade total de circulação de capitais, os paraísos fiscais e a explosão do volume de transações especulativas arrastam os estados a uma corrida louca para conseguir favores dos grandes investidores... Este processo tem por conseqüência o crescimento permanente dos lucros do capital em detrimento dos trabalhadores, com a conseqüente generalização da precariedade e extensão da pobreza".

A ATTAC nem sequer oculta que seu grande temor seja a revolução social e que sua função seja evitá-la, ainda que o digam com sua terminologia na moda: "Responder ao duplo desafio de uma implosão social e de um sentimento de desesperança política exige um compromisso cívico e militante".

Aproveitemos, porque é também uma moda, para assinalar que em todos esses meios da atual socialdemocracia livre-pensadora, do movimento libertário, todos os conceitos foram revistos, reinterpretados e republicitados extraindo-lhes todo conteúdo classista. Por sua importância decisiva, sublinhemos a falsificação que se faz do próprio conceito de exploração, chave da constituição do proletariado como classe mundial homogênea. Assim, a exploração não seria, como para nós, a extorsão de mais-valia, que evidente e objetivamente unifica em sua desgraça toda a humanidade proletarizada e foi historicamente decisiva para o reconhecimento mundial do proletariado como classe, mas realmente qualquer coisa. Assim, dizem: "realmente me faziam trabalhar tanto que me exploravam", como se o trabalho não fosse sempre exploração! Assim nos dizem "os trabalhadores de tal país são explorados", como se os de todos os outros não fossem! Assim dizem: "as multinacionais são exploradoras", como se as empresas locais não fossem! Dizem: "os monopólios exploram e destroem os recursos da terra", como se não fosse o capital que tudo explora e destrói e como se ele mesmo não fosse o que dita a ação de todas as empresas! Dizem: "os imperialistas nos exploram", como se fosse possível haver burgueses não imperialistas ou patrões que não exploram!... Enfim, querem nos fazer crer que o que vivemos não é exploração, que a exploração não é a regra deste mundo, mas a exceção, o caso extremo, que em geral se encontra muito longe, pois quanto mais longe melhor para a socialdemocracia: "na campanha de um país do terceiro mundo". A receita correspondente é que se deve "solidarizar com sua miséria e ser mais austeros e protestar menos aqui". Desnecessário dizer que "solidarizar-se" não tem nada a ver com o conceito classista de luta, mas que, partindo do conceito judaico-cristão de culpa e pecado, pede-se um comportamento caridoso. Trata-se de toda uma visão do mundo típica da classe dominante e seu socialismo abertamente burguês.

É claro que tal falsificação determina muitas outras, como o próprio conceito de proletariado, que se faz tudo para não mencionar e quando é mencionado é para referir-se a uma mera categoria sociológica (os operários, como impôs o stalinismo), mas nunca o sujeito revolucionário em devir, o que lhes permite escamotear sua perspectiva revolucionária e o fato de que o mesmo contém o único projeto social alternativo ao mundo atual: o comunismo, a comunidade humana mundial.

Voltemos à ATTAC para constatar que as medidas propostas estão em total coerência com sua visão socialdemocrata do mundo: taxar o capital financeiro, maior controle estatal dos lucros e paraísos fiscais, mais democracia: "Com este propósito, os abaixo assinados se propõem criar a Associação ATTAC (Ação por uma Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos)... com o fim de impedir a especulação internacional, taxar os rendimentos do capital, sancionar os paraísos fiscais, impedir a generalização dos fundos de pensão e, de uma maneira geral, reconquistar os espaços perdidos pela democracia em benefício da esfera financeira e se opor a todo novo abandono da soberania dos estados sob o pretexto do "direito" dos investidores e negociantes..."

O Fórum Social Mundial que se realizou em Porto Alegre em janeiro de 2001 e que, dado seu êxito, seus organizadores pretendem reeditar todos os anos é um verdadeiro exemplo de reunião de cúpula (paralela e exemplo por excelência de anticimeira) da esquerda burguesa internacional, uma expressão desenvolvida da velha ideologia socialdemocrata mas elegantemente vestida de acordo com a moda das cimeiras e anticimeiras. O programa do mesmo se parece como duas gotas d’água ao invariante programa burguês da esquerda: "demandando uma reforma agrária democrática com usufruto por parte do campesinato da terra, da água e das sementes, exigindo a anulação da dívida externa e a reparação das dívidas históricas, sociais e ecológicas que a dívida externa provoca, a eliminação dos paraísos fiscais, o cumprimento efetivo dos direitos humanos, a oposição a toda forma de privatização de recursos naturais e bens públicos, a exigência de soberania para os povos, um planeta desmilitarizado". (14)

O Pronunciamento dos movimentos sociais, que expressa o programa de todas as associações, redes, sindicatos, partidos... presentes em Porto Alegre está cheio de pérolas da burguesia onde se imagina um capitalismo sem as nefastas conseqüências inerentes ao mesmo, um capitalismo que não gere pobreza, nem miséria, nem desemprego; um capitalismo que não destrua a natureza, um capitalismo não excludente, nem patriarcal, um capitalismo sem racismo; em síntese, um capitalismo justo e equitativo no qual todo mundo viva bem. "Exigimos um sistema de comércio justo que garanta o pleno emprego, soberania alimentar, termos de intercâmbio equitatívos e bem estar." Ou seja, o discurso invariante dos burgueses segundo o qual o capitalismo, corrigindo alguns excessos ou injustiças, seria... uma sociedade de bem estar! Apologias tão descaradas da sociedade burguesa nem sequer faz hoje a direita, que diz abertamente que isso é impossível!

Outro dos pontos recorrentes de toda ideologia antiglobalização é o de aumentar a ajuda ao que eles denominam Terceiro Mundo e alguns falam de chegar a 7 por cento do PIB. O que obviamente ocultam os defensores desse programa é que tal ajuda ao desenvolvimento não vai para os hospitais, escolas e outros projetos empresariais do desenvolvimento do capitalismo, como a maior parte das pessoas crêm, senão que vai também (ou principalmente, como em certos países) financiar os exércitos locais (para que estes comprem armas nos países que dão tal ajuda), financiar a formação de oficiais de polícia anti-subversivos e antidistúrbios (assim se patrocinam os torturadores argentinos, congoleses, peruanos... que vão se formar na França, Bélgica, Argélia...), pagar a Shell pelos gás lacrimogêneo que fabrica com matérias primas do famoso "terceiro mundo"..., assegurar a realização de massacres ("genocídios", "holocaustos") como os de Burundi...

Esta é, em traços gerais, a ideologia da antiglobalização que a socialdemocracia desenvolve, ou melhor dizendo, a direita desse partido; pois existem expressões muito mais de esquerda que correspondem a outras frações desse partido histórico da burguesia para o proletariado. Com efeito, todo esquerdismo burguês que antes se definia pelo suposto socialismo de algum país, ou pela defesa de determinado "estado operário" por mais degenerado que se considerasse, agora, muito cauteloso, já não fala de tal ou qual país socialista de forma positiva, e muito menos de campo socialista, mas continua se definindo pelo anticapitalismo. Como analisamos ao longo deste texto, estes esquerdistas, junto com a extrema esquerda dos liberais, que hoje se denominam libertários, tratam de responder ao desenvolvimento mesmo das contradições de classe e, em particular, às tendências do proletariado para afirmar sua ruptura com toda sociedade burguesa. Voltemos então à análise dessas contradições para poder situar e compreender melhor essas expressões.

Cimeiras, anticimeiras e luta proletária

Sem dúvida se mistifica a importância das cimeiras e anticimeiras, pois o capital não necessita de conferências internacionais, nem reuniões de cúpula para funcionar como funciona. Pelo contrário, a chave da homogeneidade na tomada de decisões do capital apoia-se no fato de que a ditadura da taxa de lucro existe por toda parte, é a lei de todas as decisões, é a essência de toda e qualquer diretiva econômica, é a chave de toda vida (ou melhor, contra-vida humana) do capitalismo por toda parte. Não apenas o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, as multinacionais e os governos, os parlamentos e as prefeituras, os acordos entre estados e consórcios, os trustes e as pequenas empresas aplicam em suas decisões grandes, pequenas e médias o critério da rentabilidade do capital (próprio ou de seus administrados), mas desde o diretor e o gerente de uma empresa até o último trabalhador do planeta estão obrigados a aplicar tais critérios se querem permanecer em seus postos; ainda que alguém se contente e o outro sofra com a alienação de sua vida que isto implica. O capital se caracteriza precisamente por sua democracia, por cooptar entre seus súditos quem mais inescrupulosamente servir seus apetites de lucro, quem mais impiedosamente for capaz de impor seu despotismo: seja como diretores, seja como governantes, seja como funcionários internacionais, seja como administradores locais, seja como chefes sindicais ou como torturadores... Pense-se simplesmente em quantos dirigentes operários foram cooptados pelo governo do capital, de Noske a Lula, passando por Walesa. A outra cara dessa democracia pela qual se coopta os dirigentes operários para servir ao capital é evidentemente o despotismo cotidiano que impõe o valor em processo, contra a vida humana. Ditadura onipotente da taxa de lucro que, além do mais, desenvolve a concorrência entre os proletários e a luta de todos contra todos, sempre a serviço dessa imposição do maior ritmo de acumulação possível.

