quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre Organização: As Gangues (dentro e fora do Estado) e o Estado como Gangue

Sobre Organização: As Gangues (dentro e fora do Estado) e o Estado como Gangue

 Jacques Camatte & Gianni Collu

 A carta a seguir (de 04/09/1969) levou à dissolução do grupo que começou a se formar com base nas posições expostas em Invariance e abriu um importante campo, de reflexão e debate, que permanece até hoje. Algumas de suas conclusões já foram discutidas em "Transition" No 8, série 1.

Embora certas questões levantadas pela carta tenham sido parcialmente tratadas, outras mal foram abordadas. É, pois, necessário - dada a importância de se fazer uma ruptura mais clara com o passado - publicá-la agora, de modo que o leitor avalie a obra já efetuada e o que resta por fazer.

 Posto que é simultaneamente uma ruptura (e assim uma conclusão) e um ponto de partida, a carta possui um certo número de imprecisões, sementes de erros possíveis. Apontaremos as mais importantes numa nota. Aliás, já que nos foi possível, quando recusamos o método de grupo, esboçar "concretamente" como ser revolucionários, nossa recusa do pequeno grupo poderia ser interpretada como retorno a um individualismo mais ou menos stirneriano. Ou como se a única certeza de agora em diante fosse a subjetividade cultivada de cada indivíduo revolucionário. Nada disso! Era necessário recusar publicamente uma certa percepção da realidade social e a prática ligada a ela, pois são um ponto de partida para o processo de formação da gangue. Se abandonamos totalmente o movimento grupuscular foi para, simultaneamente, sermos capazes de nos relacionar com outros revolucionários que tenham feito uma ruptura análoga. Agora, há uma produção direta de revolucionários que ultrapassa o ponto em que estávamos quando rompemos. Assim, há uma potencial "união" que seria considerada se nós não estivéssemos levando a ruptura com o ponto de vista político às profundezas de nossas consciências individuais.

 Sendo dado que a essência da política é a representação, cada grupo está sempre tentando projetar uma imagem espetacular sobre a tela social. Os grupos estão sempre explicando como se representam visando a ser reconhecidos por certas pessoas como a vanguarda que representa outros, a classe. Isto fica manifesto nos famosos "o que nos distingue" de vários pequenos grupos em busca de reconhecimento. Toda delimitação é limitação e, com freqüência, rapidamente se reduz a alguns slogans de representação para o espetáculo da algazarra ideológica. Toda representação política é um biombo e um obstáculo para uma fusão de forças. Uma vez que a representação pode ocorrer tanto no nível individual quanto no grupal, se refugiar no primeiro nível seria, para nós, uma repetição do passado.

 Camatte, 1972

 "Desprezamos, Engels e eu, a popularidade. Entre outras coisas, nossa repugnância frente a qualquer culto de personalidade é uma evidência disto. Nunca permiti que alguém fizesse publicidade dos numerosos testemunhos de admiração que recebi em vários países... Quando, Engels e eu, nos juntamos à sociedade secreta dos comunistas pela primeira vez, nós o fizemos com a condição sine qua non de que fossem revogados todos os dispositivos estatutários favoráveis ao culto da autoridade."

 Marx a Blos - 10/11/1877, MEW 34, p. 308.

 "É possível evitar a sujeira no trato burguês e em seu comércio? A sujeira é seu elemento natural... A infâmia honesta ou a honestidade infame da moralidade dissolvente não me parecem nem um pouco superiores à infâmia não respeitável da qual nem as primeiras comunidades cristãs, nem o clube jacobino e nem nossa falecida Liga puderam se livrar completamente. No trato burguês, contudo, a pessoa se habitua a perder o senso de respeitável infâmia ou de infame respeitabilidade."

 Marx a Freiligrath - 29/02/1860, MEW 30, p. 492

 "o capital teve que absorver o movimento que o nega, o proletariado, e estabelecer uma unidade na qual o proletariado é apenas um objeto do capital. (...) O movimento de negação é assim reabsorvido na gangue, que o anula na aparência de negação. " O estabelecimento do capital na existência material e, portanto, na comunidade social, é acompanhado pelo desaparecimento do tradicional capitalista individual, a relativa - algumas vezes, absoluta - diminuição do proletariado, e o crescimento de novas classes médias. Toda comunidade humana, não importa quão pequena, é condicionada pelo modo de existência da comunidade material. O modo de existência atual deriva do fato de que o capital é capaz de se valorizar - portanto existir e se desenvolver -, unicamente se uma partícula dele, ao mesmo tempo que se torna autônoma, enfrenta o conjunto social e se coloca em relação ao equivalente socializado total, o capital. Ele precisa deste confronto (competição, rivalidade); ele existe somente por diferenciação. A partir deste ponto, surge uma fábrica social baseada na competição entre quadrilhas rivais.

