quarta-feira, 17 de outubro de 2012

ENQUANTO HOUVER DINHEIRO, NUNCA HAVERÁ O BASTANTE PARA TODO MUNDO

(Tradução de REVISITING THE EAST... AND POPPING AT MARX’S*) Além da Coréia do Norte e Cuba, nenhum país se autodenomina socialista. Então para que se aborrecer com velhos debates sobre a natureza da União Soviética? Se é o capitalismo que domina o mundo, o que há mais para saber?! Um grande negócio. É crucial entender porque a Rússia foi capitalista em 1980, 1930, ou 1920, se quisermos saber o que o capitalismo realmente é, e o que pode e deve ser revolucionado na Rússia assim como na Inglaterra no século XXI. O capitalismo não é apenas um sistema de dominação no qual burgueses e burocratas forçam as massas a trabalhar e enriquecem com isso. Em 1950, em Praga como em Chicago, o dinheiro estava comprando força de trabalho que era usada para valorizar dinheiro acumulado em pólos de valor chamados de companhias ou corporações. Essas empresas não podem continuar existindo, a não ser que acumulem capital mediante uma taxa (de lucros) socialmente aceitável. Essa taxa certamente não era a mesma em Praga e em Chicago. As empresas tchecas funcionavam como unidades separadas, mas (diferentemente das empresas situadas em Chicago) não havia proprietários privados para vendê-las ou geri-las segundo seus desejos. Ainda assim, as fábricas de sapatos tchecas não produziram sapatos como artigos para satisfazer uma necessidade: eles deveriam ser o resultado mais lucrativo de todo dinheiro que havia sido investido para produzi-los. A "formação do valor" era tão importante em Praga como em Chicago. Aqueles sapatos não foram dados de graça aos pedestres de Chicago ou Praga, que os calçaram e foram embora. Em ambas cidades, os pedestres pagaram por seus sapatos ou ficaram descalços. É óbvio que o estado tcheco pode decidir subsidiar sapatos e vendê-los por um preço baixo, isto é, mais baixo do que o seu custo de produção. Mas, em cada país, o valor deveria ser finalmente realizado no mercado. Os planejadores tchecos se desviaram das regras de lucratividade. Mas não puderam jogar esse jogo para sempre, suas regras sempre se reafirmavam, no final, através da má qualidade, escassez, mercado negro etc. O estado protegeu a companhia Praga contra a falência. Mas isso foi artificial. Limitar a concorrência ajuda a manter a coesão social mas elimina a produtividade. Não se pode fraudar a lógica da valorização por muito tempo. Uma empresa, dez empresas, mil empresas podem ser salvas do fechamento, até o dia em que toda a sociedade for à falência. Se o estado belga ou francês se mantivesse financiando cada companhia falida desde os primeiros dias de industrialização, o capitalismo estaria extinto na França ou Bélgica. Em suma, a " lei do valor" funcionou de muitos modos diferentes, no capitalismo "burocrático" e de "mercado", mas ela de fato se aplicou em ambos. (Ninguém nega a natureza capitalista de Bahrein ou Togo, ainda que sua aparência capitalista seja muito diferente da inglesa ou italiana). Exatamente como nas versões ocidentais, a ascensão e a queda do capitalismo de estado dependeu de conflitos e compromissos de classes , no centro dos quais estava a necessidade de usar força de trabalho para lucrar. Na União Soviética e Leste Europeu,depois de 1945, o estado assumiu a forma particular de uma constante repressão política ligada a proteção de empregos (na fábrica e na fazenda coletiva), que reduziu a acumulação de valor através da baixa produtividade. E, mesmo assim, o capitalismo estatal russo funcionou durante mais de sessenta anos. O sistema como um todo sofreu um colapso não porque havia se tornado muito repressivo e as pessoas já estavam fartas, mas quando o compromisso de classe deixou de ser socialmente produtivo e quando não pode agüentar a concorrência de um mercado mundial dominado por formas capitalistas mais dinâmicas. 