Mas, além da mistificação que se faz sobre a importância do centralismo formal que o capital pode conseguir, é claro que o capitalismo tem centros de decisão (reuniões, instâncias, lugares, organismos, pessoas...) que, num dado momento, centralizam certas decisões globais que obedecem a essa ditadura onipresente da taxa de lucro. Neles se anunciam em geral medidas que atacam o nível de vida dos proletários, ao passo que se fixam acordos entre as frações mais importantes e decisivas da burguesia. Tais reuniões são anunciadas publicamente em todos os meios de difusão porque buscam conquistar certa adesão da população a esses dirigentes do capital e às medidas que surgirem dessas reuniões no topo do poder do capital. E além do mais, nos dizem: "aplaudam que nos reunamos, pois normalmente vos mandamos para a guerra". Claro que essas reuniões obedecem também a negociações entre diferentes frações do capital e à necessidade de constituir constelações ou organismos que melhorem sua correlação de forças frente a outras frações, como é o caso dos mercados comuns regionais. Ou seja, que essas cimeiras e anticimeiras têm por função, além do mais, a de por em cena e espetacularizar a importância das polarizações burguesas, que o capital necessita para canalizar o protesto proletário. Portanto, ainda que se mistifique a importância decisória dessas cimeiras, ainda que a espetacularização das mesmas e de sua pseudocontestação constitua uma necessidade da reprodução da dominação burguesa, é normal que o proletariado tenha sempre considerado as reuniões de cúpula dos burgueses como um ataque contra sua própria vida, tanto se essas reuniões são num país como se são entre burguesias de diferentes países, se são governamentais, de partidos políticos, de sindicatos ou de estruturação dessas forças em escala internacional. Por isso, em todas as épocas e em todos os países, essas reuniões suscitaram grandes protestos, manifestações violentas, lutas na rua, explosões de bombas, enfrentamentos violentos, muitas vezes armados. Contra o mito de que os atuais enfrentamentos suscitados por reuniões de cúpula seriam novos (a fabricação da opinião pública requer sempre a apresentação como "novo" de velhas coisas) poderíamos citar inumeráveis exemplos em todos os continentes, há muitos anos, mas para o presente texto basta recordar as grandes batalhas de rua que o proletariado na América levou adiante nas décadas de sessenta e setenta contra as diferentes cimeiras internacionais nesse continente contra as reuniões da OEA, contra as da Aliança para o Progresso, contra as do Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e as do GATT, contra as Conferências de presidentes... incendiando empresas, ocupando fábricas e centros de estudo, fazendo manifestações violentas, pondo bombas em locais estatais, declarando greves, enfrentando a polícia, os corpos especiais de repressão e, em muitos países, o exército...

Na atualidade, uma vez mais, esse enfrentamento de classe se faz patente. Davos, Seatle, Niza, Praga... são expressões do mesmo. Mais uma vez, até aí onde as distintas frações do capital internacional vão cozinhar os proletários do planeta, o proletariado reemerge. Por um lado, as cimeiras oficiais e as anticimeiras socialdemocratas, isto é, o pseudoprotesto oficial. Por outro, o proletariado, ultrapassando todos os rebanhos, tratando de impor sua ação direta (15), rompendo vitrines e expropriando o que puder, atacando locais oficiais e a propriedade burguesa em geral, incendiando tudo que parecer estatal, criticando e denunciando a viva voz e por meio de volantes, panfletos e revistas as ONGs, a ATTAC, os partidos e sindicatos.

Isto é, que inclusive nesses antros de burgueses, apesar de todas as forças recuperadoras presentes, se enfrentam também as duas classes da sociedade, a burguesia e o proletariado, a conservação da ordem social burguesa e seu questionamento generalizado. Da direita à esquerda, podem fazer todos os espetáculos de luta havidos e por haver, todos os meios de difusão se encarregam de validar as opções "mundialização" e "antimundialização", mas inevitavelmente a crítica do capitalismo que os proletários presentes portam os impulsiona a romper o enquadramento e ressurgem os dois projetos sociais antagônicos de sempre: a continuidade da catástrofe capitalista ou a revolução social.

Independentemente da discussão que existe hoje no seio de nossa classe sobre como se deve situar o proletariado e que iremos abordando no desenvolvimento do texto, sobre se devemos participar ou não em determinado tipo de cortejo, sobre qual é o significado da palavra-de-ordem de se situar fora e contra essas conferências e anticonferências (que é a nossa posição!), sobre se essa é a ação direta que unifica e desenvolve sua força internacional contra o capital ou, pelo contrário, se isso o leva a se submeter a um espetáculo que o distancia de sua verdadeira ação direta, não pode caber dúvidas de que essas explosões expressam a raiva de nossa classe contra os burgueses reunidos e "decidindo o destino do planeta" (16). Neste sentido resulta sumamente encorajante o processo de autonomização proletária que nossa classe começa a manifestar durante as cimeiras e anticimeiras, e que se concretiza na ruptura do enquadramento sindicalista proposto, nas importantes expressões de violência contra as mesmas, contra a propriedade privada, contra as diferentes estruturas estatais. O mesmo deixou cada vez mais em evidência que a verdadeira contraposição não é entre Davos e Porto Alegre, entre a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a ATTAC... senão, como sempre, entre o capital (com sua direita e sua esquerda) e o proletariado.

Apesar de que, como explicaremos mais adiante, a autonomia do proletariado nessas lutas é ainda muito relativa, essas expressões da guerra de classes nas quais se expressa o antagonismo sempre crescente entre a humanidade e o capitalismo voltaram a colocar na comunidade de luta que foi se desenvolvendo, em particular, entre as minorias de vanguarda, algumas questões centrais como a do internacionalismo proletário, a necessidade internacional de se autoconstituir em força, a questão da luta internacional contra o poder do capital e o estado mundiais. Ainda que, como veremos, se esteja longe socialmente de encontrar as soluções, é sumamente animador que milhares de militantes através do mundo voltem a se colocar e a discutir questões centrais da revolução social. É evidente que esse fato, somado à continuidade das explosões repetidas em diversas partes do mundo constitui um passo importante do movimento revolucionário.

Canalização burguesa, espetacularização e falsificação

É claro que jamais os meios de informação apresentarão as coisas com base na polarização real burguesia-proletariado. Sua função é, pelo contrário, a de dissimular os antagonismos de classe, canalizá-los em contradições interburguesas, espetacularizar essas oposições para esconder os verdadeiros antagonismos, transformar a massa do proletariado mundial em espectadores passivos das conferências e anticonferências, e os setores mais decididos do mesmo em espectadores ativos que aplaudem e vaiam segundo a ocasião. Estes últimos são autorizados e também incentivados (para dar maior credibilidade ao espetáculo) a gritar palavras de ordem e realizar ações mais ou menos violentas, sem, é claro, colocar em questão nem o próprio espetáculo, nem seu papel de palhaço de um circo que os utiliza. Para os meios de falsificação da informação só existem as conferências oficiais e a contestação dirigida pela ATTAC e seus asseclas, além de obviamente alguns exaltados que expressam a mesma contestação que a ATTAC mas de forma mais violenta. Para eles, a oposição só existe entre cimeira e anticimeira, por exemplo, entre Seattle e Porto Alegre, ainda que estejam forçados a mostrar também imagens dos revoltados e inconformados.

Recordemos entretanto que nem sequer esse espetáculo de cimeiras e anticimeiras é novo. Por exemplo, durante os preparativos das duas guerras denominadas primeira e segunda guerras mundiais, as negociações de paz entre as potências mundiais que conduziam inevitavelmente à guerra, eram pautadas por congressos mais ou menos paralelos de pacifistas e socialdemocratas, que já tinham o mesmo papel de hoje de espetáculo e ofuscamento generalizado para tirar o proletariado da ação direta. De quinze anos para cá, o ritmo desse espetáculo de reuniões de cimeiras e anticimeiras foi se fazendo cada vez mais frenético: reunião no Rio sobre o porvir do planeta com anti-reunião paralela, celebrações e anticelebrações pelos quinhentos anos de descobrimento da América, novas conferências sobre a destruição do planeta e anticonferências ecológicas nos cinco continentes...