 "Ele reproduz uma nova aristocracia financeira, uma nova variedade de parasitas na forma de promotores, especuladores e mesmo diretores nominais; todo um sistema de fraudes e trapaças mediante a promoção corporativa, evasão de estoque e especulação com estoque. É produção privada sem o controle da propriedade privada."

 O Capital (International Publishers), Vol III, p. 438

 "Aqui, a expropriação se estende dos produtores diretos aos pequenos e médios capitalistas. É o ponto de partida do modo de produção capitalista; sua realização é o objetivo desta produção. Em última instância, sua finalidade é a expropriação dos meios de produção de todos os indivíduos. Com o desenvolvimento da produção social, os meios de produção cessam de ser meios da produção privada e produtos da produção privada e podem, então, ser somente meios de produção nas mãos dos produtores associados, isto é, propriedade social destes últimos, na medida em que são seus produtos sociais. No entanto, esta expropriação aparece dentro do sistema capitalista numa forma contraditória, como apropriação da propriedade social por poucos; a estes, o crédito empresta cada vez mais o aspecto de meros aventureiros."
Ibid., pp. 439-440.

 "A recusa de toda organização não é uma simples posição antiorganizacional, nem a manifestação de um desejo de originalidade, de se diferenciar e assim alcançar uma posição para atrair as pessoas. Se assim fosse, o processo de formação de bandos recomeçaria."

Como residência do processo de produção (a criação do valor), a empresa restringe o movimento do capital, fixa-o num local particular. Ela então deve superar esta estabilização, perder este caráter fixo. Assim, empresas sem propriedade surgem, as quais ainda levam em consideração uma forma de produção mistificada de mais-valia. Aqui, o capital constante é igual a zero, daí que só um pequeno adiantamento de capital é necessário para fazer o "negócio" funcionar. Enfim, há mesmo empresas fictícias, graças às quais a mais desenfreada especulação se desenvolve.

 "Hoje, o capital aparece com freqüência na forma de "organização". Por trás dessa palavra - sinônimo nos tempos gloriosos dos conflitos laborais, de fraternidade numa luta aberta, mas agora meramente a ficção hipócrita sobre o interesse comum entre homens de negócio, administradores, técnicos, trabalhadores não qualificados, robôs e cães de guarda - por trás das marcas inexpressivas das companhias, por trás dos termos "elementos de produção" e "incentivo do rendimento nacional", o capital ainda cumpre a sua velha e repulsiva função; uma função imensamente mais ignóbil do que a do empreendedor que pessoalmente contribuía com sua inteligência, coragem e verdadeiro espírito pioneiro na aurora da sociedade burguesa. A organização não é somente o moderno capitalista despersonalizado, mas também o capitalista sem capital, porque não necessita de nenhum... A organização de negócios tem seu próprio plano. Ela não estabelece um firma confiável de negócio com patrimônio mas uma "frente corporativa" com um capital fictício. Se algum pagamento é adiantado, é meramente para angariar simpatia das agências governamentais, que examinam ofertas, propostas e contratos. Isso revela a falsidade da estúpida doutrina de que a burocracia de estado e/ou de partido constitui uma nova classe dominante que oprime igualmente proletários e capitalistas, uma hipótese ridícula, fácil de rejeitar o ponto de vista marxista. Hoje, o "especialista" é uma ave de rapina; o burocrata é o miserável adulador. A organização difere da comuna operária (uma ilusão libertária que não pode ser encontrada em nenhuma fronteira definida) no fato de que, de todas as formas, mais do que igualdade de efetuação de um trabalho comum, há uma hierarquia de funções e vantagens. E ela não poderia ser outra coisa, quando a firma tem autonomia no mercado e deve apresentar um balanço lucrativo. As recentes notícias da Rússia, concernentes à descentralização regional e maior independência dos interesses particulares, mostram que há uma tendência para uma extensão explosiva do sistema de contratos, pelo qual o estado se aluga à organizações de todos os setores da economia, organizações que são autênticas gangues de negócios, com uma composição humana mutante e inapreensível. Isto é similar às várias formas gananciosas que caracterizam a moderna indústria da construção em todos os sistemas capitalistas contemporâneos."

