quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - Capitulo VII

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO
 Guy Debord
 Capitulo VII A ORDENAÇÃO DO TERRITÓRIO

 E quem se torna senhor de uma cidade habituada a viver livre e nem sequer a destrói, que não deixe de esperar ser destruído por ela, porque ela tem sempre por refúgio nas suas rebeliões o nome da liberdade e os seus velhos costumes, os quais nem pela vastidão dos tempos nem por nenhuma mercê jamais serão esquecidos. E por mais que se faça ou que se precavenha, se não é o expulsar ou o dispersar dos habitantes, eles não esquecerão nunca esse nome nem esses costumes... Maquiavel - O Príncipe

 165 A produção capitalista unificou o espaço, que não é mais limitado pelas sociedades exteriores. Esta unificação é, ao mesmo tempo, um processo extensivo e intensivo de banalização. A acumulação das mercadorias produzidas em série para o espaço abstracto do mercado, do mesmo modo que devia quebrar todas as barreiras regionais e legais, e todas as restrições as corporativas da Idade Média que mantinham a qualidade da produção artesanal, devia também dissolver a autonomia e a qualidade dos lugares. Este poder de homogeneização é a artilharia pesada que fez cair todas as muralhas da China.

 166 É para se tornar cada vez mais idêntico a si próprio, para se aproximar o melhor possível da monotonia imóvel, que o espaço livre da mercadoria é, doravante, a cada instante modificado e reconstruído.

 167 Esta sociedade que suprime a distância geográfica, recolhe interiormente a distância, enquanto separação espectacular.

 168 Subproduto da circulação das mercadorias, a circulação humana considerada como um consumo, o turismo, reduz-se fundamentalmente à distracção de ir ver o que se tornou banal. A ordenação económica da frequentação de lugares diferentes é já por si mesma a garantia da sua equivalência. A mesma modernização que retirou da viagem o tempo, retirou-lhe também a realidade do espaço.

 169 A sociedade que modela tudo o que a rodeia edificou a sua técnica especial para trabalhar a base concreta deste conjunto de tarefas: o seu próprio território. O urbanismo é esta tomada de posse do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo que, ao desenvolver-se logicamente em dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário.

 170 A necessidade capitalista satisfeita no urbanismo, enquanto glaciação visível da vida, pode exprimir-se - empregando termos hegelianos - como a predominância absoluta da «plácida coexistência do espaço» sobre «o inquieto devir na sucessão do tempo».

 171 Se todas as forças técnicas da economia capitalista devem ser compreendidas como operando separações, no caso do urbanismo trata-se do equipamento da sua base geral, do tratamento do solo que convém ao seu desenvolvimento; da própria técnica da separação.

 172 O urbanismo é a concretização moderna da tarefa ininterrupta que salvaguarda o poder de classe: a manutenção da atomização dos trabalhadores que as condições urbanas de produção tinham perigosamente reunido. A luta constante que teve de ser levada a cabo contra todos os aspectos desta possibilidade de encontro descobre no urbanismo o seu campo privilegiado. O esforço de todos os poderes estabelecidos desde as experiências da Revolução francesa, para aumentar os meios de manter a ordem na rua, culmina finalmente na supressão da rua. «Com os meios de comunicação de massa a grande distância, o isolamento da população verificou-se ser um meio de controlo muito mais eficaz», constata Lewis Mumford em Através da História, ao descrever um «mundo doravante único». Mas o movimento geral do isolamento, que é a realidade do urbanismo, deve também conter uma reintegração controlada dos trabalhadores, segundo as necessidades planificáveis da produção e do consumo. A integração no sistema deve apoderar-se dos indivíduos isolados em conjunto: as fábricas como as casas da cultura, as aldeias de férias como os «grandes conjuntos habitacionais», são especialmente organizados para os fins desta pseudocolectividade que acompanha também o indivíduo isolado na célula familiar: o emprego generalizado dos receptores da mensagem espectacular faz com que o seu isolamento se encontre povoado pelas imagens dominantes, imagens que somente através deste isolamento adquirem o seu pleno poderio.

 173 Pela primeira vez, uma arquitectura nova, que em cada época anterior era reservada à satisfação das classes dominantes, encontra-se directamente destinada aos pobres. A miséria formal e a extensão gigantesca desta nova experiência de habitat provêm em conjunto do seu carácter de massa, que está implícito, ao mesmo tempo, na sua destinação e pelas condições modernas de construção. A decisão autoritária, que ordena abstractamente o território em território da abstracção, está, evidentemente, no centro destas condições modernas de construção. A mesma arquitectura aparece em todo o lado em que começa a industrialização dos países quanto a ela atrasados, como terreno adequado ao novo género de existência social que aí se trata de implantar. Tão nitidamente como nas questões do armamento termonuclear ou da natalidade - isto atingindo já a possibilidade de uma manipulação da hereditariedade -, o limiar transposto no crescimento do poder material da sociedade e o atraso da dominação consciente deste poder estão expostos no urbanismo.