O Fórum Social de Porto Alegre em janeiro de 2001 é o exemplo supremo de espetáculo mediático montado pelo capital para representar todas as oposições havidas e por haver como uma simples questão interburguesa. Segundo os fabricantes da opinião autorizada, o Fórum de Porto Alegre seria a verdadeira resposta a Davos e, para lhe dar toda "realidade" que o espetáculo é capaz de produzir (que, como esses sabões com cheiro de maçã que têm mais cheiro de maçã que as maçãs, sempre parece mais verdadeiro que o que realmente está se passando!) vai até o extremo de construir o que seus fabricantes denominaram um "cenário simbólico da paixão" com base num debate direto "mediante teleconferência entre a fria Davos e a quente Porto Alegre"... (17)

"A equipe de Davos, encabeçada pelo financista e especulador Georges Soros, trajes escuros, gel e gravatas, seriedade e silêncio. Do lado de Porto Alegre, um leque de raças, vestimentas coloridas, idiomas, vozes e público. A discussão durou quarenta minutos, ao longo dos quais centenas de pessoas agrupadas diante dos televisores rompiam em aplausos ou vaias, riam ou gritavam palavras de ordem. Soros e sua equipe (formada por Mark Malloch, consultor das Nações Unidas; John Ruggie, também consultor da ONU e Bjorn Edlud, presidente de uma multinacional suíça) se esforçaram em manter uma calma desenhada por algum assessor de imagem, enquanto afirmavam estar preocupados com a pobreza e assinalavam que já antes da atual globalização e da dívida externa as crianças morriam de fome na África. De Porto Alegre, Bernard Cassen (ATTAC) respondia com precisão exigindo a taxa Tobin sobre as operações financeiras e especulativas e o cancelamento da dívida externa. Rafael Alegria (Via Camponesa) falou dos efeitos da globalização sobre a desarticulação dos serviços estatais, do aumento do desemprego e do impossível acesso dos camponeses à terra. Mas a paixão se desatou em dois minutos mágicos: Hebe Bonafini (18), das Madres de Plaza de Mayo, disse com voz entrecortada mas firme: "Senhores, vocês estão lutando contra nós. São hipócritas suas respostas. Respondam! Quantas crianças vocês matam por dia?" Do lado de Davos, Georges Soros esboçou um sorriso e ficou assim, em silêncio. Então Hebe Bonafini gritou: "Senhor Soros: está morrendo de risos diante da morte de milhares de crianças?" Diante dos televisores, a gente de Porto Alegre batia palmas em honra das Mães de Maio. Soros continuava com sua contorção facial apresentando-se como um cartaz satelital."

Todos os meios de difusão trabalham para fazer assim desaparecer o proletariado e a luta contra a sociedade capitalista atrás desse espetáculo entre Soros e a esquerda, entre o FMI e a ATTAC, entre "mundialização e antimundialização". Assim, por exemplo, na cimeira de Nice, como disse muito corretamente um volante que circulou internacionalmente: "A imprensa burguesa mentiu. Mentiu descaradamente. Segundo ela, os manifestantes contra a globalização capitalista haviam se unido ao cortejo cidadão convocado pela Confederação Européia de Sindicatos (CES). O que mais queriam os capitalistas e seus governantes, seus porta-vozes e lacaios, do que ver se unir a juventude proletária que luta contra o capitalismo com os embusteiros desfiles organizados pela leal oposição ao sistema burguês. Na realidade, nas ruas de Niza, se distinguiram dois movimentos diferentes, opostos... Dois movimentos assim, em cena. O primeiro, burguês (ainda que arrebanhe muitos proletários enganados) conduzido para o reforço do estado capitalista pelos dirigentes reformistas a serviço deste. O segundo, proletário, denunciando, com voz em grito, o capitalismo e atacando seus interesses."(19)

É sumamente importante realçar a contraposição entre o movimento do proletariado e todas as anticimeiras e missas cidadãs organizadas pela ATTAC e companhia como fizeram muitos companheiros e grupos contra-a-corrente. No entanto, pretender que as duas manifestações diferentes coincidam com os dois movimentos sociais diferentes, uma reformista e outra anticapitalista como se diz logo depois nesse mesmo volante, é ver as coisas em forma demasiado pura e pouco dialética. Com efeito, apesar das grandes diferenças, ambas contém contradições de classe. A manifestação socialdemocrata enquadra os proletários como cordeirinhos. A outra (que em Niza, em vez de sair às 14 horas como a que foi organizada pela socialdemocracia saiu às 17 horas), com palavras de ordem radicais, tende para a ruptura proletária mas contém em seu seio um conjunto de posições e ideologias centristas da mesmíssima socialdemocracia que analisaremos mais adiante. A mesma se concretiza, por exemplo, no fato de que a imensa maioria desses manifestantes crêem poder enfrentar o capitalismo sem enfrentar (da mesma maneira) a socialdemocracia (que é também o capitalismo) e no fato de que sabem se organizar fora da socialdemocracia mas tem muito maior dificuldade em se organizar contra ela.

A febre das cimeiras (oficiais e paralelas) e a mentira dos projetos burgueses alternativos

Não há dúvida, entretanto, de que no último período (há dois anos, mais ou menos) a moda das cimeiras e anticimeiras deu um salto qualitativo, no mesmo ritmo que se radicalizam os protestos proletários contra as mesmas. Cada cimeira não pode mais prever apenas a organização das reuniões gerais e as comissões, o alojamento dos congressistas e anticongressistas, as missas oficiais ou as missas dos cidadãos democratas organizados pela "antiglobalização", mas deve prever também as ultrapassagens e rupturas proletárias com tudo isso e, portanto, prever forças repressivas especiais, fortalecimento de controles nas fronteiras, concentração de corpos de choque, equipes especiais de filmagem, fichamento e difusão, grupos de extermínio e serviços especiais de pistoleiros para os congressistas e anticongressistas, veículos para o transporte de tropas, tanques, alambrados para bloquear as manifestações, pré-instalação de serviços de inteligência de polícias de todo o mundo, meios para permitir a chegada dos congressistas ou evacuá-los caso os ataques cheguem até os centros oficiais, mobilização especial dos serviços de saúde pública e atendimento a feridos, armas, gases, máscaras, assim como a preparação de calabouços e centros de reclusão para receber um grande número de presos. Só a título de exemplo, o Congresso do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial em Praga deixou 170 policiais feridos, 123 manifestantes feridos e uns 900 detidos, e os danos materiais à propriedade privada foram estimados em um milhão de dólares, o que evidentemente é insignificante com relação ao quanto custa a mais cada reuniãozinha dessas, onde se diz que está prevista até a evacuação por helicóptero das personalidades, defesa aérea e antimísseis (20). Obviamente, tudo isso (com as deformações e falsificações de sempre) repercute no mundo todo, dando a impressão de que efetivamente estamos diante de um enfrentamento histórico de suma importância que, segundo alguns, seria entre globalização e antiglobalização, entre neoliberalismo e antineoliberalismo, e, segundo outros, entre capitalismo e anticapitalismo, entre a internacional do capital e a internacional da revolução.

Embora esses enfrentamentos sejam parte dos confrontos históricos de sempre, entre a preservação do mundo da propriedade privada e a luta proletária pela revolução social:

imaginar que agora está se impondo uma correlação de forças para impedir a política internacional atual do capital mundial é desconhecer totalmente o próprio funcionamento do capitalismo;
imaginar que há um verdadeiro enfrentamento entre projetos diferentes (neoliberalismo e antineoliberalismo; globalização e antiglobalização) e que a esquerda burguesa realmente tem um projeto capitalista diferente é também desconhecer a essência mesma da formação social burguesa e não entender a própria função desse conglomerado de frações capitalistas;
enfim, imaginar que o proletariado finalmente descobriu mediante o que se chama "ação direta", durante essas cimeiras e anticimeiras, a via atual do internacionalismo proletário, ou que temos entrado, com base nessas ações, como já dizem alguns grupos, num enfrentamento direto entre a internacional capitalista e a internacional revolucionária é não só desconhecer o funcionamento do capitalismo, mas desconhecer, deformar e falsificar o próprio programa da revolução, a estratégia revolucionária, e conduz inevitavelmente a fazer confusão desempenhando um papel centrista (impedir a ruptura necessária) no movimento proletário.
Explicamos os dois primeiros pontos de imediato. O último, que pertence muito mais ao desenvolvimento próprio do proletariado e à sua afirmação revolucionária, trataremos nos capítulos seguintes.

A política internacional que hoje se chama neoliberal ou o que se denomina globalização não tem alternativas válidas, a longo prazo, pois obedece às próprias leis do sistema que desde que existe é mundial, global e funciona fundamentalmente sobre a base da famosa mão invisível do mercado, isto é, a lei do valor. Contrariamente ao que se diz, isto não é "uma" política do capital entre muitas outras, é pelo contrário o funcionamento "natural" para o qual tende sempre o capital, a lei que em última instância se impõe. As diferentes políticas econômicas só podem limitar ou corrigir de forma muito parcial sua aplicação (na realidade, a da lei do valor) muito restrita no tempo e/ou no espaço. Os populismos de todo tipo (de Getúlio Vargas a Perón; de Cárdenas a Nasser), os chamados países socialistas, assim como o fascismo, o nazismo, o franquismo... foram as expressões mais duráveis nesse sentido. Todas essas tentativas históricas de desenvolver projetos diversos de desenvolvimento capitalista a longo prazo (limitando a aplicação da lei do valor, baseando-se no protecionismo) tiveram uma duração limitada, além da qual o fracasso era inevitável.