 A. Bordiga, " Struttura economica e sociale della Russia d'oggi (Rapporto Riunione di Napoli – Genova) Parte III in Il programma comunista, no 7, 1957.

 "A oposição interior-exterior e a estrutura de gangue levam o espírito de competição ao extremo. (...)Enquanto se está, por um lado, teorizando sobre a sociedade existente, por outro, sob o pretexto de negá-la, inicia-se dentro do grupo uma competição desenfreada que acaba numa hierarquização ainda mais extrema do que a da sociedade; sobretudo à medida que a oposição interior-exterior é reproduzida internamente na divisão entre o centro da gangue e a massa de militantes." Não só o estado se aluga às gangues como também ele mesmo se torna uma gangue. Porém continua tendo o papel de mediador. "A monarquia absoluta (que, em si mesma, é já produto da crescente riqueza burguesa e se desenvolve até o ponto no qual se torna incompatível com as velhas relações feudais) necessita de modo determinado de um poder geral que se afirme através de formas igualitárias. A monarquia absoluta deve ser capaz de exercer este poder sobre todos os pontos da periferia; ela necessita deste poder como alavanca material do equivalente geral; da riqueza que se torna cada vez mais efetiva e poderosa em suas formas e crescentemente independente de todas as relações específicas, locais, naturais e individuais."

 K. Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie (Europaische Verlaganstalt, Frankfurt) p. 873.

 O estado apareceu, em sua forma pura, com a força do equivalente geral, na época da expansão da lei do valor, no período da produção mercantil simples. Na fase de dominação formal do capital, quando o capital ainda não tinha dominado a lei do valor, o estado era um mediador entre o capital e a terra, ambos remanescentes dos antigos modos de produção, e o proletariado. O sistema de crédito era ainda pouco desenvolvido e não tinha dado surgimento ao capital fictício em larga escala. O capital ainda precisava de um rígido padrão ouro. Com a passagem para a dominação real, o capital criou o seu próprio equivalente geral, que não mais poderia ser tão rígido como era no período da circulação simples. O próprio estado teve que perder sua rigidez e se tornar uma gangue, mediatizando entre as diferentes gangues, como o capital total mediatiza entre os particulares.

 É visível o mesmo tipo de transformação na esfera política. O comitê central de um partido ou núcleo de qualquer reagrupamento funciona como o estado. O centralismo democrático é apenas a imitação da forma parlamentar característica da fase de dominação formal. E o centralismo orgânico, afirmado meramente num modo negativo, como recusa da democracia e sua forma (submissão da minoria à maioria, votos, congressos etc.), na realidade, recai nas ciladas mais modernas. O resultado é a mística da organização (como no fascismo). Foi assim que o PCI (Partido Comunista Internacional) se tornou uma gangue.

 Tendo sido destruído o proletariado, essa tendência do capital não encontra oposição real na sociedade. Assim, ela pode se produzir com o máximo de eficácia. A essência real do proletariado foi negada e ele só existe como um objeto do capital. De modo similar, a teoria do proletariado, o marxismo, foi destruída. Primeiro Kautsky a revisou. Depois, Bernstein a liquidou. Isto ocorreu de modo definitivo. Desde então, nenhum ataque do proletariado conseguiu restabelecer o marxismo. Isto é só outra maneira de dizer que o capital estabeleceu sua dominação real. Para conseguir isso, o capital teve que absorver o movimento que o nega, o proletariado, e estabelecer uma unidade na qual o proletariado é apenas um objeto do capital. Esta unidade só pode ser destruída por uma crise, tal como a descrita por Marx. Conseqüentemente, todas as formas de organização política da classe operária desapareceram. Em seu lugar, gangues se enfrentam numa competição obscena, entre arruaceiros que, rivalizando no que mascateiam, são idênticos na sua essência. "Tudo isso exprime a crescente separação entre o indivíduo e a comunidade humana, a miséria no sentido de Marx. A formação da gangue é a constituição de uma comunidade ilusória. (...) Atomizado o proletariado, sua forma imediata de existência é o processo do capital."

