quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO - Guy Debord - CAPITULO I

A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO

 Guy Debord

 CAPITULO I

 A SEPARAÇÃO CONSUMADA

 E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser... O que é sagrado para ele, não é senão a ilusão , mas o que é profano é a verdade. Melhor, o sagrado cresce a seus olhos à medida que decresce a verdade e que a ilusão aumenta, de modo que para ele o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado. Feuerbach - Prefácio à segunda edição de A Essência do Cristianismo

1 Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido se afastou numa representação. 

2 As imagens que se desligaram de cada aspecto da vida fundem-se num curso comum, onde a unidade desta vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente desdobra-se na sua própria unidade geral enquanto pseudomundo à parte, objecto de exclusiva contemplação. A especialização das imagens do mundo encontra-se realizada no mundo da imagem autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si próprio. O espectáculo em geral, como inversão concreta da vida, é o movimento autónomo do nao-vivo.

 3 O espectáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade, e como instrumento de unificação. Enquanto parte da sociedade, ele é expressamente o sector que concentra todo o olhar e toda a consciência. Pelo próprio facto de este sector ser separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência; e a unificação que realiza não é outra coisa senão uma linguagem oficial da separação generalizada.

 4 O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens.

 5 O espectáculo não pode ser compreendido como o abuso de um mundo da visão, o produto das técnicas de difusão massiva de imagens. Ele é bem mais uma Weltanschauung tornada efectiva, materialmente traduzida. É uma visão do mundo que se objectivou.

 6 O espectáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projecto do modo de produção existente. Ele é um suplemento ao mundo real, a sua decoração readicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares, informação ou propaganda, publicidade ou consumo directo de divertimentos, o espectáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante. Ele é a afirmação omnipresente da escolha já feita na produção, e o seu corolário o consumo. Forma e conteúdo do espectáculo são identicamente a justificação total das condições e dos fins do sistema existente. O espectáculo é também a presença permanente desta justificação, enquanto ocupação da parte principal do tempo vivido fora da produção moderna.

 7 A própria separação faz parte da unidade do mundo, da práxis social global que se cindiu em realidade e imagem. A prática social, perante a qual se põe o espectáculo autónomo, é também a totalidade real que contém o espectáculo. Mas a cisão nesta totalidade mutila-a ao ponto de fazer aparecer o espectáculo como sua finalidade. A linguagem do espectáculo é constituído por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última desta produção

 8 Não se pode opor abstractamente o espectáculo e a actividade social efectiva; este desdobramento está ele próprio desdobrado. O espectáculo que inverte o real é efectivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espectáculo, e retoma em si própria a ordem espectacular dando-Ihe uma adesão positiva. A realidade objectiva está presente nos dois lados. Cada noção assim fixada não tem por fundamento senão a sua passagem ao oposto: a realidade surge no espectáculo, e o espectáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente.

 9 No mundo realmente reinvertido, o verdadeiro é um momento do falso.

 10 O conceito de espectáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenómenos aparentes. As suas diversidades e contrastes são as aparências desta aparência organizada socialmente, que deve, ela própria, ser reconhecida na sua verdade geral. Considerado segundo os seus próprios termos, o espectáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana, isto é, social, como simples aparência. Mas a crítica que atinge a verdade do espectáculo descobre-o como a negação visível da vida; como uma negação da vida que se tornou visível.

 11 Para descrever o espectáculo, a sua formação, as suas funções e as forças que tendem para a sua dissolução, é preciso distinguir artificialmente elementos inseparáveis. Ao analisar o espectáculo, fala-se em certa medida a própria linguagem do espectacular, no sentido em que se pisa o terreno metodológico desta sociedade que se exprime no espectáculo. Mas o espectáculo não é outra coisa senão o sentido da prática total de uma formação económico-social, o seu emprego do tempo. É o momento histórico que nos contém.

12 O espectáculo apresenta-se como uma enorme positividade indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão que «o que aparece é bom, o que é bom aparece». A atitude que ele exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade, ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.

 13 O carácter fundamentalmente tautológico do espectáculo decorre do simples facto de os seus meios serem ao mesmo tempo a sua finalidade. Ele é o sol que não tem poente, no império da passividade moderna. Recobre toda a superfície do mundo e banha-se indefinidamente na sua própria glória.

 14 A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou superficialmente espectacular, ela é fundamentalmente espectaculista. No espectáculo, imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espectáculo não quer chegar a outra coisa senão a si próprio. 

15 Enquanto indispensável adorno dos objectos hoje produzidos, enquanto exposição geral da racionalidade do sistema, e enquanto sector económico avançado que modela directamente uma multidão crescente de imagens-objectos, o espectáculo é a principal produção da sociedade actual.