Da mesma maneira e pelas mesmas razões não se pode fazer "mais humano" um sistema que não o é. Tampouco é possível fazer um capitalismo que proteja a natureza ou um capitalismo sem guerras. O que se fez com a tomada de consciência burguesa da "ecologia", por exemplo, nunca foi o melhoramento da produção capitalista em geral para proteger a natureza, senão, pelo contrário, a transformação do "verde" e do "natural" em mercadoria. A busca constante da máxima rentabilidade coexiste com a crescente adaptação das empresas para vender qualquer coisa com imagem ecológica (21), o que obviamente intensifica a ditadura capitalista contra a natureza, ameaçando todas as espécies e, em particular, a espécie humana. Da mesma forma, não se pode pacificar o mundo capitalista - todas as políticas pacifistas do capital só servem unicamente para utilizar a paz como arma de guerra.

Hoje tudo isso fica cada vez mais difícil de esconder. Além do mais, a catástrofe real do capital é de tal magnitude que inclusive as margens de manobra que ele tinha no passado para realizar políticas econômicas um pouco diferentes se reduziu muito: o capitalismo tende hoje mundial e irreversivelmente a unificar sua política, a esquerda e a direita mostram cada vez mais que hoje só existe uma política capitalista possível (e não faltam declarações de esquerdistas que chegaram ao poder neste sentido!). Assim, os "antineoliberais e antiglobalização" de oposição, na medida em que são cooptados para participar nas decisões, se tornam inevitavelmente "neoliberais", "pró-globalização" e se sentem forçados a aplicar o contrário do que disseram. Não, não é que sejam apenas e voluntariamente cínicos e mentirosos, mas é verdade que o capital os força a realizar sua política muito mais do que esses esquerdistas poderiam imaginar antes. A capacidade de restringir a aplicação regional da lei do valor internacional se fez, com o próprio desenvolvimento do capital, cada vez menor, tanto no tempo quanto no espaço. Hoje seria inconcebível o funcionamento do capitalismo ultraprotecionista como funcionou, durante décadas, na Rússia, China, Albânia... e o regime capitalista cubano e os reacionários líderes castristas tem seus dias contados. O stalinismo, como modelo ultra-reacionário (no sentido de fechar as fronteiras para tentar se opor ao progresso no desenvolvimento das forças produtivas para o qual tende normal e internacionalmente o capital, segundo a lei do valor) de desenvolvimento do capital, não foi varrido da face da terra por uma questão de idéias democráticas ou por haver utilizado massivamente os campos de concentração (o capitalismo os empregou sempre!) mas sim pela inviabilidade de impedir a aplicação irrestrita da lei do valor eternamente. Com efeito, quanto maior for a defasagem entre, por um lado, o desenvolvimento das forças produtivas em escala mundial e a desvalorização internacional que isso provoca e, por outro, a restrição protecionista a tal desvalorização num espaço produtivo dado (ou um setor determinado), mais rapidamente ocorre em tal espaço a catástrofe e a implosão econômico-social do tipo que ocorreu no leste europeu.

Tudo isso permanece se acelerando com o desenvolvimento das contradições do capital e resulta cada vez mais difícil manter subsidiados economias ou setores inteiros. Do ponto de vista dos governantes locais, cuja missão é invariavelmente celebrar a melhor taxa de lucro para atrair capitais (política negociada sempre com os organismos de crédito internacionais, particularmente com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial) isto não só quer dizer aumentar a taxa de exploração ao máximo possível, mas além disso não taxar os setores rentáveis para (redistribuição de mais-valia) financiar os setores não rentáveis. É esse processo inevitável que explica a tendência à homogeneização da política burguesa a longo prazo. Por isso, embora os diferentes políticos burgueses ainda façam um discurso um pouco distinto (e cada vez menos!), quando de governar se trata todos terminam aplicando com maiores ou menores matizes a mesma política do Fundo Monetário Internacional. Essa é uma das razões que levam à suposta "traição" de todos os esquerdistas no governo, que terminam fazendo o que se considera "a política da direita", ou dos ecologistas que terminam patrocinando até o esforço de guerra nacional e internacional (e até da OTAN), e, em geral, a destruição da terra e da vida humana. Se fazem a política da direita, é porque do ponto de vista do capital, não há outra política (22) que a de ser rentável, que a de atrair capitais sobre a base da rentabilidade. Se continua havendo diferenças no discurso não é então por representar políticas econômicas diferentes, senão porque diante do proletariado, em determinadas ocasiões, só podem tornar aceitáveis as medidas de austeridade quando são apresentadas em nome da esquerda ou da ecologia. Por esta razão, nem sequer do ponto de vista capitalista se pode esperar nada extraordinariamente diferente desse conglomerado de frações capitalistas que no discurso se opõe à política do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Só constituem frações burguesas diferentes na forma como pretendem canalizar os proletários, que se encontram agredidos por todo progresso do capital, e por sentirem nostalgia de um mundo "menos agressivo e destrutivo", que, no entanto, se foi para nunca mais voltar (23). Expressam assim essa nostalgia imbecil da proteção da produção local sem o domínio das gigantescas empresas mundiais que não se preocupam com destruir tudo em nome do capital. Não é outro projeto senão a utópica lamentação de impotência da gestão local e "mais ecológica". Um volante da CNT espanhola de Barcelona, em 23 de setembro de 2000, terminava precisamente com esta palavra de ordem que expressa bem essa reivindicação ideológica, utópica e reacionária do conglomerado de frações burguesas que se definem "contra a globalização": "Apoia a economia local, ecológica e autogerida".

É claro que, além do mais, o desenvolvimento desses pseudoprojetos constitui a expressão ideológica de diversos interesses protecionistas de diferentes frações burguesas particulares e localistas, que, como tais, incentivam a luta (e as guerras) imperialista. Do que se trata não é então de realizar um capitalismo mais humano (apesar de ser isso que declaram), porque o capitalismo sempre foi desumano e o antagonismo entre capitalismo e humanidade tem necessariamente que se agravar, senão que buscam enquadrar o proletariado com essas utopias reacionárias para empurrá-lo a defender os interesses burgueses, e seguir a reboque de seus interesses locais, regionais, nacionalistas... e, por isso, não causa surpresa que em muitos países a extrema direita também se manifeste pela "antiglobalização". Seu verdadeiro projeto social não é portanto o que dizem, mas recredibilizar-se frente aos explorados para dirigir e canalizar a inevitável e sempre crescente raiva proletária, contra tudo o que se passa neste mundo, para a luta entre frações burguesas e para a guerra imperialista.

O papel do proletariado no palco das cimeiras e derivados: a questão da autonomia proletária

Todo o palco está montado para apresentar os protestos em Seattle, Davos, Praga... como a verdadeira alternativa ao mundo atual. Inclusive, além das frações abertamente socialdemocratas, esses encontros de cimeira, essas batalhas de rua, são considerados como a essência mesma da luta que se contraporia ao desenvolvimento atual do capitalismo, como a quintessência do internacionalismo proletário enfim descoberta. Concentremo-nos, portanto, neste capítulo, no papel que se atribui atualmente à ação do proletariado nessas cimeiras, para determinar nossos interesses e definir a política proletária frente a tais armações.

Para aprofundar a questão é indispensável se perguntar: qual é a diferença entre esse tipo de expressão da luta de nossa classe contra as cimeiras e anticimeiras e as lutas proletárias que na atualidade se caracterizam, como dissemos, por seus saltos de qualidade fulgurantes (ainda que os mesmos se produzam de forma esporádica e sem continuidade) concretizados em lutas sumamente violentas, que atacam todo o espectro político e que se desenvolvem se opondo a toda mediação, como as que ocorreram nas últimas décadas por exemplo, na Romênia, Venezuela, Albânia, Argélia... e, mais recentemente, na Indonésia, Equador...? Qual é a interação entre os dois tipos de luta ou formas de expressão proletárias?

A título de exemplo, e para facilitar a compreensão geral, comparemos as lutas que ocorreram em Seattle com as que se produziram em princípios de 2000 no Equador (24). Em ambos os casos, frações do proletariado se chocam contra o capital, milhares de proletários enfrentam diferentes estruturas nacionais e internacionais do estado capitalista mundial. Em ambos os casos se chocam contra os corpos repressivos que protegem a propriedade privada e os centros de decisão do capital. Em ambos os casos enfrentam tanto os dirigentes locais do capital quanto os dirigentes internacionais deste.