 A existência de gangues deriva portanto da tendência do capital de absorver suas contradições, do seu movimento de negação e de sua reprodução numa forma fictícia. O capital nega, ou tende a negar, os princípios básicos sobre os quais ele mesmo se erige; mas, na realidade, os revive numa forma fictícia. A gangue é uma clara expressão dessa dualidade:

 o chefe que manda = caricatura do indivíduo tradicional (e sua “panelinha”)

 a forma coletivo = caricatura da comunidade baseada nos interesses comuns

 O movimento de negação é assim reabsorvido na gangue, que o anula na aparência de negação. A gangue também preenche outro requisito do capital: substitui todas as pressuposições naturais ou humanas por pressuposições determinadas pelo capital.

 A gangue política, em suas relações externas, tende a mascarar a existência da “panelinha”, já que ela deve seduzir para recrutar. Ela se enfeita com um véu de modéstia a fim de aumentar seu poder. Quando a gangue apela a elementos externos por jornais, revistas e panfletos, ela pensa que deve falar no nível da massa para ser entendida. Ela fala do imediato porque quer mediatizar. Considerando todos que estão fora da gangue imbecis, ela se sente obrigada a publicar banalidades e asneiras a fim de seduzi-los. No fim, a gangue mesma é seduzida por suas próprias asneiras e é assim reabsorvida pelo meio social circundante. Contudo, outra gangue tomará seu lugar, e seu primeiro vagido será atribuir àqueles que a precederam todos os erros e crimes, procurando desta maneira uma nova linguagem a fim de começar novamente a grande prática da sedução; para seduzir, ela deve parecer diferente das outras.

 Uma vez dentro da gangue (isto é, qualquer tipo de negócio), o indivíduo é amarrado a ela mediante todas as dependências psicológicas da sociedade capitalista. Se ele mostra qualquer habilidade, esta é explorada imediatamente sem que o indivíduo tenha tido a chance de dominar a "teoria" que aceitou. Em troca, ganha uma posição na “panelinha” dominante e se torna um chefete. Se ele não mostra habilidades, ganha uma posição, do mesmo jeito - entre sua admissão na gangue e seu encargo de divulgar a posição dela. Mesmo naqueles grupos que querem escapar do estabelecido, ainda assim um mecanismo de gangue tende a prevalecer por causa dos diferentes graus de desenvolvimento teórico entre os membros que compõem o grupo. A incapacidade de confrontar com independência as questões teóricas leva o indivíduo a se refugiar atrás da autoridade de outro membro, que se torna, objetivamente, um chefe, ou então da entidade grupal, que se torna uma gangue. Nas relações com pessoas de fora do grupo, o indivíduo usa seu pertencimento nele para excluí-las e se distinguir delas, no mínimo - em última análise - para evitar que sua fraqueza teórica seja percebida. Pertencer para excluir, esta é a dinâmica interna da gangue; que é fundada numa oposição, seja ou não admitida, entre o exterior e o interior do grupo. Mesmo um grupo informal degenera em bando político: o caso clássico da teoria se tornando ideologia.

 O desejo de pertencer a uma gangue vem da vontade de ser identificado com um grupo que carrega um certo grau de prestígio, prestígio teórico para os intelectuais, e prestígio organizacional para o assim chamado homem prático. A lógica comercial também entra na formação "teórica". Com uma crescente massa de capital para realizar, isto é: mercadorias ideológicas para vender, é necessário criar uma profunda motivação a fim de que as pessoas comprem essas mercadorias. Para isto, a melhor motivação é: aprenda mais, leia mais, para ser o melhor, para se distinguir da massa. Prestígio e exclusão são os signos da competição em todas as suas formas; e é assim também entre essas gangues, que devem se vangloriar de sua originalidade, de seu prestígio, para chamar a atenção. É por isto que o culto da organização e a glorificação das distinções da gangue se desenvolvem. Deste ponto em diante, a questão não é mais defender uma "teoria", mas preservar uma tradição organizacional (cf. O PCI e sua idolatria da esquerda italiana). [1]

 Com freqüência, a teoria também é adquirida para ser usada em manobras políticas, por exemplo, para apoiar a tentativa de alguém para chegar à liderança ou para justificar a derrubada do chefe atual.

 A oposição interior-exterior e a estrutura de gangue levam o espírito de competição ao extremo. Dadas as diferenças de conhecimento teórico entre os membros, a aquisição de teoria se torna, com efeito, um elemento político de seleção natural, um eufemismo para divisão do trabalho. Enquanto se está, por um lado, teorizando sobre a sociedade existente, por outro, sob o pretexto de negá-la, inicia-se dentro do grupo uma competição desenfreada que acaba numa hierarquização ainda mais extrema do que a da sociedade; sobretudo à medida que a oposição interior-exterior é reproduzida internamente na divisão entre o centro da gangue e a massa de militantes.

