quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A conquista do espaço no tempo do poder

Eduardo Rothe Texto aparecido na revista Internationale Situationniste #12, setembro de 1969, quando do espetáculo da chegada do homem a lua. Versão em espanhol de Maldeojo publicado no Archivo Situacionista Hispano. A tradução para o português é dos editores desta página. 1 A ciência a serviço do capital, da mercadoria e do espetáculo, não é outra coisa que o conhecimento capitalizado, fetichismo da idéia e do método, imagem alienada do pensamento humano. Pseudo-grandeza dos homens, seu conhecimento passivo de uma realidade irrisória é a justificativa mágica de uma multidão de escravos. 2 Faz tempo que o poder do conhecimento se transformou em conhecimento do poder. A ciência contemporânea, herdeira prática da religião da Idade Média, cumpre - em relação com a sociedade de classes - as mesmas funções: compensa a estupidez quotidiana dos homens com seu conhecimento perpétuo de especialista. Canta em cifras a grandeza do gênero humano, quando não é outra coisa que o âmago organizado de suas limitações e de suas alienações. 3 Da mesma forma que a indústria, destinada a libertar aos homens do trabalho pelas máquinas, não fez até o presente mais que aliená-los mediante o trabalho nas máquinas, a ciência - destinada a libertá-los histórica e racionalmente da natureza - não fez nada a não ser aliená-los numa sociedade irracional e anti-histórica. Mercenária do presente separado, a ciência trabalha para a sobrevivência e não pode então conceber a vida além de uma fórmula mecânica ou moral. Com efeito, não concebe o homem como sujeito, nem o pensamento humano como ação, e por isso ignora a história como atividade consciente e faz dos homens "pacientes de hospitais". 4 Fundada sobre a falácia essencial de sua função, a ciência não pode mais que mentir para si mesma. E suas pretensões mercenárias conservaram de seus sacerdotes ancestrais o gosto e a necessidade do mistério. Parte dinâmica na justificação dos Estados, o corpo científico guarda zelosamente suas leis corporativas e os segredos da Machina ex Deo, que fazem deles uma seita miserável. Não há nada de assombroso, por exemplo, em que os médicos - carpinteiros da força de trabalho - tenham uma escrita ilegível: é o código policial da sobrevivência monopolizada. 5 Mas, se a identificação histórica e ideológica da ciência com os poderes temporais mostra claramente que é a servidora dos Estados e não engana portanto a ninguém, foi necessário esperar até agora para ver desaparecer as últimas separações entre a sociedade de classes e uma ciência que queria permanecer neutra e "a serviço da humanidade". De fato, a atual impossibilidade de investigação e aplicação científica sem alguns meios enormes pôs o conhecimento, espetacularmente concentrado, nas mãos do poder, e o dirigiu para os objetivos do Estado. Hoje não há ciência que não esteja a serviço da economia, do exército e da ideologia; e a ciência da ideologia mostra sua outra face, a ideologia da ciência. 6 O poder, que não pode tolerar um vazio, não perdoou jamais o fato de os territórios do além serem terrenos livres para a imaginação. Desde a origem da sociedade de classes, sempre foi posto no céu a fonte irreal do poder separado. Quando o Estado se justificava religiosamente, o céu estava incluído no tempo da religião; agora que o estado quer se justificar cientificamente, o céu está no espaço da ciência. De Galileu a Werner von Braun, não é mais que uma questão de ideologia de Estado: a religião queria preservar seu tempo e não tinha portanto nada para fazer com o espaço. Diante da impossibilidade de prolongar seu tempo, o poder deve restaurar seu espaço sem limites. 7 Se o transplante de coração é ainda uma miserável técnica artesã que não faz esquecer os massacres químicos e nucleares da ciência, a "conquista do Cosmos" é a maior expressão espetacular da opressão científica. O especialista do espaço é para o pequeno doutor o que a Interpol é para o policial de bairro. 8 O céu prometido em outros tempos pelos sacerdotes sob suas sotainas negras é tomado de fato pelos astronautas de brancos uniformes. Assexuados, neutros, super-burocratizados, os primeiros homens a sair da estratosfera são as vedetes de um espetáculo que flutua dia e noite sobre nossas cabeças, que pode dominar as temperaturas e as distâncias, e que nos rebaixa desde o alto como o pó cósmico de Deus. Exemplo de sobrevivência em seu mais alto grau, os astronautas fazem, sem pretendê-lo, a crítica da terra: condenados ao trajeto orbital - sob pena de morrer de frio e fome - aceitam submissamente ("tecnicamente") a chatice e a miséria dos satélites. Habitantes de um urbanismo da necessidade em suas cabines, prisioneiros do aparato científico, são o exemplo - in vitro - de seus contemporâneos que não escapam, apesar das distâncias, dos desenhos do poder. Homens-anúncios, os astronautas flutuam no espaço e saltam sobre a superfície da lua para fazer marchar os homens para o tempo de trabalho. 9 E se os astronautas cristãos do Ocidente e os cosmonautas burocratas do Leste se entretém com a metafísica e a moral laica - Gagarin "não viu Deus" e Borman rezou pela pequena Terra - é na obediência a sua "ordem de serviço" espacial onde devem encontrar a verdade de seu culto. Como no caso de Exupery, "o santo", que falou das profundezas a partir de uma grande altitude, mas cuja verdade tinha a tripla condição de ser militarista, patriota e idiota. 10 A conquista do espaço forma parte da esperança planetária de um sistema econômico que, saturado de mercadorias, de poder e espetáculo, defeca no espaço, quando chega às portas do céu derramando suas contradições terrestres. Nova América, o espaço deve servir aos Estados para suas guerras, para suas colônias: para servir aos produtores-consumidores que se tomarão assim a liberdade de superar as limitações do planeta. Província de acumulação, o espaço está destinado a converter-se ser acumulação de províncias, para as quais existem já leis, tratados e tribunais internacionais. Nova Yalta, a repartição do espaço mostra a incapacidade do burocrata e do capitalista para resolver, aqui na terra, seus antagonismos e suas lutas. 11 Mas a velha topeira revolucionária, que hoje rói as bases do sistema, destruirá as barreiras que separam a ciência do conhecimento generalizado do homem histórico. Quanto mais idéias do poder separado, maior o poder das idéias separadas. A autogestão generalizada da transformação permanente do mundo pelas massas fará da ciência uma banalidade de base e já não uma verdade de Estado. 12 Os homens entrarão no espaço para fazer do Universo o terreno lúdico da última revolta: aquela que irá contra as limitações que impõe a natureza. E, derrubados os muros que separam hoje os homens da ciência, a conquista do espaço já não será a "promoção" econômica ou militar, mas sim a floração das liberdades e realizações humanas, conquistadas por uma multidão de deuses. Entraremos no espaço, não empregados de uma administração astronáutica, nem como "voluntários" de um projeto de Estado, mas como senhores sem escravos que passam em revista seus domínios: todo o universo em um saco para os conselhos de trabalhadores. Eduardo Rothe, 1969 Biblioteca virtual revolucionária

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