Sigamos agora as diferenças (25). Ainda que façamos esta comparação para combater concepções mais sutis, comecemos por colocar em evidência os preconceitos mais grosseiros, derivados da ideologia dominante socialdemocrata. Segundo a visão da ATTAC e companhia, as lutas em cada país não podem ir muito longe porque o centro de decisões do capital, ou melhor dizendo, do capital financeiro, são o Banco Mundial e o FMI, e nessas cimeiras se decide o destino do planeta. É óbvio que eles não reconhecem que o movimento proletário em Seattle é o mesmo que no Equador, mas se o aceitassem diriam que o de Seattle é internacional e decisivo, e o outro, local, indígena, economicista e sem maior importância. Concretamente diriam que graças aos protestos em Davos, Seattle, Washington... onde se enfrenta o centro do sistema, fica cada vez mais difícil para o capitalismo impor as medidas preconizadas pelo banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

Respondemos: na luta no Equador, os proletários enfrentam não só a burguesia local, mas também a burguesia internacional. O proletariado com sua ação se contrapôs a todos os planos de austeridade patrocinados pelas famosas instituições Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial. A generalização desse movimento imporia uma correlação internacional de forças que poria em questão todo aumento da taxa de exploração e com seu desenvolvimento qualitativo, a própria exploração. Em troca, o movimento proletário contra as cimeiras e anticimeiras, o máximo a que consegue aspirar, contra os planos daqueles organismos, é impedir que tais reuniões se realizem, aterrorizar os congressistas ou, em geral, quem representa o capitalismo mundial em sua tomada de decisões, mas não se poderá impedir que as decisões sejam tomadas de qualquer forma; com segurança, com menos estardalhaço, a portas fechadas, em contatos interburgueses secretos... Por mais limitada geograficamente que pareça, a outra ação é capaz de impor uma relação de forças (talvez não seja o caso do Equador mas sim de muitos outros exemplos históricos) internacional contra o capital que bloqueie todas as medidas de ataque contra o proletariado (como aconteceu recentemente na Bolívia na questão da água, que o capital internacional e nacional quis impor). Em troca, a ação de Seattle, por mais geral e espetacular que seja, é difícil que se traduza numa relação de forças que, por exemplo, impeça um aumento da taxa de exploração.

Nos últimos dias foi suspensa a reunião do Banco Mundial prevista em Barcelona para o mês próximo (junho de 2001) e nossos inimigos falarão em triunfo. Para nós, mesmo que se chegasse a varrer essas conferências da Terra, ou se chegasse a destruir todos os edifícios de reunião dos organismos internacionais, não se poderia assim impedir que as medidas continuassem se aplicando país por país. É evidente que é preciso deixar isso claro contra o mito inverso. Mas isso não desmerece em absoluto a luta dos proletários que, quando são previstas conferências e anticonferências, lutam contra elas e inspiram um pânico cada vez maior nos congressistas, milicos, governantes e socialdemocratas em toda parte. Ainda mais, como iremos vendo no que se segue, estes setores poderiam chegar a ser decisivos na generalização da luta, na consciência e na direção internacional.

Continuemos, então, com a comparação. No Equador, esse movimento é o resultado de um conjunto de lutas parciais de diferentes setores proletários que defendem seus interesses e enfrentam "seus próprios" burgueses, "seus próprios" sindicalistas, "seus próprios" partidos socialdemocratas... e que, no início, exigem diferentes reivindicações e/ou medidas, até que o descontentamento é tão generalizado que a luta proletária toma a rua, todas as exigências particulares se generalizam (26) e os centros de decisão do estado nesse país são atacados: parlamento, poder judicial, presidência, locais dos partidos políticos...

Em Seattle, o movimento está constituído por quem quer atacar o que considera os centros decisórios do capital e do estado mundial. Isso é válido tanto para os proletários que marcham como cordeirinhos nos desfiles socialdemocratas como para os que os ultrapassam e que enfrentam também a socialdemocracia e se organizam fora e muitas vezes contra ela. O ponto de partida dos que vão a Seattle é aparentemente mais global, mais politizado (27) e mais determinado pela vontade política do que pelo interesse imediato, do que pelo interesse social. Os que vão partem de suas posições, de suas idéias revolucionárias, ainda que, é claro, as mesmas sejam também, por sua vez, o resultado da consciência dos interesses imediatos generalizados do proletariado.

O movimento do Equador, como produto social dos interesses proletários que vão se generalizando, ao se contrapor às expressões do capital e do estado que encontra a sua frente, contém, representa e assume diretamente os interesses do proletariado internacional contra o capital e o estado mundiais. A luta conseqüente por seus interesses leva os proletários a uma contraposição prática às tentativas de enquadramento socialdemocrata, independentemente das idéias dos protagonistas. No Equador, o movimento proletário é impulsionado, por seus interesses surgidos e desenvolvidos nesse movimento, à ruptura com todo tipo de enquadramento socialdemocrata. Em Seattle, pelo contrário, só as posições políticas e a clareza programática permitem desdobrar e aprofundar a ruptura com a socialdemocrata.

No Equador, o proletariado só pode defender os interesses pelos quais desencadeou o movimento rompendo o enquadramento socialdemocrata, assumindo sua autonomia de classe; neste sentido está forçado a fazê-lo. Quando decide ir ao que considera o centro de decisões do capital, a Quito, é porque não agüenta mais, porque quer arrebentar os que estão o esfomeando. Já é um ataque! Porque então todos aconselham a calma e o "retorno a seus lares". Não só ninguém o convocou a Quito, como também não há nenhuma cimeira ou anticimeira para "acolhê-lo". Só o esperam as forças repressivas; farão o possível para que ele não chegue. E apesar disso, o proletariado impõe sua determinação. O enquadramento sindical e da esquerda burguesa evidentemente que vai atrás, para não perder o trem, mas segue o movimento para enquadrá-lo.

Em Seattle, pelo contrário, a razão inicial são as cimeiras e elas determinam os lugares, as datas. Não é a organização da força proletária que decide ir a Seattle, mas são as convocatórias ao proletariado para desfilar como rebanho que o convidam a ir. E só ao lado e, em alguma medida fora e contra, vão grupos de proletários pelejar também contra esse enquadramento.

É óbvio que estes é que não são convocados e que são temidos. É contra estes que as forças repressivas se organizam. É contra estes que são feitos controles nas fronteiras. Estas frações proletárias em ruptura vão a Seattle por suas posições programáticas, vão para ressaltar e desenvolver essa ruptura com todo capital. Só a percepção dos interesses do proletariado internacional transformados em consciência de classe e em posições (e, em todo caso, filtrados pela ideologia burguesa, ainda que se lute contra) permitirá se contrapor à socialdemocracia e desenvolver a autonomia proletária. Mais ainda, a maioria dos proletários que vão a Seattle desenvolver a luta proletária pertence a alguma organização, a alguma rede (como está na moda dizer hoje), algum movimento, algum grupo, ou são considerados por estes como formando parte de sua periferia organizada.

É uma diferença importante. A ruptura no Equador está determinada pelo desenvolvimento inevitável dos interesses antagônicos; em Seattle, depende quase exclusivamente dos programas e bandeiras dos grupos que atuam. Isso faz com que nos cenários estilo Seattle adquira uma importância ainda maior a discussão política com os grupos e organizações participantes, faz com que a crítica programática das organizações que pretendem impulsionar e desenvolver a ruptura proletária tenha uma importância decisiva, assim como também a denúncia de toda ideologia centrista, que se caracteriza por impedir a ruptura e/ou por querer, em nome dos limites da consciência proletária, empurrar para fazer um papel de ala extrema da socialdemocracia, representando o papel de tornar mais violento o protesto da esquerda burguesa.

Esta crítica companheira que realizamos é parte do próprio movimento de ruptura que se desenvolve na atualidade tanto em Seattle quanto no Equador, ou em qualquer parte do globo. Apesar das diferenças assinaladas num caso ou noutro, trata-se de um mesmo movimento do qual assumimos sua prática, de nosso movimento, de nossa luta mundial contra todo o capital. Mas quando, no interior do mesmo, fazemos um balanço crítico das forças e debilidades de um movimento como o do Equador, sentimos que o mais importante é sua dinâmica prática e a análise das bandeiras; os grupos políticos e as posições consideramos em segundo plano. Em Seattle, em troca, como o ponto de partida do agrupamento de forças são as posições políticas, a análise e a crítica das mesmas devem ser postas em primeira lugar, sem esquecer, é claro, que também aí o que está em jogo é a luta autônoma do proletariado internacional contra a sociedade burguesa, contra todas as reciclagens da esquerda para impedi-lo.

Nos subtítulos seguintes analisaremos como se coloca nesses cenários a luta pela autonomia do proletariado, dando prioridade às posições políticas dos protagonistas com relação à autonomia física de cada manifestação de rua.