 A gangue política atinge sua perfeição naqueles grupos que dizem querer superar as formas sociais existentes (formas como o culto do indivíduo, do líder, e da democracia). Na prática, o anonimato - entendido simplesmente como antiindividualismo - significa a exploração desenfreada dos membros da gangue em benefício da “panelinha” dirigente, que ganha prestígio de tudo o que a gangue produz. E o centralismo orgânico se torna a prática da hipocrisia, pois a falsidade que se encontra nesses grupos que se configuram reivindicando o centralismo democrático ocorre de qualquer maneira, apesar de negarem que isto esteja ocorrendo.

 O que mantém uma aparente unidade no seio da gangue é a ameaça de exclusão. Quem não respeita as normas é expulso com difamação; e mesmo que saia, o efeito é o mesmo. A ameaça também serve de chantagem psicológica para aqueles que ficam. O mesmo processo aparece de diferentes maneiras em diferentes tipos de gangues.

 Na gangue de negócios, moderna forma de empresa, o indivíduo é demitido e vai para o olho da rua.

 Na gangue juvenil, o indivíduo é espancado ou morto. Aqui é onde encontramos a revolta em sua forma bruta, de delinqüência; o indivíduo sozinho é fraco, desprotegido, e assim é forçado a entrar na gangue.

 Na gangue política, o indivíduo é expulso e caluniado, o que nada mais é do que a sublimação do assassinato. A calúnia justifica sua exclusão, ou é usada para forçá-lo a sair “por sua livre e espontânea vontade".

 Na realidade, naturalmente, os diferentes métodos se cruzam de um tipo de gangue a outro. Há assassinatos vinculados a negociações e ajustes de contas que resultam em assassinato.

 Assim, o capitalismo é o triunfo da organização, e a forma que a organização assume é a gangue. É o triunfo do fascismo. Nos estados Unidos, a gangue é encontrada em todos os níveis da sociedade. O mesmo acontece na Rússia. A teoria do capitalismo burocrático hierárquico, no sentido formal, é um absurdo, pois a gangue é um organismo informal.

 Uma alternativa, no nível da teoria, é a exaltação da disciplina, a exigência de pureza do militante (cf. O grupo Rivoluzione Comunista, cuja ruptura com o PCI em 1964 teve como eixo a questão da verdadeira elite de militantes, ressuscitando as posições do "ultrabolchevismo" que Lukács viu como alternativa ao partido de massas oportunista no qual o Partido Comunista da Alemanha tinha se transformado no período de dois anos - cf. "Para uma metodologia do problema da organização", em História e Consciência de Classe) . Isto é o mesmo que dizer, no nível da vida sexual, que a alternativa para a queda dos valores é o ascetismo. Ademais, ao se abstrair da realidade, essa visão cria um abismo entre a teoria e a prática.

 Tudo isso exprime a crescente separação entre o indivíduo e a comunidade humana, a miséria no sentido de Marx. A formação da gangue é a constituição de uma comunidade ilusória. No caso da gangue juvenil, é o resultado da fixação no instinto elementar de revolta na sua forma imediata. A gangue política, pelo contrário, procura manter sua comunidade ilusória como modelo para toda a sociedade. É um comportamento utópico sem qualquer base real. Os socialistas utópicos esperavam que, através da emulação, toda a humanidade seria finalmente incluída nas suas comunidades, mas todas essas comunidades foram absorvidas pelo capital. Assim, esta frase dos estatutos da Primeira Internacional é mais válida do que nunca: "A emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores."

 Na época atual, ou o proletariado prefigura a sociedade comunista e realiza a teoria comunista, ou então permanece parte da sociedade existente. O movimento de maio de 1968 foi o começo desta prefiguração. Resulta que o proletariado de modo algum pode se reconhecer em qualquer organização já que as sofre todas sob outras formas. O movimento de maio claramente demonstra isto.