 174 O momento presente é já o da autodestruição do meio urbano. O rebentar das cidades sobre os campos recobertos de «massas informes de resíduos urbanos» (Lewis Mumford) é, de um modo imediato, presidido pelos imperativos do consumo. A ditadura do automóvel, produto-piloto da primeira fase da abundância mercantil, inscreveu-se no terreno com a dominação da auto-estrada, que desloca os antigos centros e exige uma dispersão cada vez maior. Ao mesmo tempo, os momentos de reorganização incompleta do tecido urbano polarizam-se passageiramente em torno das «fábricas de distribuição» que são os supermarkets(*) gigantes, edificados em terreno aberto num socalco de palking;(*) e estes templos do consume precipitado estão, eles próprios, em fuga no movimento centrífugo, que os repele à medida que eles se tornam, por sua vez, centros secundários sobrecarregados, porque trouxeram uma recomposição parcial da aglomeração. Mas a organização técnica do consumo não está se não no primeiro plano da dissolução geral que conduziu, assim, a cidade a consumir-se a si própria.

 175 A história económica, que se desenvolveu intensamente em tomo da oposição cidade-campo, chegou a um estádio de sucesso que anula ao mesmo tempo os dois termos. A paralisia actual do desenvolvimento histórico total, em proveito da exclusiva continuação do movimento independente da economia, faz do momento em que começam a desaparecer a cidade e o campo, não a superação da sua cisão, mas o seu desmoronamento simultâneo. A usura recíproca da cidade e do campo, produto do desfalecimento do movimento histórico pelo qual a realidade urbana existente deveria ser superada, aparece nesta mistura ecléctica dos seus elementos decompostos que recobre as zonas mais avançadas na industrialização.

 176 A história universal nasceu nas cidades e atinge a maioridade no momento da vitória decisiva da cidade sobre o campo. Marx considera como um dos maiores méritos revolucionários da burguesia este facto: «ela submeteu o campo à cidade» cujo ar emancipa. Mas se a história da cidade é a história da liberdade, ela é também a da tirania, da administração estatal que controla o campo e a própria cidade. A cidade não pôde ser ainda senão o terreno de luta da liberdade histórica, e não a sua posse. A cidade é o meio da história, porque ela é ao mesmo tempo concentração do poder social, que torna possível a empresa histórica, e consciência do passado. A tendência presente à liquidação da cidade não faz, pois, senão exprimir de um outro modo o atraso de uma subordinação da economia à consciência histórica, de uma unificação da sociedade reassenhorando-se dos poderes que dela se tinham desligado.

 177 «O campo mostra justamente o facto contrário, o isolamento e a separação» (Ideologia alemã). O urbanismo que destrói as cidades, reconstrói um pseudocampo, no qual estão perdidas tanto as relações naturais do antigo campo como as relações sociais directas da cidade histórica, directamente postas em questão. É um novo campesinato factício, recriado pelas condições de habitat e de controlo espectacular no actual «território ordenado»: a dispersão no espaço e a mentalidade acanhada, que sempre impediram o campesinato de empreender uma acção independente e de se afirmar como potência histórica criadora, voltam a tornar-se a caracterização dos produtores - o movimento de um mundo que eles próprios fabricam, ficando tão completamente fora do seu alcance como o estava o ritmo natural dos trabalhos para a sociedade agrária. Mas quando este campesinato, que foi a inabalável base do «despotismo oriental», e cuja própria redução a migalhas pedia a centralização burocrática, reaparece como produto das condições de aumento da burocratizarão estatal moderna, a sua apatia teve de ser agora historicamente fabricada e alimentada; a ignorância natural cedeu o lugar ao espectáculo organizado do erro. As «cidades novas» do pseudocampesinato tecnológico inscrevem claramente no terreno a ruptura com o tempo histórico sobre o qual são construídas; a sua divisa pode ser: «Aqui mesmo nunca acontecerá nada, e nunca aqui aconteceu nada». É, evidentemente, porque a história que é preciso libertar nas cidades ainda aqui não foi liberta, que as forças da ausência histórica começam a compor a sua própria e exclusiva paisagem.

 178 A história que ameaça este mundo crepuscular é também a força que pode submeter o espaço ao tempo vivido. A revolução proletária é esta crítica da geografia humana, através da qual os indivíduos e as comunidades têm a construir os lugares e os acontecimentos correspondendo à apropriação, já não só do seu trabalho, mas da sua história total. Neste espaço movente do jogo, e das variações livremente escolhidas das regras do jogo, a autonomia do lugar pode reencontrar-se sem reintroduzir uma afeição exclusiva à terra, e assim, restabelecer a realidade da viagem, tendo em si própria todo o seu sentido. 179 A maior ideia revolucionária a propósito de urbanismo não é, ela própria, urbanística, tecnológica ou estética. É a decisão de reconstruir integralmente o território segundo as necessidades do poder dos Conselhos de trabalhadores, da ditadura anti-estatal do proletariado, do diálogo executório. E o poder dos Conselhos, que não pode ser efectivo senão transformando a totalidade das condições existentes, não poderá atribuir-se uma menor tarefa se quer ser reconhecido e reconhecer-se a si mesmo no seu mundo. 

GUY DEBORD (*) Em inglês no original (N. T.).

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