Entretanto, antes de passar a essa análise nos parece imperioso deixar claro que também a autonomia nas ruas é sumamente importante e que, por isso, a palavra de ordem "fora e contra as cimeiras e anticimeiras" e a crítica dos proletários aos que se fazem marchar como cordeirinhos é fundamental. O Grupo Comunista Internacionalista, através de vários panfletos e outras ações de propaganda, expressou claramente esta posição em tais lutas.

Também é fundamental (e assumimos na medida de nossas forças) criticar na prática as colunas radicais das manifestações e impulsioná-las a não participar nos cortejos socialdemocratas nem sequer "para ultrapassar a manifestação" ou "para radicalizá-la". Mas no que se segue, pelo fato de que a ruptura proletária nessas ocasiões só pode se operar pela ruptura política, pelo avanço programático e organizativo das frações mais radicais é que, como dissemos, nos concentramos nas posições programáticas expressas em tais eventos.



A violência de classe. Revolucionários ou ativistas e oportunistas?

Entremos mais no terreno da ruptura classista. Deixemos agora os cordeirinhos e nos concentremos nas expressões proletárias que mais nos interessam, os militantes ou grupos militantes mais próximos de nós que vão a esses eventos decididos a enfrentar o capital e o estado, que assumem como decisiva a luta revolucionária. É sem dúvida um salto de qualidade considerar-se revolucionário; assumir de forma voluntária, organizada e consciente uma atividade dirigida à destruição do capitalismo e do estado. A respeito, devemos assinalar na comparação efetuada anteriormente, que, quando o movimento do Equador declina, só ficam, no melhor dos casos, alguns pequenos grupos de militantes revolucionários que tratam de extrair as lições e entrar em contato com outros revolucionários através do mundo e que, em Seattle, pelo contrário, já existem minorias que se organizam permanentemente e que darão constância a sua organização, independente de determinada data, o que é uma afirmação importantíssima da tendência do proletariado a se organizar em força e uma afirmação histórica da militância revolucionária. Nós somos parte desse mesmo processo e, dentro do mesmo, consideramos indispensável a crítica companheira.

Mas não se é revolucionário em função da vontade, senão da prática social, do papel prático que se desempenha, do que se defende na prática. E isso é válido tanto para os militantes como para as organizações políticas. É a prática social, o projeto social real, que situa um grupo, um militante, num ou noutro lado da barricada.

A história está cheia de exemplos de organizações que em nome da revolução defenderam a contra-revolução, de estruturas políticas nacionais e internacionais que em nome do socialismo, do comunismo e/ou do anarquismo defenderam exatamente o contrário: o capitalismo e seu estado. A base de todos os oportunismos, de todas as renúncias ao programa da revolução, o determinante decisivo da traição se encontra sempre na ideologia do mal menor, na política "realista", no "não assustemos os proletários com questões radicais", no "as massas não compreenderão", no etapismo, na dissolução do programa revolucionário para "ir às massas", enfim, na substituição do programa comunista por um conjunto de reformas parciais ou programas de transição, que conduzem sempre à defesa do capital. A contra-revolução não tem infinitas maneiras de se impor, suas formas são em última instância sempre as mesmas, por isso é tão importante extrair as lições do passado das lutas revolucionárias e da imposição da contra-revolução.

Nas organizações e grupos presentes em Davos, Seattle, Praga... tanto pelos panfletos, volantes e publicações, como pelas discussões que tivemos, a primeira coisa que constatamos é que o principal elemento unificador e demarcatório, entre os que se dizem revolucionários, é assumir e reivindicar a violência de classe e, obviamente, a violência organizada de minorias da classe (28). Contra toda ideologia da "não violência" tão comum nos cortejos oficiais, que favorecem enormemente o trabalho policial até o ponto de permitir aos agentes da ordem fichar, espancar, lançar gases e humilhar milhares de seres humanos sem que estes possam reagir, é totalmente lógico e inestimavelmente importante que os grupos que se reivindicam da revolução assumam e chamem à violência revolucionária. Trata-se também de um invariante necessário, de um elemento básico de ruptura com a ideologia socialdemocrata e que, em escala internacional, está afirmando objetivamente a tendência proletária para a ruptura com todo teoricismo e ideólogos de salão.

Este reconhecimento social da violência como algo elementar, como uma necessidade humana indispensável contra a sociedade do capital, volta a se por na ordem do dia em todos os movimentos do proletariado. Há uma evidente tomada de consciência internacional da necessidade da violência minoritária de classe contra a ideologia pacifista socialdemocrata, o que é, e será, decisivo na atual tendência do proletariado a reemergir como força em escala mundial. Sem dúvida, essa tendência atual se deve à intensificação de todas as contradições do capital, mas, também, à ação e a denúncia que as minorias revolucionárias levamos adiante durante estas últimas décadas. E isso queremos deixar bem claro, porque é um ponto forte e muito válido do movimento atual e de suas expressões de vanguarda, se encontrem estas em Seattle, Equador, Paris, Moscou...

Hoje, como ontem, todo grupo que se oponha à violência das minorias proletárias em nome do anti-substitucionismo, do antiterrorismo, da mítica "violência de classe em seu conjunto" constitui de fato uma parte da socialdemocracia e do estado burguês.

No entanto, esse elemento não é suficiente para uma verdadeira ruptura. A violência por si só não constitui uma verdadeira fronteira demarcatória entre reforma e revolução, como o esquerdismo burguês nos quer fazer crer. Entre a reforma (que também utiliza a violência para defender o sistema) e a revolução há um verdadeira abismo de classe, de projeto social, de programa. O proletariado necessita se organizar praticamente fora e contra a socialdemocracia, delimitar o máximo possível os campos. A afirmação prática do proletariado como classe independente implica, ao mesmo tempo, a delimitação teórica, de métodos e objetivos, com relação às forças burguesas. É absolutamente insuficiente, e desenvolve a confusão, crer que essa demarcação possa se realizar exclusivamente com base na oposição entre violência e não-violência.

Mas, no movimento presente nesses eventos, constatamos um grande desprezo pela teoria revolucionária, pelo programa da destruição do capitalismo, pela luta por acordos programáticos precisos, pela questão do partido, pela questão do poder. Pelo contrário, na sombra da socialdemocracia e como sua expressão violenta se desenvolveu toda uma ideologia que, em nome da liberdade ou do "libertário", da "ação direta" e da "prática revolucionária" nega e tira a importância de tudo isso. Essa concepção se baseia na "atividade", na prática, na união baseada na "luta na rua". Nossa posição é a de crítica impiedosa de tal concepção, que sempre conduziu ao oportunismo.

Em primeiro lugar é preciso dizer claramente que a posição de negar a importância da teoria revolucionária, da discussão programática, é, evidentemente, e, ainda que incomode seus defensores reconhecê-la, uma teoria "revolucionária" bem precisa. A não delimitação do programa revolucionário do proletariado, conjuntamente à apologia da "ação direta" no imediato e do libertário no plano político é um programa totalmente concreto, que, por outro lado, tampouco é novo: não são os primeiros a declarar "o objetivo não é importante, o movimento é tudo". Os oportunistas do século XIX e princípios do XX, a começar pelo próprio Bernstein, basearam sua concepção em tal máxima.

Desnecessário é dizer que esse movimentismo, esse empirismo, também se considera estrategicamente forte por atrair as massas à ação sem afugentá-las com questões como a da necessária ditadura do proletariado para abolir o trabalho assalariado. Do ponto de vista do proletariado, essa ausência de direção, de programa e de perspectiva, de organização permanente e de reconhecimento da necessidade de se centralizar é uma grande debilidade histórica, que hoje, mais uma vez, permite que continuem nos manobrando. Do ponto de vista dos grupos que desenvolvem, sustentam e impulsionam essa prática empirista e antiprogramática é uma enorme porta para todos os oportunismos, para o frentismo, para o mal menor e, em geral, para a passagem para o campo da socialdemocracia, para o campo da contra-revolução.

Precisamente, o que mais está faltando ao movimento hoje existente no mundo, dadas as características das lutas proletárias na atualidade (tanto as de um tipo como as de outro) é a perspectiva, a continuidade, a direção revolucionária, a preparação insurrecional, ou seja, afirmar-se como força que sabe aonde vai, que luta por se dar uma centralização e por se dotar de uma direção. O proletariado só se sente uma classe quando reaparece violenta e fulgurantemente nessas grandes lutas e só no nível em que as mesmas se desenvolvem, que, até agora, é limitado geograficamente. Essa é a grande debilidade atual de nossa classe, que assim não chega a se reconhecer em cada luta no outro extremo do planeta, em cada uma das quais, o movimento parece partir do zero, sem nenhum acúmulo de sua experiência histórica. Ao não se sentir classe mundial, nem reconhecer seu próprio passado, não pode tampouco afirmar (nem conhecer) o programa revolucionário de destruição do capitalismo. Por isso, todas as ideologias libertárias, praticistas, movimentistas, que opõem a "ação direta" ao programa revolucionário são hoje mais nefastas do que nunca e fazem o mesmo papel dos oportunistas de sempre: impedem a ruptura revolucionária com a socialdemocracia.