1989 anunciou uma era diferente, mas não o nascimento de um movimento comunista (no sentido de Marx, não o de Stálin ou Dubcek) renovado. A queda do muro de Berlim abriu uma maré de reajuste econômico, militância operária e pressão democrática, e deixou pouco espaço para a crítica do capitalismo enquanto tal. Desde 1989, na maioria dos países do extinto bloco imperialista russo, a luta de classes tem de fato se desenvolvido, mas orientou-se muito pouco pelo estilo reformista ocidental (que são incapazes de satisfazer) e não surgiram minorias radicais importantes. A evolução da Polônia ou da Sérvia demonstra que a militância operária foi conduzida para perspectivas nacionais (e até nacionalistas). Geralmente, os operários têm de lutar não por maiores salários, mas meramente para ter seus salários pagos: é o que ocorre, na República Tcheca como no Cazaquistão. Não estamos dizendo que os proletários do "leste" são mais atrasados do que outros. Na Europa ocidental , nos EUA e no Japão, o "anticapitalismo" essencialmente reivindica mais justiça social , e só uma pequena fração é revolucionária. De fato, este é um ponto importante, que gostaríamos de tocar, mesmo que ele não seja desenvolvido por falta de espaço: em todo lugar, a reforma ainda está na ordem do dia. Revisitar o estado capitalista não é um debate acadêmico. O que está em jogo é a natureza do capitalismo e o comunismo. Se o Politburo e a KGB não puderam manejar a lógica da produtividade e lucratividade, direitistas ou esquerdistas não serão capazes de o fazer, tampouco. A atual estagnação econômica (e declínio geral) de quase todos os países do leste europeu não decorre do fato de os burocratas se tornarem burgueses (assim como o desemprego e os baixos salários não decorrem da excessiva ganância dos patrões e acionistas). Simplesmente, não há espaço para a maioria das empresas tchecas e russas no mercado mundial. O capital é incontrolável: ele gerencia seus gerentes. A análise do capitalismo burocrático nos mostra o que o capitalismo realmente é: não apenas a imposição do trabalho e uma disciplina fabril ou de escritório, mas a entrega da força de trabalho, da vida, em troca de dinheiro. O trabalho como atividade separada do resto não pode ser livre. O dinheiro não pode ser igual e honestamente dividido ou redistribuído. Enquanto houver dinheiro, nunca haverá o bastante para todo mundo. Somente a abolição do trabalho assalariado mudará profundamente nossas vidas. Uma questão emerge: como relacionar Marx com os monstros autodenominados marxistas no século XX? Decerto, existe uma conexão. O capitalismo de estado é sem dúvida contrário ao espírito da longa prática e dos escritos de Marx, mas reivindica fidelidade a alguns de seus aspectos. Vamos dar apenas um exemplo. O volume I do Capital não termina com uma conclusão comunista (como alcançar um mundo sem mercadoria, estado e trabalho), e sim com a expropriação dos expropriadores, através de uma socialização do capitalismo gerada por uma necessidade histórica. Ora, isto não é o bastante para justificar a participação do SPD no gerenciamento da Alemanha, depois de 1918, nem avaliza o esmagamento de Kronstadt ou o Gulag. Mas está certamente longe da clara afirmação do comunismo que nós lemos nos primeiros textos de Marx e nos numerosos cadernos de anotações sobre o mir e as sociedades "primitivas" que ele manteve em seus últimos dias (nenhum dos quais, como sabemos, ele publicou). No final dos anos 60 e nos anos 70, não fomos os únicos a "retornar a Marx". Isso era necessário para a melhor compreensão do que estávamos vivendo. Os ensaios que ora prefaciamos são parte dessa tentativa que significou um retorno a toda história e pensamento revolucionário, inclusive a oposição de esquerda da III Internacional (as esquerdas italianas e germano-holandesas), e também o anarquismo anterior e posterior a 1914. Fomos e continuamos convencidos de que (contrário à afirmação de Marx em uma de suas obras mais fracas) , uma verdadeira cisão aconteceu em meados do século XIX no movimento revolucionário, que se imbecilizou na divisão entre marxismo e anarquismo. Mais tarde, é claro, essa divisão pioraria. O leitor deste livro compreenderá que nós não estamos adicionando pedaços de Bakunin a um naco de Marx (ou vice-versa). Tal miscelânea seria um quebra-cabeça irrelevante. Estamos apenas tentando avaliar ambos, Marx e Bakunin, como os próprios Marx e Bakunin avaliaram, dizem, Babeuf e Fourier. É difícil negar a dimensão progressista em Marx: ele compartilhava a crença de seu tempo, segundo a qual hoje é "melhor" do que ontem e amanhã será certamente melhor do que hoje. Ele tinha uma visão linear da história e elaborou uma continuidade determinista da comunidade primitiva ao comunismo. Basicamente, ele reconstruiu a história antiga de modo que, quando grupos humanos foram capazes de produzir mais do que o necessário para a sobrevivência imediata, o excedente teria