 Atomizado o proletariado, sua forma imediata de existência é o processo do capital. Os partidos operários no tempo de Marx eram produzidos pelo movimento imediato do proletariado daquele período. Sua sina foi participar do jogo parlamentar burguês. Hoje, quando a aparente “comunidade no céu" da política, constituída por parlamentos e partidos, foi esvaziada pelo desenvolvimento do capital, as "organizações" que se reivindicam proletárias não passam de gangues ou “panelinhas” que, pela mediação do estado, fazem o mesmo que todos os outros grupos que estão diretamente a serviço do capital. Esta é a fase grupuscular. Na época de Marx, a superação das seitas seria encontrada na unidade do movimento operário. Hoje, os partidos, esses grupúsculos, não apenas manifestam uma falta de unidade mas a ausência da luta de classes. Eles discutem a sobrevivência do proletariado. Eles fazem teorias sobre o proletariado na realidade imediata e se opõem ao seu movimento. Neste sentido, eles cumprem as exigências de estabilização do capital. O proletariado, assim, ao invés de ter de superá-los, precisa destruí-los.

 A crítica do capital deve ser, então, a crítica da gangue em todas as suas formas, do capital como organismo social; o capital se torna a vida real do indivíduo e seu modo de ser com outros. A teoria que critica a gangue não deve contribuir para reproduzi-la. Sua conseqüência é a recusa de toda vida grupal: ou esta recusa, ou a ilusão de comunidade. Sobre este assunto, podemos retomar a crítica formulada por Engels no congresso de Sonvillers. O que ele disse sobre a Internacional se aplica hoje ao grupo. E se resume no seguinte: na época de Marx, o proletariado não podia chegar a negar a si mesmo, no sentido de que, durante o curso da revolução, ele devia afirmar como classe dominante: 1848, 1871, 1917. Havia uma separação definitiva entre o partido formal e o partido histórico. Hoje, o partido só pode ser o partido histórico. Qualquer movimento formal é a reprodução desta sociedade, e o proletariado está essencialmente fora dele. Um grupo não pode de modo algum pretender realizar a comunidade sem tomar o lugar do proletariado, o qual pode fazê-la sozinho. Tal tentativa introduz uma distorção que engendra ambigüidade teórica e hipocrisia prática. Não basta desenvolver a crítica do capital, nem mesmo afirmar que não há vínculos organizativos; é necessário evitar reproduzir a estrutura de gangue, posto que ela é o produto espontâneo desta sociedade. Esta deve ser a base da crítica da esquerda italiana e de nosso modo de existência, desde a ruptura com o PCI. "na época de Marx, o proletariado não podia chegar a negar a si mesmo, no sentido de que, durante o curso da revolução, ele devia afirmar como classe dominante: 1848, 1871, 1917. Havia uma separação definitiva entre o partido formal e o partido histórico. Hoje, o partido só pode ser o partido histórico. Qualquer movimento formal é a reprodução desta sociedade, e o proletariado está essencialmente fora dele."

 O revolucionário não deve se identificar com um grupo, mas se reconhecer numa teoria que não depende de um grupo ou de um periódico, porque é a expressão de uma luta de classes real. É neste sentido que o anonimato é posto corretamente, e não como negação do indivíduo (o que a própria sociedade capitalista acarreta). O acordo, assim, é em torno de uma obra que está em andamento e precisa ser desenvolvida. É por isto que o conhecimento teórico e o desejo de desenvolvê-lo são absolutamente necessários se a relação professor-estudante - outra forma da contradição mente-matéria, lider-massa - não deve ser repetida, nem reviver a prática de sequazes. Além disso, o desejo de desenvolvimento teórico deve acontecer de modo autônomo e pessoal e não por meio de um grupo que se põe como uma espécie de diafragma entre o indivíduo e a teoria.

 É preciso retomar a atitude de Marx diante de todos os grupos para entender porque se deve romper com a prática de gangue: 

 - recusa de reconstituir um grupo, mesmo informal (cf. A correspondência Marx-Engels, várias obras sobre a revolução de 1848, e panfletos como "O Grande Homem do Exílio", 1852).

 - manter uma rede de contatos com pessoas que realizaram (ou estão em vias de realizar) o mais alto grau de conhecimento teórico: anti-seguidismo, antipedagogia; o partido, no seu sentido histórico, não é uma escola. [2]

 A atividade de Marx sempre foi mostrar o movimento real que leva ao comunismo e defender as conquistas do proletariado em sua luta contra o capital. Daí a posição de Marx em 1871 ao descrever a "ação impossível" da Comuna de Paris ou declarar que a primeira Internacional não era fruto de qualquer uma teoria ou seita. É preciso fazer o mesmo agora. Quem quiser entrar em contato com o trabalho exposto nesta revista para desenvolvê-lo e assegurar um exposição mais detalhada, precisa e lúcida, deve dirigir suas relações em conformidadecom as linhas já indicadas na discussão da obra de Marx. Deixar de fazer isto é recair na prática de gangue.