O fato de que esses grupos e organizações se considerem revolucionários, lutando contra o capital e o estado, não os situa no campo da revolução se sua prática real é precisamente a da defesa dessa ideologia empirista, antiteoria revolucionária, que vai invariavelmente acoplada à prática ativista.

A maioria desses militantes que se dizem revolucionários consideram que a atividade central da revolução é a de agitar, ativar, de suscitar a luta do proletariado, realizar permanentemente campanhas contra determinada empresa multinacional, contra determinada instituição do capital e, obviamente, contra as cimeiras burguesas. O que é criticável não é, do nosso ponto de vista, que tais ativistas se considerem profissionais da revolução, que se organizem e que busquem por todas as forças ao seu alcance desenvolvê-la, mas que considerem que a revolução seria o resultado da generalização dessa ação, desse ativismo (29) e não das lutas históricas de uma classe social. Essa ideologia da especificidade da ação agitativa, do recrutamento para ela, da ilusão de destruir o capitalismo pela generalização do ativismo (há quem acredite que se triunfará se continuar agregando centenas ou milhares de ônibus para ir à próxima reunião de cimeira!) põe em evidência o desconhecimento e o desprezo objetivo pelo movimento histórico a que pertencem, pela relação entre as lutas levadas por eles e outras lutas proletárias atuais ou as lutas proletárias do passado; isto é, sobre o que é o programa revolucionário. O ativismo fecha assim os olhos para a amplitude histórica da luta comunista contra o capital, defende "a atividade" contra a teoria revolucionária, a "ação direta" contra a necessidade de se organizar em força política, em partido revolucionário, em força centralizada para abolir a ordem social capitalista. Inclusive quando fala de organização, o ativismo não fala nunca em constituição em força mundial, de desenvolver a permanência e a centralização, de partido mundial, mas, pelo contrário, de redes informais, de unificação pela atividade, de entrar em acordo para determinada campanha. Reiterando a velha separação socialdemocrata entre prática e teoria, desprezando esta última e utilizando como argumento dizer que atua em nome da massa, da vontade dos que lutam, da democracia dos operários, o ativismo conduz sempre à degeneração dos grupos políticos. Em nome do imediato, terminam correndo atrás das massas e sacrificando o essencial do programa.

Como dizia Amadeo Bordiga numa de suas melhores épocas: "Um desvio banal, que se encontra na origem dos piores episódios da degeneração do movimento, é subestimar a clareza e a continuidade dos princípios (30) e empurrar o "ser político" ao fundir-se na atividade do movimento que indicará as vias a tomar. É não parar para decidir, referindo-se aos textos, passando-os pelo crivo das experiências anteriores, mas para continuar sem paradas o vivo da ação... Nunca houve um traidor e vendido à classe dominante que tenha abandonado o movimento sem haver argumentado: primeiro, que era o melhor e mais ativo defensor "prático" dos interesses operários; segundo, que atuou assim devido à vontade manifesta da massa de seus discípulos..." (31)

Internacional revolucionária? Mentira ativista!

O ativismo se reflete na concepção segundo a qual a internacional revolucionária se constitui com base na ação imediata. Hoje, diferentes grupos que questionam a posição socialdemocrata clássica se fazem presentes nos cenários das cimeiras e anticimeiras e, em toda sua propaganda, sustentam que estamos diante de um confronto entre a internacional capitalista e a internacional revolucionária. por exemplo, o secretário Internacional da FSA-AIT chega a intitular seu informe sobre Praga como A internacional Capitalista contra a Internacional Anarco-sindicalista.

Para nós, por mais fortes que tenham sido alguns enfrentamentos de nossa classe contra as cimeiras e contracimeiras, por mais violentas que tenham sido as ultrapassagens, os confrontos com a polícia ou a quebra de vidraças, nos parece totalmente impróprio falar de internacional revolucionária, porque uma internacional revolucionária deve necessariamente ser muito mais do que isso, não só em termos quantitativos ou de violência expressa, mas em termos qualitativos. Vangloriar-se dessa ação do proletariado e identificá-la com uma internacional revolucionária é uma grosseira distorção dos fatos e do que deve ser uma internacional revolucionária. E isso por várias razões.

A primeira delas é que os níveis de autonomia do proletariado, apesar dessa ação na rua, são muito relativos, já que a própria ação na rua não está determinada pelo próprio proletariado, enquanto os lugares, as datas, as modalidades... são impostas pelo inimigo de classe (32). O lugar e as datas são decididos nas cimeiras e/ou cimeiras paralelas, e apesar de ser parte de nosso protesto buscar impedir sua realização ou nos manifestar contra as mesmas, não há autonomia de ação se dependemos de suas cimeiras para nos manifestar.

Justamente, muitos grupos militantes ou companheiros próximos extraem de Seattle e Praga a lição de que "não é preciso se meter na boca do lobo", "nós é que deveríamos decidir onde, quando e como nos manifestar" (33). De fato, um dos pontos mais fortes entre as minorias que impulsionam a ação violenta é que cada vez se toma maior consciência disso e que diferentes organizações e grupos manifestam a necessidade de se organizar independentemente dos cenários montados: existem diversas associações, redes e assembléias que começam a se dar esses objetivos. Nós pensamos que justamente nessa crítica e tendência a se organizar de maneira diferente está se forjando uma comunidade de luta que poderá ser decisiva no futuro para ir marcando, com sua prática, a direção de que necessita o proletariado.

Mas nesses cenários, é necessário dizer claramente, os níveis de autonomia do proletariado, mesmo se desenvolve a violência de classe, são débeis, muito débeis. Isso facilita enormemente o trabalho policial de preparação, conhecimento do terreno, tanto para a "batalha" quanto para filmagens, fichamento e identificação dos elementos mais perigosos.

Mais ainda, devemos compreender que a burguesia teve um êxito importante em tais operações. Com efeito, constatamos uma quase perfeita divisão do trabalho na canalização, dispersão e repressão do proletariado: se convoca a maior quantidade de gente possível, a maioria passeia como carneirinhos atrás dos clássicos grupos pacifistas e se cuida para que os que querem ir mais longe formem cortejos separados ou de outra cor com o objetivo de se expressar violentamente e quebrar vidraças, o que, obviamente, facilita a ação da polícia. Sonífero para a maioria, porrada e fichamento para os que querem o enfrentamento constituem uma divisão idônea do trabalho burguês contra o proletariado, que nossos inimigos sempre utilizaram. É como se peneirassem o movimento, selecionando e identificando perfeitamente os que devem ser bem fichados, os que devem ser presos.

Inclusive a ideologia que predomina em muitos desses grupos ativistas facilita esta divisão do trabalho. Com efeito, o fato de que não se definem fora e contra os cortejos oficiais de protesto, mas muitos aceitem constituir outras colunas nos mesmos cortejos, contribui para o trabalho realizado pelo estado. Mais ainda, em alguns casos, quem aparece na cabeça das ultrapassagens na rua não é outra coisa senão as "seções jovens" dos mesmos grupos ou as frações esquerdistas da mesma socialdemocracia (maoístas, trotskistas, guerrilheiristas...), cuja ação não é nunca contra a socialdemocracia, contra os planos de humanizar o capitalismo, mas de "radicalizar" (34) esses planos.

Outra coisa muito diferente aconteceria se os setores mais decididos do proletariado atuassem para impedir essa divisão do trabalho; se atuassem recusando essa separação entre quem vai para desfilar como cordeiro e quem vai para "quebrar", organizando a violência para arrebentar antes de tudo o próprio cortejo oficial de protesto, e impulsionar assim o conjunto ao protesto violento, para enfrentar não apenas as polícias oficiais, mas as polícias sindicais e de esquerda que asseguram junto com as outras a divisão necessária do trabalho e o terrorismo de estado.

Mas nos dirão que não existe uma correlação de forças para o confronto com a burguesia de esquerda, que as forças de choque da esquerda e as polícias sindicais ainda podem assegurar a ordem pacífica de sua manifestação; mas isso confirma uma vez mais a falta de ação realmente autônoma.

Mais ainda, isso mostra que a ideologia que domina nesse meio é a do mal menor, que faz com que a organização da violência proletária não se expresse nunca abertamente contra a socialdemocracia e as anticimeiras, mas contra a direita e suas cimeiras oficiais, que se constitua ao lado da socialdemocracia (como se assim o proletariado pudesse conquistar sua autonomia!) e se chocar não contra esta (que no entrevero fica muito bem parada apesar das críticas verbais que a acusam só de "pacifismo e outros desvios"), mas contra o escudo de toda burguesia: a polícia oficial (35).