 16 O espectáculo submete a si os homens vivos, na medida em que a economia já os submeteu totalmente. Ele não é nada mais do que a economia desenvolvendo-se para si própria. É o reflexo fiel da produção das coisas, e a objectivação infiel dos produtores.

 17 A primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz a um deslizar generalizado do ter em parecer, de que todo o «ter» efectivo deve tirar o seu prestígio imediato e a sua função última. Ao mesmo tempo, toda a realidade individual se tornou social, directamente dependente do poderio social, por ele moldada. Somente nisto em que ela não é, Ihe é permitido aparecer.

 18 Lá onde o mundo real se converte em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um comportamento hipnótico. O espectáculo, como tendência para fazer ver por diferentes mediações especializadas o mundo que já não é directamente apreensível, encontra normalmente na vista o sentido humano privilegiado que noutras épocas foi o tacto; o sentido mais abstracto, e o mais mistificável, corresponde à abstracção generalizada da sociedade actual. Mas o espectáculo não é identificável ao simples olhar, mesmo combinado com o ouvido. Ele é o que escapa à actividade dos homens, à reconsideração e à correcção da sua obra. É o contrário do diálogo. Em toda a parte onde há representação independente, o espectáculo reconstitui-se.

 19 O espectáculo é o herdeiro de toda a fraqueza do projecto filosófico ocidental, que foi uma compreensão da actividade, dominada pelas categorias do ver; assim como se baseia no incessante alargamento da racionalidade técnica precisa, proveniente deste pensamento. Ele não realiza a filosofia, ele filosofa a realidade. É a vida concreta de todos que se degradou em universo especulativo.

 20 A filosofia, enquanto poder do pensamento separado, e pensamento do poder separado, nunca pode por si própria superar a teologia. O espectáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica espectacular não dissipou as nuvens religiosas onde os homens tinham colocado os seus próprios poderes desligados de si: ela ligou-os somente a uma base terrestre. Assim, é a mais terrestre das vidas que se toma opaca e irrespirável. Ela já não reenvia para o céu, mas alberga em si a sua recusa absoluta, o seu falacioso paraíso. O espectáculo é a realização técnica do exílio dos poderes humanos num além; a cisão acabada no interior do homem.

 21 À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário. O espectáculo é o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não exprime senão o seu desejo de dormir. O espectáculo é o guardião deste sono.

 22 O facto de o poder prático da sociedade moderna se ter desligado de si próprio, e ter edificado para si um império independente no espectáculo, não se pode explicar senão pelo facto de esta prática poderosa continuar a ter falta de coesão, e permanecer em contradição consigo própria.

 23 É a especialização do poder, a mais velha especialização social, que está na raiz do espectáculo. O espectáculo é, assim, uma actividade especializada que fala pelo conjunto das outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica perante si própria, onde qualquer outra palavra é banida. O mais moderno é também aí o mais arcaico.

 24 O espectáculo é o discurso ininterrupto que a ordem presente faz sobre si própria, o seu monólogo elogioso. É o auto-retrato do poder na época da sua gestão totalitária das condições de existência. A aparência fetichista de pura objectividade nas relações espectaculares esconde o seu carácter de relação entre homens e entre classes: uma segunda natureza parece. dominar o nosso meio ambiente com as suas leis fatais. Mas o espectáculo não é esse produto necessário do desenvolvimento técnico olhado como um desenvolvimento natural. A sociedade do espectáculo é, pelo contrário, a forma que escolhe o seu próprio conteúdo técnico. Se o espectáculo, considerado sob o aspecto restrito dos «meios de comunicação de massa», que são a sua manifestação superficial mais esmagadora, pode parecer invadir a sociedade como uma simples instrumentação, esta não é de facto nada de neutro, mas a instrumentação mesmo que convém ao seu automovimento total. Se as necessidades sociais da época em que se desenvolvem tais técnicas não podem encontrar satisfação senão pela sua mediação, se a administração desta sociedade e todo o contacto entre os homens já não se podem exercer senão por intermédio deste poder de comunicação instantâneo, é porque esta «comunicação» é essencialmente unilateral; de modo que a sua concentração se traduz no acumular nas mãos da administração do sistema existente os meios que Ihe permitem prosseguir esta administração determinada. A cisão generalizada do espectáculo é inseparável do Estado moderno, isto é, da forma geral da cisão na sociedade, produto da divisão do trabalho social e órgão da dominação de classe.

