quinta-feira, 30 de agosto de 2012

SOBRE A AUTONOMIA OPERÁRIA EM BARCELONA II




“Apontamentos sobre a Autonomia operária”, Etcétera, 1979

O objetivo destas notas é situar no que se revestiu o conceito de autonomia operária, durante estes últimos anos em Barcelona, e no que se reveste hoje. Para isso, partiremos de uma distinção, um tanto fictícia, às vezes tênue, às vezes clara, entre a ação autônoma da classe operária e os grupos militantes que se dizem do movimento autônomo, ou artífices de um discurso sobre a autonomia e de uma prática autônoma relativamente aos partidos e sindicatos. Esta distinção é clara quando esses grupos não são uma fração da classe operária, a mais radical, mas simplesmente núcleos de ações esporádicas, predominando as tarefas de publicação.

Reagindo à prática reformista e burocrática do CC.OO e ao próprio “leninismo”, se afirmam, nos anos 70, vários grupos, com ou sem siglas, que tentam impulsionar a auto-organização da classe operária em torno de propostas anticapitalistas. Começando pela crítica do partido - como grupo separado que de fora quer introduzir a consciência na classe e cujo objetivo é a tomada do poder político - e pela crítica do sindicato - como correia de transmissão, aparato de controle e enquadramento e peça chave para a reprodução capitalista - pretendem agrupar os operários em torno de plataformas antisindicais e anticapitalistas.

Este é o denominador comum a grupos muito distintos: desde núcleos com militância individual em algumas fábricas até pequenas organizações com centralismo democrático; desde autônomos críticos da autonomia até profissionais da autonomia, entendida como uma nova organização.

De todas as formas, esse discurso rompe com o esquerdismo. Entende, por exemplo, a formação social instaurada na URSS como capitalismo de estado e não como socialista com estado operário degenerado; entende o capitalismo não somente como propriedade privada dos meios de produção, mas como modo de produção de mercadorias, de valores de troca, e fala portanto de revolução comunista como destruição do trabalho assalariado e do Estado.

Sua prática, querendo ser autônoma relativamente aos partidos e sindicatos, seguia a destes, criticando-a e radicalizando-a quando podia, mas sem questionar o próprio tipo de intervenção; reproduzindo o substituísmo que criticava, querendo dar como aqueles respostas globais a todos os problemas, organizando-se em comitês de apoio... Jogando no mesmo terreno, sempre um pouco mais à esquerda, não fazia mais do que fortalecê-los.

Rompendo verbalmente com o esquerdismo, ficava praticamente ancorado nele ao não levar de forma conseqüente a crítica do capitalismo e do reformismo até uma posição comunista, isto é, de crítica real do Capital. Seu anticapitalismo se diluía em socialismo autogestionário ou conselhista ao entender o capitalismo como modo de circulação ou de gestão. A autogestão aparecia assim como uma afirmação comunista e não como uma afirmação capitalista moderna. Seu antisindicalismo ficava numa crítica no nível das formas organizativas e portanto numa crítica antiburocrática, dando à organização um valor em si, sem a discussão de seu conteúdo. As lutas operárias eram avaliadas apenas pelo grau antiburocrático que manifestavam, por sua autonomia com relação aos partidos e sindicatos, não por seu conteúdo. Auto-organização, autogestão, no fundo apenas se opunham à burocracia, não representavam um passo fundamental na afirmação comunista.

Com a legalização dos partidos operários e dos sindicatos, estes grupos se diluem. Muitos de seus militantes abandonam toda prática de grupo e seus questionamentos e análises anteriores, mostrando um total ceticismo a respeito de qualquer tipo de intervenção. Outros ideologizam esta posição, “abandonando tudo”. Outros tentam compreender e criticar seu passado, buscando outras formas de intervenção. Outros ainda entram na CNT que vem, em parte e com atraso, ocupar o lugar deixado pelos anteriores grupos autônomos, reproduzindo seu esquerdismo mas com um inconveniente: trata-se agora de um sindicato. Outros continuam se agrupando em torno dos mesmos questionamentos “autônomos” anteriores, mas com o empenho agora de organizar a autonomia. Em vez de criticar seu passado, a insuficiência de sua análise do Capital, o convertem em ideologia. O novo discurso “autônomo”, que assim aparece, não é mais o murmúrio questionador de antes, mas uma máscara da crítica do capitalismo.