Tudo isso é típico do esquerdismo burguês para desviar o proletariado de sua crítica da sociedade. Uma direção revolucionária deve lutar precisamente pelo contrário, para impedir o êxito da divisão do trabalho que faz a burguesia entre discursos soníferos e porrada e fichamento. Muito mais importante que enfrentar policiais preparados e que estão esperando, seria atacar os socialdemocratas menos preparados e que ainda não esperam, assim como atacar as polícias quando não estão nos esperando, quando decidimos nós. Para o proletariado, é nefasto marchar ao lado da socialdemocracia ou em colunas com tipos diferentes mas junto dela, como para radicalizar suas manifestações. É preciso se organizar fora e contra esses passeios socialdemocratas, se constituir em força para impedi-los, também eles, de realizar seus foros porto alegres. Seria decisivo estruturar a força proletária, decidir nossos próprios objetivos e não considerar, como a ATTAC, o Fórum de Porto Alegre e Tutti quanti, que o inimigo é o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.

Lutar com os mesmos objetivos da socialdemocracia, mas de forma mais violenta e radical, é cair no mal menor e aceitar o princípio do frentismo. Trata-se do mesmo princípio que, em nome do antifascismo, levou marxistas leninistas, anarquistas sindicalistas e trotskistas a se aliarem com o estado burguês contra a revolução (primeiro em 1936 e 1937 na Espanha, e depois em todo mundo).

Até agora só se fala em impedir pela violência as reuniões do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial..., mas não da ATTAC, não da Internacional Socialista, não dos Fóruns Sociais... o que mostra às claras a debilidade de nossa classe e, sobretudo, o predomínio do centrismo, inclusive nas manifestações mais radicais do proletariado.

Nessas manifestações conjuntas com a socialdemocracia contra os mesmos inimigos dela, apesar das colunas e tipos diferentes, ainda se está no início da autonomia de classe. O proletariado, para se autonomizar, deve romper também com os (autoproclamados) "autônomos" que o incentivam a permanecer nos cortejos fundamentalmente socialdemocrata e ir às mesmas missas cidadãs que os socialdemocratas organizam (mesmo que seja para radicalizá-las) e que, portanto, impedem uma verdadeira autonomia de classe.

Guerrilha urbana? Insurreição?

Diz-se também que esse tipo de enfrentamento é uma espécie de "guerrilha urbana, insurreição ou prática insurrecional", concepção que pode ser muito interessante quando realmente a mesma se organiza com bases próprias, não as que predominam na atualidade. A verdadeira luta revolucionária insurrecional não pode se basear em ir aonde estão nos esperando para nos dar porrada, não pode consistir em enfrentar com muito menos meios um inimigo muito mais preparado, potente e que, além do mais, está nos esperando. A burguesia e os chefes da repressão nos enviam para enfrentar a tropa mercenária melhor preparada e a utilizam de escudo, enquanto ficam muito bem preservados atrás; o que mais poderiam desejar que o fato de que nossa força se estraçalhe contra seu escudo protetor e que eles fiquem intactos?!

Mais ainda, as leis da insurreição se baseiam no contrário de tudo isso: na concentração de forças proletárias contra um inimigo que não espera nosso ataque; escolher o lugar e o momento em função de nossos objetivos e atacar onde e quando menos nos esperam; evitar o combate militar quando o inimigo é superior; fazer acreditarem numa data e atacar antes, quando ainda não esperam, ou depois, quando estão cansados de esperar; evitar a resistência em pontos fixos, utilizar a dispersão diante de um inimigo que avança e a concentração só para o ataque onde ninguém espera; atacar os quartéis e preparação da repressão antes que tal aquartelamento e organização da tropa possa obedecer; atacar os capitalistas, governantes e chefes da repressão em suas próprias casas; impedi-los de dirigir as operações terroristas da repressão, seja prendendo-os, cercando-os ou bloqueando as vias de acesso para a direção das tropas...

Mais ainda, o interesse da insurreição não é enfrentar e destruir os policiais em geral (ainda que obviamente deva ser implacável com todo agente da ordem conseqüente!), mas destruir a coerência do corpo da repressão e o que atualmente se patrocina; pelo contrário, confrontar a força que a burguesia usa de escudo favorece esse mesmo espírito de corpo.

Por isso, merece toda nossa crítica essa concepção "guerrilheirista" que está na moda. Porque é uma caricatura, pois incentiva à luta aparato contra aparato, que sempre favorece o estado.

Pareceria que a "direção das operações insurrecionais" quer, na falta de perspectiva revolucionária, se vangloriar dos policiais feridos e a quantidade de feridos e fichados que ficam em nossas filas. Não faltam relatos de esquerdistas burgueses na Internet ou vídeos que circulam, onde se somam feridos e se reproduzem imagens de confrontos espetaculares, fazendo crer que isso fará avançar a revolução social. Ver, por exemplo, as feiras de troca de imagens de "ações" e "revoltas" na Internet, como por exemplo, o Indymedia, onde os ativistas asseguram benevolamente um trabalho que só pode servir ao espetáculo e à... polícia.

A luta revolucionária terá feridos, presos e mortos proletários, mas nosso interesse é que isso ocorra o menos possível. Estamos cansados de tantas vítimas! Todos os exemplos históricos mostram que quando uma insurreição proletária se desenvolve não há muitas vítimas, que quando se ataca os chefes da repressão e o estado burguês, o número de companheiros caídos é muito reduzido e que, pelo contrário, o maior número de vítimas se produz sempre, quando nos chamam para resistir ou manifestar contra a potência repressiva concentrada do estado.

Falta de programa revolucionário, espetáculo da violência

Ligado a tudo isso está, mais uma vez, a falta de programa e perspectiva que existe em tais confrontos; a falta de uma crítica profunda e real da sociedade burguesa; a falta de uma estratégia de liquidação da sociedade capitalista. Sem tudo isso, falar de internacional da revolução contra a internacional do capital, como muitos fazem, é falsificar o próprio conteúdo do que é uma internacional revolucionária. De que internacional revolucionária nos falam? Da coluna de tal ou qual cor na mesmíssima manifestação socialdemocrata! E qual é a diferença entre as colunas? Que algumas enfrentam violentamente monstros FMI e BM?!

O secretário da FSA-AIT não tem escrúpulos ao nos dizer que eles eram o bloco azul (blue) que com a ajuda da televisão deveria mostrar (36) aos pobres do mundo que havia na Europa quem lutava contra o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial: "Aquilo foi uma avalanche desencadeada pela guerra de classes, sabíamos que aquele não era o nosso método de trabalho, mas todos sabíamos que devíamos mostrar aos pobres e moribundos proletários do mundo que aqui, na Europa, há pessoas valentes que não só moralizam e criticam, mas pessoas que não temem enfrentar fisicamente o FMI e o BM, que estão determinadas a impedir seu congresso, que arriscam sua vida e sua saúde para arrebentar com o macabro acontecimento dos engenheiros da fome e a destruição ecológica".

Veja-se até que ponto essa violência está sindicalmente enquadrada para que não ultrapasse e pense atacar, por exemplo, a esquerda burguesa, o que, evidentemente, não se pode garantir quando a manifestação proletária não está enquadrada pelos sindicalistas (chamem-se libertários ou anarco-sindicalistas), como a que se dá, por exemplo, no momento em que escrevemos este artigo, em Cabila, Argélia, onde toda imprensa reconhece que os revoltosos atacam igualmente os partidos oficiais e os partidos da oposição (37). Veja-se a pretensiosa diferença estabelecida entre os especialistas da mudança social, os anarco-sindicalistas e os proletários do mundo. Veja-se a distinção euro-racista entre o decisivo que acontece na Europa e a miséria em outra parte. Como se os proletários do mundo fossem moribundos que esperam o que os senhores sindicalistas europeus lhes mostrem o caminho! Que falsificação gigantesca do movimento atual do proletariado!

Wohlmuth acrescenta: "Mas a rua em luta era algo muito diferente do usual. Pouco a pouco, conhecíamos todos aqueles que com grande valentia haviam carregado contra os policiais, sabíamos que, nesse momento, as forças do capital e do estado não eram atacadas por punks, arruaceiros ou adolescentes enfurecidos, em suma, por delinqüentes de rua sem um sentido político, em meio aos grupos atacantes víamos por toda parte bandeiras vermelhas e negras e escudos e máscaras antigás com os distintivos AIT-IWA".

E, para que fique bem claro que não se trata de uma ultrapassagem genérica, da destruição da propriedade privada, como a que faz precisamente o proletariado contra todas as forças burguesas, mas só contra a direita, acrescenta quase em tom de desculpa: "Este não é nosso estilo de trabalho; [...] mas frente ao fato de que 10000 políticos e economistas estão no Congresso no centro de Praga negociando e planificando a miséria e a morte de milhares de pessoas, isso era talvez a única coisa que podíamos fazer. São os políticos e os capitalistas que devem se envergonhar pelos danos materiais e pessoais, não os valentes revolucionários do bloco rubro-negro que demostraram na rua Lumir que Seattle já não é válido como símbolo; eis aqui o novo: Praga!"

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