 Portanto, é também necessário desenvolver uma crítica da concepção de "programa" da esquerda comunista italiana. Que esta noção de "programa comunista" nunca foi suficientemente esclarecida é demonstrado pelo fato de que, num certo ponto, o debate Martov-Lenin reaparece no coração da esquerda. A polêmica era já o resultado do fato de que a concepção de teoria revolucionária de Marx tinha sido destruída, e isso refletia uma completa separação entre os conceitos da teoria e a prática. Para o proletariado, no sentido de Marx, a luta de classes é simultaneamente produção e radicalização da consciência. A crítica do capital expressa uma consciência já produzida pela luta de classes e antecipa seu futuro. Para Marx e Engels, movimento proletário = teoria = comunismo.

 "O Sr. Heinzen imagina que o comunismo seja uma certa doutrina que nasce de algum princípio teórico definido como seu núcleo e extrai as conseqüências dele. O Sr. Heinzen está muito equivocado. O comunismo não é uma doutrina, ele é um movimento que nasce dos fatos e não de princípios. Os comunistas não pressupõem esta ou aquela filosofia, mas toda a história passada, sobretudo seus resultados atuais e efetivos nos países civilizados... O comunismo só é teoria na medida em que é expressão teórica da situação do proletariado em sua luta e resumo teórico das condições de libertação do proletariado."

 F. Engels, "Os Comunistas e Karl Heinzen", artigo 2, MEW 4, pp. 321-322.

 Realmente, o problema da consciência vinda de fora não existia para Marx. Não havia para ele qualquer questão de formação de militantes, de ativismo ou de academicismo. Do mesmo modo, a problemática da auto-educação das massas, no sentido dos comunistas de conselho (falsos discípulos de R. Luxemburgo e autênticos discípulos do reformismo pedagógico) não surge para Marx. A teoria de Rosa de Luxemburgo do movimento da classe, segundo a qual desde o início a luta encontra dentro de si mesma as condições para sua radicalização, é mais próxima da posição de Marx (cf. sua posição sobre a "criatividade das massas", além de sua existência imediata).

 Isso mostra a necessidade de superar a forma burguesa de perceber e conceber a realidade social e retomar, como Marx fez, a demonstração de Hegel do caráter mediato de toda forma de imediatez. Pois é característico do pensamento "científico" pensar o fato imediato como o objeto real do conhecimento sem perceber nem conceber a mediação que o constitui. É com base em tal gnoseologia que, na sociedade capitalista, a aparência social se torna realidade e vice-versa. O ser real do proletariado está oculto e a classe é percebida na sua aparente forma de vida. É isto que leva ao problema da consciência vinda de fora e faz com que, no momento em que o proletariado manifesta o seu verdadeiro ser (1905-1917), todos fiquem estupefatos, perplexos. A esquerda comunista italiana, apesar de suas capacidades mais apuradas no domínio da teoria do proletariado, não fez, desde 1950, uma ruptura definitiva com seu passado (1919-1926). Sua crítica do trotskismo, do comunismo de conselhos etc. não chegou a retomar integralmente os conceitos de partido e de proletariado de Marx. Por causa disto, sua posição oficial e sua essência real oscilaram entre uma concepção de programa como "uma escola marxista" e um ativismo pueril com estigma trotskista. Este segundo aspecto tornou-se dominante depois de 1960 devido ao fato de que uma “panelinha” de facínoras totalmente estranhos à teoria e ao proletariado tomou posse da "escola", graças, sobretudo, à sua persistente ambigüidade sobre alguns problemas de vital importância: a questão sindical e o conceito de "vanguarda do proletariado", que foram efetivamente recusados na prática e na discussão oficial, mas que permaneceram no cânone oficial do partido. Foi então que o debate Martov-Lenin sobre a questão da organização ressurgiu, demonstrando que essa corrente foi definitivamente morta e enterrada, num funeral de terceira classe, durante maio de 1968.

 Desde quando deixamos o PCI, temos tentado acabar com a ambigüidade acima discutida e fazer o máximo para revelar os aspectos positivos da esquerda. O único resultado foi que nos tornamos adoradores da esquerda e sua mais extrema expressão (cf. os artigos de Invariance). E isto nos levou a cair novamente numa prática de grupo. Embora considerássemos nosso grupo como "informal", isto acarretou a inevitável tendência de substituir o proletariado. A questão não é mais discutir sobre a acomodação no coração da esquerda, mas de reconhecer que, se houve acomodação, foi porque, desde o início, a teoria não era integralmente a teoria do proletariado. Assim, não é adequado dizer que a criação do partido em 1943 foi prematura; é necessário dizer que foi um absurdo. Conseqüentemente, temos que romper com nosso passado e retornar à posição de Marx.