Assim, de tanto falar de restruturação capitalista, continuam vendo o capitalismo do ponto de vista da circulação e não da produção. Então, a autogestão operária é uma luta anticapitalista e as formas organizativas - antiburocráticas – passam a ser conteúdos anticapitalistas. Tudo fica reduzido a uma luta contra a burocracia, contra a representação e pela democracia direta. De tanto falar da violência do Estado e da organização contra esta violência, confundem Capital com Estado. Ao fixar a luta contra o Estado, contra as forças repressivas, como primordial, esquecem que o capitalismo é um dinamismo social que se alimenta da participação da própria classe operária nesta esfera política. Se antes era a auto-organização, agora a violência é considerada a medida da luta de classes.

Na falta de revolução comunista: reformismo da vida cotidiana. Diante da ausência da revolução, esses grupos idealizam como revolucionária qualquer luta de novo tipo no âmbito da vida cotidiana: ecologia, feminismo, marginalidade... vendo aparecer continuamente novos sujeitos revolucionários que viriam realizar a tarefa comunista que Marx atribuía à classe operária no século XIX. Em vez de tentar descobrir o que há de movimento real, de ruptura, em tais lutas e em tais frações do proletariado, fetichizam o que já é ideologia. Com tudo isto, se poupam de formular o problema central: a ausência até hoje da revolução comunista.

Fixaremos agora nossa atenção na atividade autônoma da classe operária na Espanha, durante estes últimos anos. Sua autonomia, com relação aos aparatos de enquadramento e controle sindicais e políticos, aparece continuamente. A assembléia como único órgão de decisão, com seus delegados revogáveis, aparece na maioria dos processos de luta tentando se afirmar contra as incipientes burocracias sindicais. Além do mais, as lutas transpõem os muros da empresa e se dão um pouco em toda parte. Nos bairros, as reivindicações por melhores equipamentos, melhores transportes... são levadas a cabo diretamente pelos próprios interessados, sem mediações, auto-organizando-se, excluindo os aparatos de controle e de representação, que são mais débeis por não terem uma estrutura sindical como nas fábricas. E em muitos outros setores: mulheres, estudantes, presos..., afirma-se a auto-organização de suas lutas pelos próprios interessados.

Com a legalização e fortalecimento dos partidos operários e dos sindicatos, o movimento autônomo experimenta um certo refluxo. Nos bairros, a atividade dos partidos de esquerda e de extrema esquerda, com vistas a obter votos, fortaleceu a passividade dos operários. As lutas nas empresas são mais enquadradas, mais manipuladas pelos sindicatos, ainda que estes constantemente corram o risco de serem ultrapassados e muitas vezes são.

Toda essa atividade da classe nos aparece como autônoma com relação ao sindicato, mas isto não quer dizer que seja autônoma quanto ao Capital. Idealizar essas lutas, como fazem os grupos autônomos, fixando-se no nível das formas organizativas e não passar para o nível dos conteúdos, é um engano que nos impede de ver a força real da classe. Uma luta levada a cabo fora dos sindicatos pode ser tão sindicalista, tão reformista, como a mais enquadrada, se já não aponta, juntamente com as novas formas de auto-organização, conteúdos que visem a destruição do trabalho assalariado.

Estamos falando de autonomia com relação ao Capital e de recusa ao trabalho. Isto requer uma explicação. Evidentemente, as lutas autônomas contra os aparatos de controle, dirigidas pelos próprios operários e para eles mesmos, são lutas dentro da estrutura capitalista, isto é, que não se propõem diretamente a abolição do trabalho assalariado e o comunismo. Mas podem aparecer, e aparecem, conteúdos que mesmo expressos em reivindicações limitadas, já apontam contra o Capital. Não se trata de que algumas reivindicações sejam integráveis e outras não – todas hoje são integráveis pelo Capital -, mas enquanto algumas o interiorizam e dão-lhe suporte, outras introduzem elementos críticos à totalidade do sistema de exploração e dominação capitalista.