 25 A separação é o alfa e o ómega do espectáculo. A institucionalização da divisão social do trabalho, a formação das classes, tinha construído uma primeira contemplação sagrada, a ordem mítica em que todo o poder se envolve desde a origem. O sagrado justificou a ordenação cósmica e ontológica que correspondia aos interesses dos Senhores, ele explicou e embelezou o que a sociedade não podia fazer. Todo o poder separado foi pois espectacular, mas a adesão de todos a uma tal imagem imóvel não significava senão o reconhecimento comum de um prolongamento imaginário para a pobreza da actividade social real, ainda largamente ressentida como uma condição unitária. O espectáculo moderno exprime, pelo contrário, o que a sociedade pode fazer, mas nesta expressão o permitido opõe-se absolutamente ao possível. O espectáculo é a conservação da inconsciência na modificação prática das condições de existência. Ele é o seu próprio produto, e ele próprio fez as suas regras: é um pseudo-sagrado. Ele mostra o que é: o poder separado, desenvolvendo-se em si mesmo no crescimento da produtividade por intermédio do refinamento incessante da divisão do trabalho na parcelarização dos gestos, desde então dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um mercado cada vez mais vasto. Toda a comunidade e todo o sentido crítico se dissolveram ao longo deste movimento, no qual as forças que puderam crescer, separando-se, ainda não se reencontraram.

 26 Com a separarão generalizada do trabalhador e do seu produto perde-se todo o ponto de vista unitário sobre a actividade realizada, toda a comunicação pessoal directa entre os produtores. Na senda do progresso da acumulação dos produtos separados, e da concentração do processo produtivo, a unidade e a comunicação tornam-se o atributo exclusivo da direcção do sistema. O êxito do sistema económico da separação é a proletarização do mundo.

 27 Pelo próprio êxito da produção separada enquanto produção do separado, a experiência fundamental ligada nas sociedades primitivas a um trabalho principal está a deslocar-se, no pólo do desenvolvimento do sistema, para o não-trabalho, a inactividade. Mas esta inactividade não está em nada liberta da actividade produtiva: depende desta, é a submissão inquieta e admirativa às necessidades e aos resultados da produção; ela própria é um produto da sua racionalidade. Nela não pode haver liberdade fora da actividade, e no quadro do espectáculo toda a actividade é negada, exactamente como a actividade real foi integralmente captada para a edificação global desse resultado. Assim, a actual «libertação do trabalho», o aumento dos tempos livres, não é de modo algum libertação no trabalho, nem libertação de um mundo moldado por este trabalho. Nada da actividade roubada no trabalho pode reencontrar-se na submissão ao seu resultado.

 28 O sistema económico fundado no isolamento é uma produção circular do isolamento. O isolamento funda a técnica, e, em retorno, o processo técnico isola. Do automóvel à televisão, todos os bens seleccionados pelo sistema espectacular são também as suas armas para o reforço constante das condições de isolamento das «multidões solitárias». O espectáculo reencontra cada vez mais concretamente os seus próprios pressupostos.

 29 A origem do espectáculo é a perda da unidade do mundo, e a expansão gigantesca do espectáculo moderno exprime a totalidade desta perda: a abstracção de todo o trabalho particular e a abstracção geral da produção do conjunto traduzem-se perfeitamente no espectáculo, cujo modo de ser concreto é justamente a abstracção. No espectáculo, uma parte do mundo representa-se perante o mundo, e é-lhe superior. O espectáculo não é mais do que a linguagem comum desta separação. O que une os espectadores não é mais do que uma relação irreversível no próprio centro que mantém o seu isolamento. O espectáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado.

 30 A alienação do espectador em proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A exterioridade do espectáculo em relação ao homem que age aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que Ihos apresenta. Eis porque o espectador não se sente em casa em nenhum lado, porque o espectáculo está em toda a parte.

 31 O trabalhador não se produz a si próprio, ele produz um poder independente. O sucesso desta produção, a sua abundância, regressa ao produtor como abundância da despossessão. Todo o tempo e o espaço do seu mundo se Ihe tornam estranhos com a acumulação dos seus produtos alienados. O espectáculo é o mapa deste novo mundo, mapa que recobre exactamente o seu território. As próprias forças que nos escaparam mostram-se-nos em todo o seu poderio.

 32 O espectáculo na sociedade corresponde a um fabrico concreto de alienação. A expansão económica é principalmente a expansão desta produção industrial precisa. O que cresce com a economia, movendo-se para si própria, não pode ser senão a alienação que estava justamente no seu núcleo original.

 33 O homem separado do seu produto produz cada vez mais poderosamente todos os detalhes do seu mundo e, assim, encontra-se cada vez mais separado do seu mundo. Quanto mais a sua vida é agora seu produto, tanto mais ele está separado da sua vida.

 34 O espectáculo é o capital a um tal grau de acumulação que se toma imagem.

 Guy Debord (A Sociedade do Espectáculo Capitulo I)

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