criado a possibilidade da exploração, daí sua necessidade histórica. Uma minoria forçou a maioria a trabalhar e enriqueceu. Milhares de anos depois, graças ao capitalismo, a enorme expansão da produtividade criaria outra possibilidade: o fim da exploração. Mercadorias de todas as espécies são tão abundantes que se torna absurdo uma minoria monopolizá-las. E a organização da produção é tão socializada que se torna sem sentido (e mesmo contraprodutivo) deixa-la nas mãos de uns administradores, cada um gerenciando seu próprio privado. A burguesia foi historicamente necessária, mas seu sucesso (o crescimento da economia moderna) transformou-a em parasita. O capitalismo torna a si próprio sem sentido. Assim, a história tem se movido da escassez para a abundância. De fato, tal padrão evolutivo nunca foi escrito por Marx. Mas esta é a lógica subjacente a muitos de seus textos e (o que é mais importante) parte de sua atividade política. Não foi por acaso que ele apoiou a burguesia alemã e líderes de sindicatos ou partidos reformistas: ele os considerava como agentes da mudança que eventualmente levaria ao comunismo. Em contrapartida, subestimou insurrecionalistas como Bakunin, que, segundo ele, se mantinha fora do real movimento da história. É significativo que a maioria das figuras anarquistas, como Kropotkin e Elisée Reclus (famosos geógrafos) também apoiaram visões deterministas, com ênfase maior na organização social do que na produção. Para eles, a indústria e o comércio espalhados pelo mundo inteiro criaram um potencial humano universal e inauguraram uma sociedade onde as diferenças étnicas, de fronteiras e Estados se tornaram sem sentido. No caso de Marx como de Kropotkin, a "sociedade" é o resultado de relações entre seres e classes, e a revolução foi entendida como determinada a acontecer por causa de uma tendência universal no sentido de uma humanidade unida. Era mais uma explanação tecnológica do que social da história. Porém, o Marx determinista não era todo o Marx. Este mostrou um longo e profundo interesse pelo que não se ajustou à sucessão linear das fases históricas. E produziu densos estudos sobre a auto-organização das comunas camponesas com propriedade coletiva da terra, admitindo claramente a possibilidade de ultrapassar o estágio capitalista da Rússia. Não importa o que Kropotkin tenha pensado de Marx, as poucas idéias do anarquista russo ecoaram as do famoso exílio londrino. Mas, como sabemos, tais lúcidas fecundas hipóteses foram mais tarde descartadas por marxistas reformistas e revolucionários. O marxismo tornou-se a ideologia do desenvolvimento econômico, segundo a qual há pouco espaço para a revolução porque o capitalismo se torna cada vez mais socializado: no devido tempo, as massas organizadas acabarão (de modo pacífico, principalmente) com a anarquia burguesa. Resumindo, o socialismo não rompe com o capitalismo: ele o completa. Os radicais só diferem dos gradualistas, porque incluem a necessidade de violência no processo. Lênin argumentava com o fato de que grandes monopólios e cartéis alemães haviam sido organizados e centralizados de cima para baixo: se os gerentes burgueses forem substituídos por gerentes operários e o plano de racionamento for estendido do truste privado para toda a indústria, a fábrica social será alterada. Mas isto não é uma ruptura com a mercadoria e a economia. Nosso "retorno a Marx", nos anos 70, provavelmente fracassou em compreender o quanto o marxismo deve a Marx. Qualquer definição econômica do comunismo permanece na esfera da economia, isto é, na separação dos movimentos de produção do resto da vida. O comunismo não é uma sociedade que iria propriamente alimentar os famintos, medicar os doentes, abrigar os desabrigados, etc. Ele não pode se basear na satisfação das necessidades tal como existem agora ou mesmo como as imaginamos no futuro. Comunismo não é produzir o bastante para todos nem distribuir uniformemente entre todos. É um mundo onde as pessoas entram em relações e interagem, o que (entre outras coisas) resulta em serem capazes de alimentar, medicar, abrigar... a si mesmas. O comunismo não é uma organização social. É uma atividade. É uma comunidade humana. Gilles Dauvé, junho 2002 (*) Este é um prefácio para a edição tcheca de Eclipse e Re-emergência, publicado por Solidarita (ORA-S). Biblioteca virtual revolucionária

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