Do mesmo modo, se falamos separadamente de formas e conteúdos, não é para opô-los, pois se fundem no movimento de luta, mas para ver a força do movimento. Forma e conteúdo, auto-emancipação e autodestruição são para o proletariado os dois lados de uma mesma moeda: a revolução comunista. Separando estes dois lados, olhando apenas a auto-organização, o Capital, com seus partidos e sindicatos operários, pode chegar a conceder tudo à classe operária: autogestão, estado operário, etc., menos que deixe de ser classe operária. O comunismo não é a gestão do Capital por representantes da classe operária ou pela própria classe operária (capitalismo de Estado ou conselhismo), mas a destruição do Capital e portanto a destruição do proletariado como tal, o começo de uma atividade diferente: a realização da comunidade.

Tentemos agora colocar mais explicitamente alguns dos problemas, das questões que nos surgiram ao longo destas notas críticas, fundamentalmente a questão da ausência da revolução e da força real da classe, mesmo que não saibamos adiantar nenhuma solução. Mas isto não invalida a perspectiva crítica que adotamos, ainda que não tenhamos alternativas. Não ter outra coisa a propor, não saber que caminho escolher, não é razão para fazer “algo”, para percorrer caminhos conhecidos que já sabemos para onde vão.

O proletariado, no processo de sua auto-emancipação, se afirmou, não se negou, não se destruiu, não levou – salvo em poucos momentos – uma atividade autônoma com relação ao Capital. Foi beligerante nas duas últimas guerras mundiais; vimo-lo enquadrado nas organizações estalinistas; vimo-lo manter a Economia, trabalhando para consumir coisas inúteis;... vimo-lo lutar por interesses que não eram os seus: a democracia, numa guerra imperialista. Vimo-lo também lutando contra o Capital, recusando o trabalho, mas em ofensivas... que se interrompem ou nem começam. Por que não começam? Por que se interrompem? Vimos como, no ponto mais culminante da luta, os vencedores se rendiam aos vencidos: julho de 1936.

Na ausência da revolução comunista, o Capital se reproduziu até a barbárie atual, generalizando o proletariado. Nesta situação, o que quer dizer levar a cabo uma atividade autônoma em relação ao Capital? O que quer dizer levar a cabo uma intervenção comunista? O que significa dizer-se revolucionário? Que sentido tem tudo isso?

Hoje, a classe operária sabe que em e com suas lutas não vai ao assalto do todo. Não se engana. Não é que não tenha consciência, que não seja consciente de sua exploração pelo patrão, pelo Estado e pela Economia. Não há, portanto, lugar para os grupos que querem conscientizá-la. Sobra-lhe consciência e sobram-lhe dirigentes. Falta-lhe força. Prefere ainda, no momento, a segurança de sua vida com pouco sentido, pouco apaixonante, ao risco à ousadia da liberdade e da comunidade. Algumas frações resistem, atacam, mas rapidamente são isoladas do resto da classe, são reduzidas ao gueto. O Capital divide continuamente o proletariado: homens-mulheres, jovens-velhos, empregados-desempregados... Alguns se agrupam e recobrem a ausência da revolução com o desespero: terrorismo arcaico e moderno. Mas com seu isolamento, o Capital sempre é mais forte.

A partir de tudo isto, queremos situar o problema da intervenção. Que espaço (no sentido de intervenção fora da política institucionalizada mas dentro do macro-social) fica para nós, que não pretendemos entrar no espetáculo da representação política, apostamos no comunismo – na possibilidade da comunidade – e recusamos a contínua reprodução do mesmo, senão a ruptura radical? Que espaço pode configurar esta paixão pelo comunismo, esta paciência que não descansa, atenta ao novo assalto proletário, às rupturas que determinadas forças sociais introduzem...? Que espaço pode configurar este resistir ao engano das novas ideologias do Capital que, com o fim de manter o proletariado, podem falar de autogestão, de vida cotidiana, de autogestão da vida cotidiana, de ecologia, de feminismo... – quebrando mil lanças para fazê-las aparecer como realmente são: armadilhas para a participação, para a manutenção do trabalho assalariado?

Encontrar este espaço de intervenção continua sendo nosso empenho.

Barcelona, 1979


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