 Esta carta foi escrita não tanto como um tratamento exaustivo e definitivo do tema discutido, sua intenção é a ruptura com "todo" grupo passado. As assinaturas a seguir são para enfatizar esta ruptura e não para indicar que tenhamos abandonado nossas posições a respeito do anonimato.

 Traduzido de Edizioni International, Savona, Itália.

 Notas:

 [1] Refere-se a Amadeo Bordiga e sua fração, conhecidos como a esquerda comunista italiana. E à tradição comunista de esquerda: a oposição de esquerda no Partido Socialista Italiano (1910/12 - 1921), a direção do Partido Comunista da Itália (1921-1924), a oposição de esquerda no Partido Comunista da Itália (1924-26), a fração comunista de esquerda na Bélgica e na França (Bilan e Prometeo: 1926-43), a reconstrução da esquerda comunista italiana (Battaglia Comunista, Prometeo, 1944-52) e o Partido Comunista Internacional (Il Programma Comunista: 1952-70; Bordiga morreu em 1970). (nota dos tradutores).

 [2] Ver Post-scriptum.

 POST-SCRIPTUM

 Falar de retomar uma atitude adotada por Marx num certo momento de sua atividade revolucionária resultou de uma profunda incapacidade de compreender que a fase de dominação formal tinha sido completada. Marx tinha de tomar aquela posição, que só era válida para aquele período. Aliás, sua posição teórica sobre a questão do partido não é tão rígida quanto a carta indica. O que é ainda menos aceitável nas afirmações acima é que elas poderiam levar a uma nova teoria da consciência vinda de fora, uma teoria elitista do desenvolvimento do movimento revolucionário.

 A recusa de toda organização não é uma simples posição antiorganizacional, nem a manifestação de um desejo de originalidade, de se diferenciar e assim alcançar uma posição para atrair as pessoas. Deste modo, o processo de formação de bandos recomeçaria.

 Nossa posição sobre a dissolução dos grupos deriva, por um lado, do estudo do vir-a-ser do modo de produção capitalista; por outro, de nossa caracterização do movimento de Maio. Estamos profundamente convencidos de que o fenômeno revolucionário está em movimento e que, como sempre, a consciência vem depois da ação. Isto significa que, no vasto movimento de rebelião contra o capital, os revolucionários tenderão a adotar um determinado comportamento - que não será adquirido por completo, nem imediatamente - compatível com a luta decisiva e determinante contra o capital. "O acordo, assim, é em torno de uma obra que está em andamento e precisa ser desenvolvida. É por isto que o conhecimento teórico e o desejo de desenvolvê-lo são absolutamente necessários se a relação professor-estudante - outra forma da contradição mente-matéria, lider-massa - não deve ser repetida, nem reviver a prática de sequazes."

 Podemos prever o conteúdo dessa "organização". Ela combinará a aspiração para a comunidade humana com a afirmação individual, combinação que é característica da atual fase revolucionária. Objetivará a reconciliação do homem com a natureza, a revolução comunista sendo também uma revolta da natureza (ou seja, contra o capital; ademais ela ocorre mediante uma nova relação com a natureza) à qual nós seremos capazes de sobreviver, para evitar a segunda das duas alternativas que encaramos hoje: comunismo ou destruição da espécie humana.

 Para melhor compreender este vir-a-ser organizacional, bem como facilitá-lo sem inibir seja o que for, é importante rejeitar todas as velhas formas e entrar, sem princípios a priori, no vasto movimento de nossa libertação, que se desenvolve em escala mundial. É necessário eliminar tudo que possa se tornar um obstáculo ao movimento revolucionário. Em dadas circunstâncias e no curso de ações específicas, a corrente revolucionária será estruturada e se estruturará não só passivamente, espontaneamente, mas sempre dirigindo o esforço para a questão de como realizar a verdadeira Gemeinwesen (essência comum / comunidade humana) e o homem social, o que implica a reconciliação do homem com a natureza.

 (Camatte, 1972)

 Traduzido de http://www.riff-raff.se/en/furtherreading/on_org.php pelo Grupo Autonomia

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